Testemunhos da História – Sessenta anos após a revolta de Beja
Na última noite de 1961, sete dezenas de pessoas assaltaram o quartel de Beja e protagonizaram um dos mais intensos episódios de luta armada contra a ditadura. Entre a Revolta do Castelo em 1931 e a Revolução de 1974, foi a única revolta que chegou a eclodir e em que civis e militares pegaram em armas e desafiaram o regime. José Hipólito Santos e João Varela Gomes deixaram testemunhos escritos do que se passou no episódio que deixou Salazar afónico, incapaz de pronunciar um discurso na Assembleia Nacional dias depois. Alguns episódios daqueles dias permaneceram por explicar. Raul Zagalo, um dos últimos sobreviventes do grupo, tinha 20 anos à data do episódio. Hoje, conta o que se passou e porque se passou – para que permaneça viva a memória dos que, sem “cálculos para o dia seguinte”, arriscaram tudo o que tinham.
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Nas comemorações do 90.º aniversário do capitão João Varela Gomes (JVG), sugeriu que ele deveria ser considerado “o primeiro capitão de Abril”, na medida em que sacrificou e arriscou tanto ou mais do que os militares da Revolução de 1974. Ainda sustenta essa opinião?
Sem dúvida. Nesse aniversário, eu disse de facto que JVG e os seus seis companheiros militares mereciam ser considerados os primeiros capitães de Abril, com destaque para o capitão João Varela Gomes. Recordo que, muitos anos antes, no final da década de 1950, o general Humberto Delgado já previa que haveriam de ser os capitães a derrubar o regime e não os oficiais generais. Acredito que, em 25 de Abril de 1974, os “capitães de Abril” pagaram uma dívida tardia que as Forças Armadas tinham com os portugueses, na medida em que foram elas, a par da igreja Católica, a sustentarem o antigo regime e tinham sido elas a desencadear o golpe de 1926. E creio que os militares que participaram em Beja mereciam esse reconhecimento por o terem tentado 12 anos antes do 25 de Abril de 74, pela liberdade, pela justiça e contra a guerra colonial. E foram necessários todos esses anos para que os “guerreiros coloniais” se cansassem e se revoltassem, inicialmente, por razões corporativas. Poderia ter-se evitado a guerra colonial, caso a revolta tivesse sido bem-sucedida. E na verdade ela só poderia ter sido bem-sucedida se tivessem existido bastantes adesões militares, meta que o capitão JVG nunca conseguiu.
A revolta de Beja tem sido remetida para uma nota de rodapé da história. O insucesso justifica esse esquecimento?
Ajuda a explicar, claro, mas não creio que seja esse o principal motivo. A oposição ao regime dividia-se então entre o Partido Comunista Português (PCP) e a oposição das fileiras republicanas. E a esse segundo grupo, a que Delgado chamava a “oposição sentada”, faltava uma vanguarda. Quando se discutia a transposição de uma linha vermelha e o início de acções concretas para dar o peito às balas, muitos desse grupo nunca estiveram disponíveis. Como houve um grupo que arriscou, julgo que uma certa má consciência de muitos oposicionistas preferiu colar-nos a imagem de temerários e loucos. Aceito perfeitamente que um homem pode não ter a coragem de dar um passo em frente e despojar-se de tudo. Mas não pode denegrir os que arriscaram.
O cérebro da revolta de Beja foi…
Além de Humberto Delgado, foi Manuel Serra, um homem extraordinário, um mobilizador, um revolucionário desinteressado. E tinha 31 anos à data deste episódio – note-se. Arriscou tudo. Não se lhe podia pedir mais!
Registaram-se três idas a Beja em Dezembro. Porquê?
A primeira, no dia 2, foi um teste para ver de facto quantos seríamos na hora da verdade. E chegados lá (eu não fui nesse primeiro episódio), constatou-se que faltavam forças para a operação pretendida. Não havia ainda muita gente mobilizada e sentiram-se dificuldades práticas que hoje são difíceis de assimilar – quem tinha carro ou carta de condução, como comunicaríamos sem levantar suspeitas. Na altura, era uma logística muito complicada. O próprio facto de se demorar quatro horas em viagem para Beja parece hoje inverosímil.
