É iníqua a pobreza laboral

No Congresso Nacional da Rede Europeia Anti-Pobreza, realizado na cidade do Porto, em abril passado, António Costa, confirmou que, no nosso país «persistem níveis intoleráveis de pobreza laboral»[1] e avançou com uma solução ao afirmar: «Por isso o combate à precariedade e à intermitência laboral é absolutamente essencial»[2]. Não tenho dúvidas da sinceridade do Primeiro-Ministro. O problema é tão escandaloso que, pelo menos, teoricamente, não pode haver alguém, com o mínimo de consciência humanista, que possa considerar aceitável situação tão revoltante. Por isso, mais que intolerável é, ontologicamente, iníqua. Se, em teoria, é impossível aceitar a existência de trabalhadores pobres, a prática demonstra o contrário. Na minha perspetiva são múltiplos os fatores que contribuem para que haja trabalhadores, muitas vezes a laborar em condições infra-humanas, e a auferirem salários que não lhes permitem, e aos seus agregados familiares, viverem com dignidade. Aqui reside o problema maior e que influencia, determinantemente, outra realidade, assumida por desconhecedores dos fundamentos da pobreza, enquanto privação de recursos monetários, que é a pobreza geracional. Com efeito, a causa fundante dos problemas sociais, com particular evidência nesta reflexão para a pobreza laboral, é o desrespeito e, por vezes, mesmo um ataque que marca, indelevelmente, a dignidade de muitos seres humanos. A pergunta que se deve fazer, antes de mais, é a de sabermos que sentido damos ao trabalho na construção de cada pessoa e na humanidade no seu todo.

1. O trabalho é um direito e um dever

O respeito e a defesa da dignidade humana é o princípio ético de onde surgem todos os restantes valores universais. Anselmo Borges, um dos grandes filósofos do nosso país, é perentório na defesa da dignidade como um valor intocável e sem preço algum. Já ouvi, algumas vezes, o padre Anselmo abordar este assunto, que encontro muito bem sistematizado no seu livro “O Mundo e a Igreja. Que Futuro?”, cuja leitura aconselho, em que se revela perentório na afirmação de que a dignidade da pessoa não é um meio, mas um fim.

A dignidade da pessoa humana é inviolável, e isso não por simples convenção ou convicção subjetiva, ela tem um fundamento real, de ser, transcendendo, portanto, as condições do nascimento ou as fronteiras, como escreve Francisco: a dignidade da pessoa «não se fundamenta nas circunstâncias, mas no valor do seu ser. Quando não se salvaguarda este princípio elementar, não há futuro nem para a fraternidade nem para a sobrevivência da Humanidade».[3]

O trabalho e a compensação económica dele decorrente, têm de ser compatíveis com o valor da dignidade de quem o exerce. O trabalho é um meio, por isso tem um preço, mas para quem o exerce é um fim, evidentemente finito e mortal, mas que o seu ser aponta sempre para o infinito, ou seja, a procura de ser mais. O trabalho é, assim, um ato criador. Não é um castigo, como se pode induzir duma leitura menos exegética do primeiro livro da Bíblia (cfr. Gn 3, 19), mas gera fadiga, incómodos – pois nem todas as tarefas são agradáveis – e algumas insatisfações por não ser possível alcançar o máximo rendimento. Por isso, é preciso ter a máxima atenção para que este cansaço não se torne em tortura física e/ou psicológica, prefiguradas em novas formas de escravatura.

A pessoa em privação severa de recursos monetários, cujos antepassados já viveram nessa condição e não conseguem garantir aos descentes a libertação da pobreza, tem os seus “pés algemados” que os impedem de caminhar no sentido do bem-estar que a sua dignidade reclama. Quando essas pessoas trabalham e os salários que auferem são grilhões que os mantêm prisioneiros da pobreza, o trabalho realizado só pode ser entendido como uma escravatura.

Alonguei-me nestes considerandos, porque, se os governantes, os empreendedores laborais e até os próprios sindicatos não tiverem em conta estes fundamentos qualquer diálogo em ordem à criação de trabalhos e salários dignos será sempre uma perda de tempo.

2. Algumas das causas da pobreza laboral

A existência de trabalhadores pobres não é uma realidade do nosso tempo. Sempre existiu. Mas quanto mais elevados forem os padrões de vida predominantes, mais esta infame situação se torna mais notória. É praticamente do senso comum, a ideia de que só é pobre quem quer, pois trabalho não falta. É uma acusação atentatória da dignidade de muita gente que procura, incessantemente, um trabalho e não encontra. Condenar sem se conhecerem as complexidades sociológicas que geram determinados tipos de pobreza, mesmo a gerada por quem não tem apreço pelo trabalho, é incorrer numa injustiça que nada contribui para a erradicação, pelo menos, da pobreza mais severa.

