Jornalismo e democracia, a crise partilhada
Este breve contributo para a análise da crise em que vive o jornalismo e da agónica situação em que genericamente se arrasta a imprensa, merece ser precedido de um aviso à navegação: o autor destas linhas é jornalista, já aposentado e profundamente desencantado com o rumo do jornalismo atual, sobretudo com a sua uniformidade discursiva e acrítica, quase sempre rendido ao efémero, submisso ao poder e excessivamente mercantilizado, até ao ponto de pisar os valores democráticos pelos quais outrora os jornalistas lutaram, com risco da sua própria segurança, como ainda hoje, noutros pontos do globo, outros continuam a lutar pela elementar liberdade de informar e opinar.
Mas não se julgue que este pernicioso resvalar do jornalismo para a cacofonia é facilmente explicável, como não o é a fuga de leitores da imprensa e a sua transumância para a selva das redes sociais onde o próprio cidadão se tornou agente de informação, mas também de falsa informação, um perigoso convívio que não consta que inquiete os donos do negócio.
Paradoxal, contudo, é esta crise ter-se instalado no jornalismo precisamente quando a tecnologia lhe disponibiliza a instantaneidade informativa do acontecimento. Justamente aquilo que sempre procurou encurtar ao longo da sua já longa história: o tempo entre o acontecimento e a sua divulgação.
A cronografia da imprensa demonstra que o jornalismo, tal qual o conhecemos hoje, é resultado de um longo processo evolutivo. Não foi sempre assim. Formatos atribuídos à imprensa, como a entrevista ou a manchete de primeira página, instituíram-se principalmente a partir do século XIX. O mesmo se pode dizer sobre atributos como a objetividade, factualidade ou isenção. E se é verdade que os jornais ajudaram a moldar o mundo, como hoje o conhecemos (aliás, sem o seu decisivo contributo, no tratamento e disseminação da informação, seguramente que o curso da história teria sido outro), as dúvidas sobre o seu futuro e o seu papel para o esclarecimento dos cidadãos e qualidade da democracia colocam-se hoje com maior acuidade.
Ora esta crise sem precedentes no jornalismo, que varre a indústria que o suporta e a própria ética que o rege, é o grande desafio colocado aos profissionais do sector. Como revitalizar este moribundo, é a grande questão, que não parece preocupar grandemente os decisores políticos e agentes económicos. Certo mesmo é que o modelo clássico do jornal em papel, como ainda o conhecemos, com as vendas a decaírem há anos consecutivos, e sem remédio à vista, dificilmente sobreviverá no acelerado novo mundo da tecnologia digital, sendo que as assinaturas digitais ainda estão longe de compensar as perdas face às antigas tiragens de jornais.
A indústria da comunicação social, inicialmente encantada com os benefícios da internet, não terá acautelado em devido tempo a mutação tecnológica do negócio, que está agora nas mãos de poderosas plataformas de comunicação como o Facebook ou o Google, para referir apenas as duas mais poderosas multinacionais tecnológicas, que, não produzindo conteúdos, canibalizam o trabalho dos jornalistas sem a sua devida remuneração. E o começo da crise está exatamente aqui.
O jornal impresso foi irremediavelmente vencido pelo imediatismo do online. O presente está agora à distância de um clique no smartphone. Mas a aceleração tecnológica neste maravilhoso mundo novo traz-nos, também, novas e acrescidas preocupações. A perda da privacidade e dos valores da ética, em resultado da personalização algorítmica das redes sociais onde impera a manipulação, também psicológica, é já uma evidência – veja-se, para melhor esclarecimento, o documentário da Netflix sobre “O dilema das redes sociais”.
Para resistir, o jornalismo precisa de voltar a afinar as suas coordenadas, não pode perder de vista a exigência do rigor e a pluralidade informativa, tem de evitar ser pé-de-microfone e menos alinhado com o discurso dominante, que está a tornar os jornais demasiado iguais nas escolhas e tratamento da informação. Urge, pois, revalorizar-se, a bem do seu próprio futuro, mas também e sobretudo do seu inestimável contributo para uma cidadania esclarecida e maior transparência da vida democrática.