Qual foi afinal a força motriz da revolta de Beja?
A força motriz da revolta chamava-se Humberto Delgado, que nunca desistiu desde o momento em que se refugiou na embaixada do Brasil, em 1959. Ainda durante a campanha eleitoral afirmou, em Chaves, que estava disposto a morrer pela liberdade. No exílio, prometeu que voltaria à luta e fez incitamentos à revolta armada. Isso ocorreu antes dos primeiros confrontos em Angola, em Março de 1961, que desencadearam a guerra colonial. É justo lembrar que Delgado e Manuel Serra advogavam a resistência armada muito antes do início da guerra colonial.
Em Dezembro de 1961, o Raul tinha 20 anos, trabalhava na secção de estatística da CP. O que o levou a participar na revolta?
Acabara de completar 20 anos, no dia 7. Em Março de 1961, iniciara-se a guerra colonial. Eu nunca faria uma guerra colonial e, para não ser preso, iniciei contactos para “dar o salto” para o estrangeiro. Os companheiros da CP deram-me o contacto de Artur Vaz, que andava fugido à PIDE e que me pôs em contacto com Edmundo Pedro e com o irmão, Germano. Este tinha um barco grande e o plano era transitar para Marrocos numa das viagens habituais dele para comprar tecidos para os grandes armazéns de Lisboa.
Tive então um ou dois encontros clandestinos com Artur Vaz, que aparecia disfarçado no Café Vavá. Na época, eu tinha algumas ingenuidades, falava muito abertamente. Acabei por partilhar com ele a minha convicção de que o regime não caia só com papéis e defendia uma revolta armada. Ele acabou por contar que estava em preparação uma acção séria, que incluía armas e poderia fazer correr sangue. Perguntei: “Mas tipo Moncada?”, lembrando-me de Cuba. E ele disse: “Mais ou menos.” Comuniquei-lhe de imediato que queria participar. Isto foi em finais de Novembro de 1961.
O Artur avaliou a minha predisposição, deve ter levado a questão a outras pessoas e, dois ou três dias mais tarde, convocou-me para uma reunião com Manuel Serra num prédio em frente do antigo Cinema Vox, onde a mulher de Edmundo Pedro tinha um atelier de costura. Fizeram-me uma série de perguntas. Estavam presentes Alípio Rocha (que tinha sido tanquista na guerra de Espanha e posteriormente me deu lições teóricas de como disparar uma bazuca), Artur Vaz, David Abreu e mais três pessoas que nunca identifiquei. Em cima da mesa estavam as plantas dos edifícios do quartel para tentarmos memorizar. Havia um companheiro que estava sempre junto ao prédio para nos alertar para qualquer presença suspeita. Posso garantir que a maioria dos participantes foi contactada nos dois meses anteriores à revolta e disponibilizou-se de imediato.
Soube de imediato que o general Delgado estava por trás da acção?
Sim. Isso foi tornado claro por Manuel Serra, que me disse que estava mandatado por Humberto Delgado.
E a participação de Varela Gomes?
Ainda tive mais duas ou três reuniões com Manuel Serra, Artur Vaz e Alípio Rocha antes da segunda ida a Beja, no dia 9 de Dezembro. Nessa altura, já nos tínhamos apercebido de que seria uma tentativa temerária, que iria atacar o regime com violência e que as nossas hipóteses eram remotas. Manuel Serra tentava animar-nos e disse numa das reuniões: “Agora temos militares do nosso lado.” Para um jovem como eu era, os militares eram os responsáveis pelas três décadas da ditadura. E perguntei-lhe: “É o capitão Varela Gomes?” O Manuel Serra sorriu e não confirmou. Foi o único indício que tive.
José Hipólito Santos descreve um grupo de “sete dezenas de jovens e não jovens” onde estavam comunistas, católicos, um padre, oposicionistas republicanos e até um monárquico. A que grupo pertencia o Raul?
Estávamos todos dispostos a batermo-nos pela liberdade, mas não se pode falar num grupo. Mesmo entre os 17 que pertenciam ao PCP, alguns não se conheciam entre si antes da revolta. Toda esta gente que esteve disponível não pertencia à tal “oposição sentada”. Diria que tínhamos em comum a determinação para agitar as águas e essa determinação era muito superior à literacia política e/ou partidarismo. Mais tarde, foram julgados 87. Participaram no assalto ao quartel cerca de 50 homens e uma mulher (a enfermeira Mariana Esteves).
