Regionalização em Portugal: o retomar do debate

1. O retomar do debate

O debate da Regionalização do país voltou a emergir. Periodicamente, tem-se retomado a discussão do tema, se bem que sem consequências de maior. A exceção em matéria de alcance do debate que foi acontecendo foi a realização do referendo de 8 de novembro de 1998, cujo resultado significou a criação de um bloqueio substantivo à institucionalização da instância regional de governo. Por detrás desse retomar do debate estão, por um lado, a inclusão dessa temática no Programa do XXIII Governo, definindo-se aí o objetivo de realizar um novo referendo em 2024, e, por outro lado, as sequelas da implementação da Lei nº 50/2018, de 16 de agosto, que estabeleceu a transferência, gradual, de um conjunto alargado de competências para as “autarquias locais” e as “entidades intermunicipais”.

Pese o prazo estabelecido na Lei nº 50/2018 para a conclusão do processo de descentralização estar esgotado, ainda estamos longe de ver plenamente materializada essa transferência de poderes e ela não se tem revelado pacífica, pese a Lei ter sido acordada entre o PS (Partido Socialista) e o PSD (Partido Social Democrata). Expressão pública disso foi, há alguns meses, a tomada de posição da Câmara Municipal do Porto, que, aparte recusar-se a assumir algumas das competências a transferir, se desvinculou da Associação Nacional de Municípios por não aceitar os termos em que esta vinha negociando com o Governo Central a descentralização das ditas competências. No fundamental, está em causa a falta de paridade entre as competências a transferir e os recursos (financeiros e humanos) postos ao dispor dos municípios.

Anote-se que o artigo 5º da Lei nº 50/2018 refere que o “Financiamento das novas competências” deveria ser feito em paralelo com as competências transferidas, se bem que também estabelecesse que a natureza e forma de afetação dos recursos seriam “concretizados através de diplomas legais de âmbito setorial” (artigo 4º), o que não deixou de gerar desde o início hesitações e receios nas entidades a quem seriam afetadas as novas competências e atribuições.

Cabe aqui assinalar que a entidade na qual incide o essencial do processo de descentralização é o Município, tendo as Comunidades Intermunicipais um papel subsidiário. Isso é particularmente questionável quando, em nome da eficiência e bom serviço às populações e às empresas, múltiplos serviços têm que ser desenvolvidos em quadros supramunicipais. Isso levantava a dúvida sobre se a lógica de implementação da “descentralização” planeada não resultava invertida, isto é, se primeiro não importaria equacionar a componente rede e estruturas supramunicipais. Em todo o caso, em muitas situações, essa escala oferece-se subdimensionada, para além da entidade em causa ser desprovida de legitimidade política direta, e, daí, estar dependente da capacidade de concertação dos municípios participantes.

2. Os fundamentos da regionalização

Há duas dimensões que são centrais em qualquer processo de regionalização. A primeira é a da devolução do poder aos cidadãos, isto é, aproximar o poder dos cidadãos e criar contexto para uma melhor perceção por parte dos atores políticos das realidades dos territórios. Dessa proximidade há-de resultar a capacidade de melhor olhar para os recursos e capacidades e desenhar políticas, e pode conseguir-se também um nível maior de mobilização das comunidades para o ataque aos problemas. A segunda dimensão é a do desenvolvimento, na medida em que se perceba os territórios e os seus agentes como sede primeira de recursos, capacidades e iniciativa empreendedora. Estas não são problemáticas disjuntas posto que dificilmente há iniciativa e, sobretudo, projeto económico e social sem liderança e sem algum nível de institucionalização. Sintetizando, urge ir por diante com o processo de regionalização porque é preciso reforçar e renovar a democracia e renovar o projeto económico e social que dá fundamento ao dia-a-dia do país.

Mesmo que se admita não ser seguro que a regionalização dará resposta a todos os problemas, a verdade é que parece ser muito questionável que alguém (aparte a minoria instalada nas sedes partidárias nacionais) considere aceitável a situação existente no país em termos de (in)equidade de desenvolvimento regional. Contextos de crise económica e social como os que têm sido enfrentados nas duas derradeiras décadas podem até ter servido para tornar mais patente a necessidade de uma efetiva reforma do Estado. A esse título, a regionalização, muito mais que qualquer projeto de alteração da regulação dos mercados, poderá ser expressão substantiva de mudança estrutural. No dizer de Mozzicafred (2003), este poderá mesmo ser um dos elementos-chave da modernização do Estado.