Sendo verdade que o jornalismo, por cá, já não teme a censura pura e dura que o acompanhou e condicionou ao longo da maior parte da sua história, por vezes com contornos brutais, não pode, contudo, descurar a possibilidade de ela se ter travestido. Mesmo em democracia, é preciso que o jornalismo continue vigilante, porque é grande a tentação de o amestrar – apetite próprio da natureza e condição do poder, dos vários poderes com que o jornalismo tem de conviver. E há sempre formas, mais ou menos dissimuladas, de beliscar a liberdade de expressão que tanto nos custou a alcançar, seja pela tentativa mais frequente de a condicionar (por via económica ou outra), ou então a de nos confundir, espectadores do comentário informativo, num relativismo tal que nos deixa sem pontos cardeais.
As redes sociais inundaram as nossas vidas, e o jornalismo vê-se a competir, pela primeira vez e em desigualdade de meios, com o boato e a mentira. E está a perder a corrida, porque a mentira, pelo sensacionalismo que a reveste, tantas vezes alimento de ódios e crendice, viaja mais depressa na rede onde as partilhas lhe são mais favoráveis. Estamos cada vez mais tempo online, narcisicamente dependentes de likes e prontos a consumir e a espalhar informação não verificada. E isso é cada vez mais o pão nosso de cada dia.
Talvez que na imprensa regional, pela proximidade à comunidade, seja mais escrutinável, e o ruído ainda não se sobreponha inteiramente à informação. Porém, outros dilemas e confrontos pressionam o jornalismo de proximidade, nomeadamente uma preocupante subserviência ao poder local, que a fragilidade do negócio alimenta e justifica. Mas esse não é por hora, o objeto de análise destas linhas.
Notório é que os jornais, em Portugal como no resto do mundo, estão em declínio acentuado a nível de circulação e de receitas. Estilos de vida e tecnologia acessível explicam a tendência que poderá, a curto ou médio prazo, levar mesmo ao desaparecimento dos títulos de informação nacional ainda hoje impressos. Os jornais desempenham, contudo, funções únicas na comunidade no campo mediático, o que levanta questões sobre o impacto desta tendência nas democracias. Até que ponto o definhamento dos jornais influência a qualidade da democracia? Essa é a dúvida e o risco que não devemos correr.
Mau grado o tom algo desiludido destas observações – nomeadamente sobre o resvalar do jornalismo para uma maior tabloidização no seguidismo das redes sociais e um alinhamento excessivo com o discurso político dominante –, os jornais desempenham ainda hoje funções únicas na comunidade para uma cidadania esclarecida e para uma maior transparência nas decisões dos poderes públicos. Por isso mesmo é mais preocupante o alarmismo com que relata episódios menores da atualidade na disputa pelas audiências, ou quando é, frequentemente, a voz irrefletida de interesses propagandistas e pouco escrutinados, como é exemplo mais descarado o tratamento jornalístico no contexto da atual guerra na Ucrânia e da russofobia instigada, assim como efeitos de boomerang das sanções da Europa à Rússia.
Tem sido apontado que a crise na imprensa escrita não pode ser resolvida apenas em contexto do mercado liberal e que há lugar para uma intervenção legítima dos Estados. A discussão tem que sair do domínio estrito da economia, onde tem estado acantonada, e entrar no registo político e cultural. Sem esse debate, aberto e aprofundado, não há como salvaguardar uma questão fundamental: o direito dos cidadãos a serem informados e a informarem-se com rigor, profundidade, transparência e verdade.
Note-se que o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, sempre rodeado por jornalistas, manifestou em tempos preocupação com a situação crítica da imprensa, defendeu mesmo, no seu anterior mandato, a necessidade de uma intervenção estatal mais musculada no apoio à comunicação social. Mas até agora pouco se viu e até a declarada preocupação saiu do radar. É verdade que a pandemia do Covid-19 trouxe outro tipo de preocupações e de investimentos mais urgentes. A imprensa, também ganhou, momentaneamente, maior visibilidade e atenção do público no alarmante contexto pandémico. Mas tudo isso já lá vai, ficou a crise para durar.