Outros 25 companheiros aguardavam em terras alentejanas para agitarem a população se saíssemos do quartel. Além de Manuel Serra (oficial da marinha mercante) e dos militares, havia dois estudantes de Medicina (Francisco da Graça Miranda e Jaime Carvalho da Silva, que era também tenente miliciano), uma enfermeira, dois comerciantes (Edmundo Pedro e o irmão Germano) e os restantes eram essencialmente operários ou artesãos de pequenos ofícios. Foram essas pessoas que se dispuseram a dar o peito às balas. David Abreu e António Vilar (um barbeiro e um motorista), que tombaram de armas na mão a lutar pela liberdade, deram tudo o que tinham de seu e… tudo o que tinham de seu era a vida! Eram homens extraordinários! O perfil sociológico da revolta de Beja foi, essencialmente, de uma revolta operária com sete solitários militares.
O que aconteceu na segunda incursão, a 9 de Dezembro?
Voltaram a falhar contactos e não compareceram as pessoas necessárias para uma tentativa com um mínimo de probabilidade. Fui no carro de Manuel Serra, com a enfermeira Mariana Esteves. Lembro-me que Germano Pedro conduzia e seguia uma quarta pessoa no carro. Chegámos a Beja, fizemos um levantamento rápido e foi decidido que ainda não chegara a altura. Houve bastantes cuidados conspirativos e a melhor prova disso é que a polícia não desconfiou de que a revolta poderia ter ocorrido naquele dia.
Chegou-se então à noite de Ano Novo.
Na terceira vez, o plano estava mais definido e eu, como outros, tínhamos missões mais precisas. Mas todo o plano era condicional: “Se conseguirmos entrar no quartel, começamos por tomar a casa da guarda e os oficiais de comando. Depois. se conseguirmos desarmar parte das forças, distribuímos as armas.” É bom que se diga que quem participou na revolta tinha perfeita noção das dificuldades. A determinada altura nas reuniões, Manuel Serra avisava-nos. E dizia: “Os primeiros momentos são decisivos. Não podemos disparar muitos tiros porque a GNR e a polícia ouvirão e cercarão o quartel. Temos de ter tempo para nos armarmos e vestir capotes militares para sabermos quem são os nossos e os outros.” Explicou que também havia gente nossa (militares) lá dentro. Mas acentuou sempre que os primeiros momentos seriam decisivos.
Qual era afinal o plano?
Se conseguíssemos sair vitoriosos, uma coluna (aquela onde estava previsto que eu fosse), iria para Beja para dominar a GNR. O resto seguiria para a serra do Caldeirão, aguardando a adesão de alguma unidade militar, enquanto Humberto Delgado faria um apelo à população no Emissor Nacional de Faro. Entretanto, os companheiros com ligação ao PCP, nalgumas povoações alentejanas, tentariam que a população viesse para a rua. Criar-se-ia, assim, um “movimento imparável,” como sonhava Humberto Delgado.
Tudo isso quase sem dispor de armamento?
Naquela noite, eu só vi duas ou três pistolas de guerra e uma granada, embora admita que pudessem existir mais algumas. Edmundo Pedro tinha uma arma. Eu vi a arma de Serra. No meu grupo, não havia. JVG tinha também uma arma pessoal. A ideia essencial era recolher as armas do quartel, pois estavam a ser treinadas ali centenas de homens para a guerra colonial e concentravam-se armas ligeiras. Mas tínhamos noção de que se estava a tentar pegar um touro à unha.
Vamos à noite de 31 de Dezembro.
Vários acidentes conspiraram contra nós, começando por uma tempestade inusitada naquela região, que deixou a cidade às escuras. Não se via um palmo à frente do nariz. As viagens foram atribuladas. Era suposto reunirmo-nos às 20 horas, mas o grupo só se juntou depois da meia-noite, com vários problemas de comunicação pelo meio. Nunca se colocou a possibilidade de abortar. Manuel Serra tinha sido muito claro: não se movimentam mais de setenta pessoas de Lisboa para o Alentejo, em estradas desertas, sem deixar rasto. Ou era agora, ou seria tudo preso. E a última coisa que queríamos era que a acção terminasse antes de ter começado, como sucedera na Mealhada em 1946, pois isso alimentaria a tese da “oposição sentada” de que o regime só cairia quando estivesse maduro.