Ocorre amiúde discutir-se o modelo-base, aparecendo isso como se houvesse solução única. Esquece-se a variedade, em termos de capacitação político-administrativa e de dimensão territorial, que existe na Europa. Por outro lado, invoca-se comummente a tradição de poder local em Portugal, esquecendo-se que a dita tradição remonta a 1976, isto é, à “Revolução dos Cravos”, já que só a partir dessa data tivemos um poder local eleito, que se fez “forte” na medida dos resultados em matéria de criação de infraestruturas e equipamentos que produziu, que, naturalmente, gerou reconhecimento nas populações. Assim aconteceu igualmente com os poderes regionais que foram instalados nas ilhas. Em termos económicos e políticos, o país tem vivido num impasse que importa definitivamente ultrapassar.

Diz-se, também, que Portugal é demasiado pequeno para ser organizado em regiões. Que não é assim dizem-no os casos da Suíça e da Áustria. Mesmo em países com maior dimensão territorial que Portugal coexistem regiões maiores com outras que não apresentam diferença relevante face às 5 entidades geográficas do Continente configuradas pelos espaços de intervenção das CCDRs (Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional) até agora existentes. Por exemplo, no caso da Dinamarca, a população das 14 regiões varia entre 200 e 600 mil habitantes e, no caso da Itália, a média da população das regiões é de 2,8 milhões de habitantes, tendo a região menos populosa 115 mil.

Em Portugal Continental, o mapa da regionalização mais adequado será o que mais se aproxime de uma divisão política que se ajuste ao sentido das comunidades (históricas, culturais) regionais, isto é, que adira ao sentido subjetivo de regionalização (visão vitalista). Uma visão orgânica será de combater por questionar os elementos basilares da identificação da população com a circunscrição territorial que seja definida e o poder político que seja instituído. Importa, igualmente, manter presente considerações de natureza funcional (visão funcionalista), o que se prende com a preocupação em tirar partido dos recursos e atividades dos territórios.

Quer isto dizer que o modelo de regionalização que se possa adotar pode fazer toda a diferença na adesão que possa suscitar por parte dos agentes presentes em cada um dos territórios, e na eficácia que daí possa derivar em matéria de gestão de recursos, capacidade de concertação interna de atores, mobilização das comunidades locais/regionais, e identificação dos eleitores com os eleitos. Havendo condicionantes tecnológicos e escalas críticas de dimensionamento de infraestruturas e equipamentos e respetiva gestão, a descentralização de base municipal só pode resultar insatisfatória, isto é, ineficiente dos pontos de vista social e económico.

3. A delimitação das regiões a instituir

As Comunidades Intermunicipais podem constituir uma entidade relevante no processo de estruturação das regiões, como elemento basilar desse processo. Nesse contexto, podem ter um papel central na dinamização do debate à escala local e sub-regional e na formulação do desenho da regionalização, a nível geográfico e de competências a atribuir ao poder regional. As CCDRs, por sua vez, devem confinar o seu papel ao de instâncias desconcentradas do poder central.

Remetendo para um fundamento orgânico de partição do poder, ou em expressão da ausência de lideranças regionais, ao longo do tempo, foi-se veiculando o discurso de que a solução mais segura seria a de constituir circunscrições regionais decalcadas das NUTS II (Unidades Territoriais para fins Estatísticas de nível II) existentes, que, no essencial, são também as áreas de intervenção das CCDRs. Na visão orgânica, sublinhe-se, não interessa se a partição geográfica de competências vai ou não ao encontro do espaço natural das comunidades. Sabido que o Governo Português submeteu entretanto a Bruxelas uma proposta de alteração das NUTS II, de que sobressai a autonomização definitiva da Área Metropolitana de Lisboa do território envolvente e a criação de 2 novas unidades, uma configurada pelo Oeste e Médio Tejo e outra pela Península de Setúbal, grosso modo, será curioso ver como isso vai conduzir ao questionar da ideia que se foi querendo passar da naturalidade da aposta em 5 regiões.

A ser formalmente aceite essa nova delimitação, ela tem a virtude de desmontar as certezas de muita gente, muitos dos quais declarados opositores da regionalização, mas, sobretudo, abrir espaço para olhar para as áreas metropolitanas (não apenas a de Lisboa) como potenciais circunscrições regionais, a que não falta nem identidade nem massa crítica. Fora daquelas, deixa também espaço para a procura de soluções mais orientadas pela ideia de instituir espaços regionais que se identifiquem com as comunidades, e sejam estruturados com preocupações de funcionalidade e coesão interna.

Referências:
Mozzicafreddo, Juan (2003), “La décentralisation administrative et les innovations en matière de politiques régionales au Portugal”, Sociologia, Problemas e Práticas, 41: 151-179.