Em abril de 2021, a Fundação Francisco Manuel dos Santos publicou um estudo muito competente sob o título “A pobreza em Portugal. Trajetos e quotidianos”, da autoria de reconhecidos peritos na área da pobreza. Este estudo aponta para os adultos que fazem parte dos 1,7 milhões de pessoas (número recolhido a partir dos dados do inquérito às Condições de Vida e Rendimento) que vivem em situação de pobreza no nosso país e que se agrupam em quatro perfis: “Trabalhadores” (32,9%); “Reformados (27,5%); “Precários” (26,6%); “Desempregados (13%). Em 2018, aproximadamente, 11% dos empregados em Portugal viviam em situação de privação de meios financeiros e quase metade dos que estavam desempregados viviam da mesma forma. Estou convencido de que esta realidade, se sofreu alterações foi para pior, devido aos níveis, dissimulados, mas reais, da inflação em curso. Já vai sendo tempo de o Instituto Nacional de Estatística, em estreita articulação com as instituições que se dedicam à proteção social, publicar relatórios sobre a pobreza em Portugal, pelo menos, anualmente.

A maior parte das pessoas incluídas nos perfis referidos, tem em comum o estar em situação de pobreza há longo tempo e de já ter recebido de seus pais esta “herança. Muitas ainda têm níveis de escolaridade muito baixos por terem abandonado, precocemente, a escola “humilhados” por insucessos sucessivos ou, até para entrarem no mercado de trabalho pela necessidade de contribuírem para o aumento dos escassíssimos rendimentos familiares. Esta realidade está a ser ainda mais inadmissível porque muitos dos atuais trabalhadores pobres, de hoje, já não terem estas causas como fundamento da sua situação de precariedade económica. Há quem tenha a escolaridade obrigatória (12.º ano) e até mesmo qualificações académicas superiores e esteja no limiar da pobreza. Muitos em postos de trabalho que nada têm a ver com as suas competências e cujas tarefas não exigem qualificações elevadas; outros que celebram contratos de trabalho até na sua área de estudos, mas com salários brutos de 800 euros mensais. Uma parte significativa, de uns e outros, estão em constante intermitência contratual, os designados trabalhadores precários. O modelo económico predominante, que faz do trabalhador não um fim, mas um meio para a criação da riqueza a custos, quanto mais baixos melhor, e do lucro o seu infinito, que tem nos “paraísos fiscais” o seu destino, é o causador originário destas vidas dramáticas.

3. É urgente acabar com esta iniquidade

Quando se for capaz de erradicar a pobreza absoluta, muita dela produzida por trabalhadores pobres, também estes deixarão de existir. Para isso é preciso que exista uma distribuição mais justa da riqueza. As taxas tributárias têm de incidir menos nos salários e mais na riqueza, inexplicavelmente, arrecadada por uma minoria de pessoas. Sem esta mão tributária, tão pesada sobre os rendimentos do trabalho, será mais fácil abolir o trabalho informal, que não tem uma lógica de bem comum. Os preços dos bens necessários para uma subsistência digna deveriam ter um controlo maior por parte do Estado para que a sede insaciável do lucro não criasse disparidades escandalosas entre o custo de aquisição e o preço de venda. O estado a que se chegou nos preços de arrendamento de habitações, por vezes com fracas condições de habitabilidade, são uma exploração vergonhosa. O combate à precariedade laboral tem de ser um desígnio da Concertação Social, pois ela não traz mais valias à produtividade. Parece que já se assumiu como uma fatalidade o não haver um posto de trabalho ao longo da vida ativa. Isto, porém, não se pode traduzir, como acontece, viverem-se mais anos sem trabalho. A criação de salários dignos propiciaria maior produtividade, por criar níveis de mais satisfação; permitiria uma autonomia aos jovens que constituiriam novas famílias e cooperavam para não ser tão invernoso o estado das taxas, preocupantes, relativas à baixa natalidade; evitaria a necessidade de duplos empregos que obstaculizam a tão necessária conciliação entre o trabalho e as obrigações familiares.

Há ainda que criar estratégias de motivação para o regresso à aprendizagem, seja ela no âmbito escolar, no aumento das qualificações ou diversificação profissional.

Muitas outras soluções poderiam ser apresentadas. A Organização Internacional do Trabalho tem um catálogo de medidas que deveriam ser levadas a sério. As suas concretizações contribuiriam para se desvanecerem as gritantes desigualdades sociais que não param de aumentar.

O problema é que não há força política para levar a sério e com determinação o que se deve fazer. O Capital domina, descaradamente, a política e o progresso tecnológico, que não é mau em si mesmo, pelo contrário, mas está também a ficar nas mãos do dominador financeirista, porque muitas investigações são custeadas por ele.

Escreve Anselmo Borges:

Francisco não se cansa de propor uma «economia corajosa», isto é, com «a coragem de combinar o lucro legítimo com a promoção do emprego e de condições de trabalho dignas», consagrando «o lucro desejável» com «o respeito pela pessoa humana e pelo planeta».

A pergunta é: Como pôr a economia a funcionar, salvaguardando a dignidade de todos? Exige-se uma política melhor, sã.[4]

Notas:
[1] cf. https://www.dn.pt/politica/antonio-costa-persistem-niveis-intoleraveis-de-pobreza-laboral-14813890.html
[2] Ibidem
[3] cf. Anselmo BORGES, O Mundo e a Igreja. Que futuro?, Gravida Publicações S.A., Lisboa, 2021, 334.
[4] Ibidem, 336.