O plano de acção era conhecido por todos?
Muitos participantes sabiam que iam participar numa acção perigosa, que metia armas e riscos, mas alguns nem sequer sabiam que era em Beja. Cerca de uma dúzia conhecia o plano em detalhe, pois era indispensável saber as respectivas missões.
Quando começou a acção?
Por volta da uma hora e meia da madrugada. Tínhamos dois militares coniventes no interior do quartel: o capitão Vasconcelos Pestana e o tenente Alexandre Hipólito. O tenente Brissos de Carvalho estava a par da revolta, mas invocou o parto iminente da mulher para se ausentar. O capitão Pestana levantou as sentinelas à volta do quartel, o que nos permitiu aproximarmo-nos do muro do quartel sem que dessem por nós e fechou-se com a “companhia de ordem pública” que comandava, não tomando qualquer outra iniciativa.
JVG chegou à porta do quartel, com Eugénio Filipe de Oliveira, Pedroso Marques e Jaime Carvalho da Silva. Foram recebidos pelo capitão Pestana, entrando sem levantar suspeitas à casa da guarda. Dirigiram-se ao oficial de dia, o alferes Arantes de Oliveira, que era sobrinho do ministro e que se portou bem. Eugénio de Oliveira anunciou que estava em curso uma revolução e perguntou-lhe se queria aderir. O alferes retorquiu que não estava preparado e, enquanto o disse, retirou a arma e entregou-a ao Eugénio. Numa atitude muito britânica (segundo o Eugénio de Oliveira), este pediu-lhe a palavra de honra da sua neutralidade e devolveu-lha.
Entretanto, nós saltámos o muro por trás da casa da guarda e entrámos a correr no interior. Desarmámos o sargento, o furriel e algumas dezenas de sentinelas.
Na messe dos oficiais, só estavam três oficiais, provavelmente ainda a celebrar o fim do ano. Foram fechados ali sem qualquer resistência. Ainda chegou ao quartel, logo no início da acção, um quarto oficial, que dominámos e foi também encarcerado na messe.
Faltava o comandante do campo para que o controlo fosse quase total.
Faltava. O comandante (coronel Stedlin Baptista) viajara para Lisboa no fim do ano. Deixara no comando, como responsável, o major Calapez, um legionário. Àquela hora, este descansava nos seus aposentos, mas já estaria de sobreaviso porque estava fardado na cama – não estava de pijama. Quando saltámos o muro, a arma de Manuel Serra terá disparado acidentalmente. Talvez tivesse sido esse tiro a despertá-lo, não sei. Com o ruído da tempestade, acho difícil.
Como interpreta os acontecimentos que se seguiram?
Partilhei a cela com Jaime Carvalho da Silva durante dois a três anos e, em duas ocasiões, escutei-o a falar disso com as lágrimas nos olhos. A ironia é que um homem como JVG que resolveu, em perfeita consciência, aderir à revolta quando sentia que quase não havia possibilidades de êxito e quando ele próprio dizia que as revoluções não se fazem com data marcada (recorde-se que o general Delgado garantira ao povo português que até final de 1961 estaria no nosso país), tenha sofrido por ter sido um homem de decisões rápidas e precipitadas, mas sempre disposto a dar o peito às balas pela revolução.
Naquele momento, o tenente Hipólito hesitou porque não queria prender o seu comandante. Com excesso de confiança, JVG subiu ao primeiro andar do edifício onde se encontravam os aposentos do comandante e bateu à porta. Calapez perguntou: “Quem é?” E JVG respondeu: “É o Rocha [o nome do sargento da guarda].” Ora, o Rocha era um alentejano puro, de sotaque marcado. Calapez percebeu de imediato que havia algo estranho na situação. Abriu a porta e disparou dois tiros na direcção de JVG que, em queda, ainda fez alguns disparos. Aliás, no quartel, na ombreira da porta, ainda estão lá três buracos de bala.
