Testemunhos da História – “34” Escola de Resistência e Cidadania
Os anos 60 do século XX constituíram um «período de grandes mudanças culturais e de comportamento, e de manifestações estudantis e políticas nas quais os jovens ocuparam o papel de protagonistas em busca de liberdades nas mais variadas frentes». Iniciadas nos EUA, as transformações em curso, rapidamente se estenderam a outras partes do globo. Portugal, apesar da ditadura e da censura, não escapou ao contágio. Os jovens portugueses também vieram para as ruas mostrar as suas frustrações. As crises académicas de 1962 e 1969, e a manifestação contra a guerra do Vietname (12/02/1968), são alguns exemplos desse inconformismo.[1]
Em Vila Franca de Xira, operários e estudantes do Ensino Técnico abrem frechas nos muros da ditadura, resistem ao “quero, posso e mando” do dr. Serra, diretor da Escola Industrial e Comercial, e paralisam o estabelecimento durante uma semana. Foi “obra” que conseguiu mudanças significativas. Esta vontade de mudança recebia energias de várias proveniências. Mas uma das mais assinaláveis tinha origem na Secção Cultural da União Desportiva Vilafranquense. Aqui, operários e estudantes, em comunhão, desenvolveram um trabalho cultural de formiguinha, inspirado pelo espírito desses novos ventos. Mas não só daqui. Sopravam também do lado do “Ateneu Artístico Vilafranquense”, bem como do seio da Igreja, e do interior da própria Escola Técnica. Os jovens manifestavam-se em uníssono: queriam liberdade no pensar e no conviver; queriam o fim das Guerras Coloniais (1961-1974). Na Paróquia católica de VFX, jovens cristãos juntam-se a outros, ávidos de liberdade, para práticas de convívio e debates de ideias, organizando-se em torno do recém-nascido grupo “SEJU” do Secretariado Paroquial. Entre outras atividades, lançam, em 1967, uma “revista” mensal – “RAMPA”, que, ao fim de meia dúzia de números, é suspensa, por pressões vindas de vários lados. Porém, os jovens não desmoralizaram. E em 1970, com o apoio e colaboração do Padre Vasco Moniz e com o estímulo das ideias saídas do Concílio Vaticano II (1962-1965), criam o “Boletim Paroquial”. Esta publicação mensal acentuou o distanciamento do pároco de Vila Franca em relação ao regime. Há muito que o Pároco não dava garantias de «cooperar na realização dos fins superiores do Estado». A Igreja já não falava a uma só voz.
Os Jovens que frequentavam o espaço do Secretariado Paroquial (cristãos ou não) tinham provado, contra ventos e marés, querer uma Comunidade arejada e empenhada, “sem peias nem ameias”. Tal como o Prior, pugnavam por «uma Religião no mundo» e não na Sacristia. Eles tinham conseguido levar o escritor Alves Redol ao Secretariado Paroquial. E, por duas vezes, o Zeca Afonso. Os mesmos Jovens do “SEJU” tinham também tomado a iniciativa de colocar nas ruas da Vila, no mês de Maio, uma Procissão em honra de Maria, Mãe de Jesus, mas sem os andores dos Santos tradicionais, exceto o de Nossa Senhora. Substituíram-nos por Cartazes, encimando apelos de Paulo VI à Paz. Claro que, com este “rumo”, esta nova tentativa editorial pouco tempo de vida teve (1970-1972). O suficiente para agitar as águas estagnadas do pântano, donde se não via nem fundo, nem futuro!
Entretanto, outra novidade, revolucionária, se ergue, na terra!
No Bairro do CASI, por iniciativa do Padre Moniz, tinha sido construído um conjunto de Vivendas/Duplex, com fins sociais. Uma dessas Vivendas foi cativada para Residência e Apoio a Jovens estudantes. Mas quis “o destino” que essa “CASA”, no número 34, por iniciativa espontânea de Joaquim Alberto Simões, a residir ali, depois de vir de Paris (Julho de 1969), se transformasse em “Centro” de Convívio, aberto ao diálogo e ao debate livre de ideias; em espaço de leitura de Peças de Teatro (Jaime Gralheiro), proibidas pela Censura; em local de declamação de Poesia e Cantares da Resistência. Guitarras dedilhadas por principiantes e aprendizes acompanhavam composições de Homens/Mulheres de “antes quebrar que torcer”: Sophia, Zeca, Fanhais, Manuel Freire, Brel, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Alegre, Zé Mário Branco, Luís Cília, Pedro Lobo Antunes, Samuel, Afonso Dias, entre outros, e o próprio Joaquim Alberto, motor e cimento deste Pilar. Pilar que deu origem, enquanto foi possível, àquilo que ainda hoje persiste nas memórias dos que foram frequentadores do “34”, participando e animando as célebres Sextas Feiras Culturais.
O “34”, porém, não foi só “festa” às sextas! Foi também oportunidade de muita atividade política. Para muitos/as foi uma “escola”, onde aprenderam aquilo que não se ensinava nas escolas. Foi um espaço de liberdade, a ponto de fazer crer que era possível sonhar com a Utopia, viver num mundo melhor, o que, felizmente, se concretizou.
A sementeira de Liberdade e Fraternidade, na existência do “34”, foi abundante! No semear e colher, participaram muitas dezenas de Jovens e adultos, vindos às ditas sextas feiras, de vários pontos do País, para Cantar “Nascem Flores onde quiseres…”; para refletir sobre a guerra e sobre o que fazer para derrubar o Regime que a impunha, consumindo vidas e “a Fazenda”.
Até que um dia chegou o momento! E os “senhores, mandadores sem Lei”, roídos pela raiva e pelo ódio, decidiram pôr em prática estratégias de asfixia. Prenderam uns; incorporaram outros nas fileiras do exército, mesmo os que já haviam cumprido serviço militar; a outros expulsaram-nos da Função Pública ou impediram-nos de ganhar o pão com o trabalho de suas mãos! O “34” era, sem dúvida, um espaço incómodo. E o fascismo não tolerava que aqueles “subversivos” se divertissem, pretendendo deitar o regime abaixo. “Sentença” de morte à vida que nele se vivia e cantava e (re)produzia.
Mas não sabiam ainda que não conseguiriam «cortar a raiz ao pensamento»; nem fechar as portas que ”Abril Abriu…”, a partir de lá. “Portas” que se encontram, agora, registadas, “ad perpetuam rei memoriam”, no filme “Ecos da Vermelha”, do jovem vilafranquense Bruno Teixeira.
Nota: [1] Mayumi Denise S. llari, Dez obras para se pensar contracultura nos anos 60, disponíveis em: https://fflchs.ust.br/sites/fflch.usp.br/files/2017-11/Contracultura.pdf (consultado em 12/05/2022)
Carlos A. Cruz
(1938)
Professor aposentado
Professor de Religião e Moral na Escola Técnica de V.F. de Xira: 1966-1970