A esse primeiro momento decisivo, seguiu-se um segundo episódio…
O tenente Jaime Carvalho da Silva vinha atrás de JVG. O major saiu do quarto e Carvalho da Silva apontou-lhe a arma. Nesse momento, Calapez claudicou. Largou a arma e suplicou que não o matassem. Carvalho da Silva empurrou-o para dentro do quarto, tirou a chave e fechou-o, não se lembrando que o quarto tinha uma janela através da qual o major se evadiu. E a partir daí a vantagem era dele porque conhecia bem o enorme edifício central do quartel.
JVG ainda se levantou. Incitou os companheiros a continuar a luta e pediu para contarem à mulher dele que se portara bem. Hipólito e Pedroso Marques meteram-no num automóvel e levaram-no ao hospital. Quando nós acabámos de ocupar a casa da guarda, estava o carro com JVG a sair do quartel. Não o identificámos, mas percebemos que tínhamos começado mal…
E os que ficaram?
Começou um enorme tiroteio pouco depois. Cá em baixo, um grupo formado por Artur Vaz, Joaquim Dias Lourenço, Edmundo Pedro e Manuel Serra chegou à casa do comando. Na casa da guarda, António Vilar, Valter Basílio, David Abreu, eu e os demais começámos a ouvir imensos disparos. Era a troca de tiros entre o major Calapez e os nossos companheiros em redor do edifício do comando.
Era a confirmação de que já estava a correr mal e saímos para o exterior da casa da guarda para ajudar. Peguei numa Mauser e não consegui meter o pente de cinco balas na arma. Cheguei ao pé de um dos soldados e pedi-lhe para carregar a arma. O rapaz tremia como varas verdes. Disse-lhe: “Tremes porquê? Ninguém te faz mal.” Ele carregou o pente e disse, enquanto me devolvia a arma: “Agora, já não. No início, pensei que eram terroristas.”
E ocorreu então o momento fatídico da noite.
David Abreu saiu primeiro a correr e não se apercebeu de que investia na direcção de Calapez. Este ter-lhe-á pedido para se aproximar e tudo indica que o David pensou que era um dos nossos. A dois metros de distância, foi baleado. Terá morrido instantaneamente.
Um companheiro gritou-nos que o David fora abatido. Vilar e eu decidimos que tínhamos de ajudar. Ao sair da casa do guarda, tínhamos pela frente um terreiro ermo, sem protecção. E eu pensei que seria melhor caminhar rente aos edifícios. O major Calapez pensou o mesmo (para tentar aproximar-se da casa da guarda), o que nos colocou em rota de colisão. Ele rastejou para a horta do quartel e ficou escondido, à espera. Deve ter-nos visto a aproximar. Quando eu cheguei à esquina da capela, ele disparou, deitado, uma rajada de baixo para cima. Apanhou-me no joelho. Ao Vilar, que vinha mais atrás, a bala entrou-lhe no baixo ventre e saiu por baixo do braço.
Quando levamos um tiro em combate, não sabemos bem de onde vem o disparo. Caí no solo e fiquei convencido de que fora atingido por um atirador que estaria emboscado numa torre do edifício de comando. O factor que me enganou foram os tiros de resposta que Vilar ainda conseguiu disparar e que me passaram perto. Fiquei portanto imobilizado, com o olhar concentrado num ponto distante. Vilar gritou e eu pedi-lhe para ele aguentar sem fazer barulho porque quem se aproximasse daquele ponto vagamente iluminado para nos ajudar, seria igualmente atingido. De manhã, quando me entreguei, ele ainda estava vivo. Esteve toda a noite em coma e morreu no hospital [emocionado].
O que se passou depois?
O tiroteio terá durado cerca de uma hora até o major Calapez conseguir fugir do quartel. Depois, instalou-se o silêncio. Como não nos viam, os meus companheiros concluíram que eu e Vilar teríamos conseguido escapar e abandonaram o quartel.
Hipólito escreveu que eu gritei por ajuda, mas não é verdade. Mantive-me em silêncio porque temia que quem se aproximasse fosse também baleado. Na penumbra da madrugada, já sem temporal, comecei a ouvir um tiroteio brutal. Pensei que estava em curso um massacre. Não era. Era a GNR, finalmente a cercar o quartel e estava a marcar presença, disparando contra… as árvores.
É curioso notar pelos depoimentos do processo que o major Calapez chegou a Beja, intimou a GNR a agir e o comandante desta força recusou. Só foi cercar o quartel quando se fez dia. Antes disso, teve medo. Durante algumas horas, tivemos de facto o quartel na mão. Com a fuga de Calapez, nós pensámos que o cerco do quartel estaria iminente e não daria tempo para nos prepararmos… quando, na realidade, a GNR e PIDE só ousaram aproximar-se duas a três horas depois!
E depois?
Quando apareceu a luz do dia, consegui medir melhor a situação. Vi o meu companheiro tombado e quase imóvel. O meu joelho estava inchado e não conseguia pôr-me de pé sem ajuda. Afastei a arma e rebolei um pouco. Não queria ser abatido sob o falso pretexto de que estava a resistir. E vi à distância cinco ou seis vultos junto do edifício de comando. Deitado, levantei os braços. Dois dos soldados da casa da guarda apontaram-me a arma e o sargento baixou-lhes o cano. Eles avançaram muito a medo. Fui eu que lhes disse: “Venham ajudar-me que eu não posso levantar-me.” Assim o fizeram e caminhei, amparado, até à casa da guarda. Quando cheguei ao pé do sargento Rocha, que horas antes tínhamos desarmado, ele disse-me uma frase que nunca esqueci: “Car***! Ainda há pedaço vocês estavam aí tão bem!” Perguntei-lhe se haveria possibilidade de me esconder ou de sair do quartel, mas ele explicou que estava tudo cercado. Lavei-me num lavatório e disse-lhe que, sendo assim, queria entregar-me. Ele remeteu-me para os oficiais. Lá fui outra vez amparado pelos soldados até aos oficiais e entreguei-me. Arranjou-se um transporte para mim e para o Vilar para o hospital. Ele morreu, poucos minutos depois de chegar, perto de JVG, fazendo festas na mão de uma freira e dizendo: “Minha mulherzinha.”
Quando foi transportado para o hospital, o major Calapez já recuperara a coragem e foi acareá-lo.
No hospital, entrou de facto um individuo com galões ao qual os agentes da GNR fizeram continência. Não sabia que era o major Calapez. Debruçou-se sobre mim e disse-me: “Isto é para não me esquecer da sua cara se nos voltarmos a encontrar.” É curioso lembrar que, em Abril de 1974, ele era deputado da Assembleia Nacional. Mais tarde, Cavaco Silva quis condecorá-lo e ele recusou.
Nessa madrugada, morreu ainda o subsecretário de Estado do Exército, Jaime da Fonseca, com um disparo de fogo amigo, mas sei que ainda lhe tentaram colar o espectro dessa morte.
No julgamento, eu tive três advogados: Castanheira Lobo, Duarte Vidal e Artur Cunha Leal. O Dr. Castanheira Lobo faleceu no início do julgamento e Duarte Vidal disse-me que, face ao que a acusação estava a preparar, fazia muita falta ali Artur Cunha Leal e que este gostaria muito de ser o meu patrono. Disse-lhe: “Pois que venha!” Foi então que Duarte Vidal me disse que Artur Cunha Leal precisava que eu pedisse explicitamente a sua patronagem. Parece que ao Dr. Mário Soares não agradava ver Artur Cunha Leal como um dos patronos dos insurrectos! Temia talvez que este brilhasse naquele palco. E tinha razão porque Cunha Leal, em termos de oratória e da violência nas acusações ao regime, foi brilhante. Não tenho dúvidas em reconhecer que, no processo de Beja, distinguiram-se, pela combatividade, os advogados Francisco Sousa Tavares e Artur Cunha Leal.
E o que era a sua acusação?
Como fui o único detido vivo no quartel, eles preparavam-se para alegar que fora eu a disparar contra o subsecretário de Estado. E aí brilhou Cunha Leal, que arrasou por completo o tribunal. Usava metáforas fortíssimas. Uma delas, que replico numa peça de teatro que escrevi sobre Humberto Delgado, foi dita por ele.
O procurador do Ministério Público fizera a exposição inicial e lamentara não haver em Portugal pena de morte para nos punir. Em resposta, Cunha Leal disse-lhe: “Que orgulho eu teria se, neste banco dos réus, estivesse sentado o meu filho. Diz-se lá para os meus lados, na serra da Gardunha, que à cumeada dos montes só se chega no voo altaneiro da águia ou no rastejar da serpente. A V. Ex.ª faltou-lhe o bater da asa.” O outro até se engasgou. “Está a chamar-me serpente?” – repetia. Foi uma intervenção notável.
Mas eles preparavam-se de facto para me imputar essa morte. Calapez não participou no julgamento e eu depreendo porquê: temia que, intervindo, viesse a público que ele claudicara no momento da verdade e suplicara a chorar pela vida. Testemunhou em seu lugar o comandante do quartel que não estava lá naquela noite. Em pleno julgamento, Cunha Leal antecipou-se e pediu para o interrogar. Pediu-lhe explicações de balística. Perguntou-lhe se achava possível que um tiro disparado por um homem caído no chão pudesse ladear muros e atingir um indivíduo fora do quartel. O coronel Stedlin Baptista percebeu onde ele queria chegar e, com dignidade, reconheceu que o subsecretário fora atingido por acidente, pela GNR.
Nos julgamentos, os réus foram agrupados por facilidade burocrática. Calhou estar na sala durante o julgamento de Varela Gomes.
Assisti de facto a algumas sessões e ao discurso final, onde proclamou: “Que outros triunfem onde nós fomos vencidos.” Foi um discurso notável que o tribunal não interrompeu. Tenho de ser justo e reconhecer que, neste julgamento, houve espaço para os réus fazerem afirmações e acusações violentas contra o regime e a PIDE que noutros processos não eram possíveis.
Porquê?
O caso de Beja chamou a atenção de jornais internacionais, que seguiam cada sessão. O regime estava a ser analisado de fora. E, na minha interpretação, a partir do momento em que Salazar percebeu que a revolta não partira do PCP, terá decidido que as penas, para a maioria, seriam mais benevolentes. Num processo apenso, 17 companheiros foram acusados, com provas extensas, de pertencerem ao PCP. Foram todos absolvidos dessa acusação. Noutras circunstâncias, isso bastaria para garantir uma pena pesadíssima.
Creio a posteriori que beneficiámos da propaganda do próprio regime, que garantia ao mundo que não existia oposição em Portugal – só a dos comunistas, “a mando de Moscovo”. E de repente aconteceu um episódio armado, que envolvia padres, católicos, monárquicos, que não encaixava nessa propaganda. A própria PIDE desistiu de tentar montar o episódio como uma operação comunista. Manuel Serra foi punido com 10 anos, JVG com 6, e a maior parte dos outros com 2 a 3 anos ou absolvidos. O tempo de prisão efectiva acabou por ser maior para todos porque do tempo de prisão até à sentença, em 1964, só contou metade.
Dos oitenta envolvidos na revolta de Beja, nenhum participou na revolução de 1974. Desmobilizaram?
Os guerreiros coloniais que se revoltaram no 25 de Abril nunca procuraram os militares de Beja. Ignoraram por completo João Varela Gomes. Temos de ter presente qual era, inicialmente, a natureza e a finalidade do golpe. Estou a pensar na famigerada Junta de Salvação Nacional. Nós, os civis, após sairmos da prisão fomos solitariamente participando nos actos possíveis de resistência. Estávamos todos “marcados” e vigiados pela PIDE e o tufão delgadista de 1958 esfumara-se. Humberto Delgado já fora assassinado. Havia um forte movimento nacionalista de apoio à guerra colonial. Tínhamos noção de que só os militares poderiam mudar o regime, como de facto fizeram em 1974. Em Beja, demos o que tínhamos para dar. Nunca lamentei participar. Nas mesmas circunstâncias, faria exactamente o mesmo, contra a ditadura e pela liberdade.
Entrevista feita por Gonçalo Pereira Rosa
Gonçalo Pereira Rosa
(1975)
Centro de Estudos de Comunicação e Cultura, Universidade Católica