Missão (Quase) Impossível: Defender Uma Terra Habitável Contra Uma “Economia Que Mata”¹
Escrevi o primeiro artigo sobre a crise ambiental em 1976. Nesse ano, a concentração média anual de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera foi de 332,03 ppmv (partes por milhão de volume). Em 2009, depois de três anos de intenso envolvimento no processo da Cimeira de Copenhaga (COP15), assisti ao rotundo fracasso dessa tentativa de acelerar o combate às alterações climáticas. O CO2 desse ano chegou aos 387,64 ppmv. Em Maio de 2022 a concentração ultrapassou as 421 ppmv. Desde o início da Revolução Industrial (1750), a concentração de CO2 aumentou mais de 50%. Das 141 ppmv adicionadas nos 272 anos que nos separam de 1750, 89 ppmv foram-no desde esse primeiro artigo que escrevi em 1976. Por outro lado, em Julho de 1969, quando a Apollo 11 permitiu a primeira caminhada humana na Lua, a população mundial rondava os 3,6 mil milhões de seres humanos. Em 2022, somos 8 mil milhões. O dobro da população de 1969, com mais 800 milhões! Num planeta onde as pandemias e a insegurança alimentar regressaram, transformando-se num problema tão “normal” como a extinção abrupta da biodiversidade, o aumento da desertificação e da desflorestação, as ondas de calor, as inundações súbitas, e a subida do nível médio do mar. Com uma moldura política e social caracterizada pelo aumento generalizado da pobreza, da desigualdade, dos movimentos migratórios e risco de guerra global.
O planeta Terra onde nasci já não existe. Temos hoje uma atmosfera com uma concentração de gases de efeito estufa semelhante à que existia no Plioceno, há 3 milhões de anos atrás, quando a temperatura média era quase 3º C superior à atual, e a linha de costa estava 20 metros acima do que ocorre hoje. A humanidade inteira está a viajar para um novo, degradado e hostil planeta, sem precisar de deixar a superfície terrestre. Como disse o SG da ONU, na abertura da COP27: “estamos numa auto-estrada rumo ao inferno, e com o pé no acelerador”. Se continuarmos por este caminho, a crise global do ambiente e do clima será dominada por uma força inercial que a tornará num colapso irreversível.
Crescimento ou Sustentabilidade: a “Nave Espacial Terra”
O lugar onde se decidirá se seremos ou não capazes de vencer os demónios que nos levam para o abismo, situa-se no destino desse monstro de duas cabeças que une política e economia.
A degradação ambiental aumentou exponencialmente desde o final dos anos 70, quando o modelo de capitalismo neoliberal se começou a expandir por todo o planeta, vencendo todos os rivais, incluindo os modelos de economia de mercado regulada. Hoje, os governos estão, sem máscara, ao serviço não dos seus povos, mas às ordens da dinâmica global dos grandes conglomerados financeiros.
A economia neoliberal tanto destrói o ambiente como aumenta o fosso entre pobres e ricos, entre centros e periferias, entre dominadores e dominados. Nessa medida, a luta pela preservação do ambiente é também uma luta pela justiça social e pelos direitos humanos. A questão de vida ou de morte que se coloca é a de aceitar, definitivamente, que a economia deve respeitar os limites biofísicos do planeta. Importa recordar o contributo seminal de Kenneth E. Boulding (1910-1993), um economista que não aceitou a fantasia neoliberal de considerar que a natureza (reduzida a meros “stocks” de matérias-primas e energia) seria um mero subsistema da economia. Ele considerava como loucura afastar o pensamento e a práxis económica das limitações impostas pelas leis da física e pelos princípios da termodinâmica. Se continuássemos com uma economia extractivista e predatória passaríamos de uma irresponsável “economia de cowboy” para a “economia da nave-espacial”, onde viveríamos como astronautas, esmagados por limitações e constrangimentos de toda a ordem².
Mas, muito antes de Boulding, já o grande John Stuart Mill (1806-1873) havia advertido que não poderia existir um crescimento material infinito, e que deveríamos abraçar a moderação de um “estado estacionário” (stationary state) no grau de “riqueza” (wealth), sob pena de sermos compelidos a isso pela “necessidade”. Em vez da desmesura, que hoje visivelmente está a destruir o mais profundo funcionamento do “software” do Sistema-Terra, deveríamos embarcar numa organização da vida colectiva voltada para aspectos mais qualitativos, aquilo que ele designava como o aperfeiçoamento da “arte de viver” (art of living)³.
O Paradoxo de Jevons contra o mito do “crescimento verde”
Mas um dos autores que mais luz lançou sobre o problema especificamente económico do crescimento, foi William Stanley Jevons (1835-1882). Em 1865 publicou um influente ensaio sobre um tema que desde o final do século XVIII preocupava na Grã-Bretanha alguns meios intelectuais, nos negócios, mas também nas ciências, em particular na geologia: o risco da futura escassez de carvão levar à paralisia económica e à turbulência social. Jevons, contudo, não escolheu como ângulo o tema da escassez física do carvão, mas o mecanismo que conduz ao risco de escassez económica do recurso. Aquilo que hoje é designado em economia como o “Paradoxo de Jevons” (também conhecido como rebound effect) é um dos principais argumentos racionais que desmentem os adeptos da teoria de que o aperfeiçoamento tecnológico e os automatismos de mercado resolveriam o problema da escassez dos recursos. Jevons formula um paradoxo que não pode ser respondido nem pelos neoliberais, nem por alguns economistas defensores da possível “desvinculação” (decoupling) entre aumento da riqueza e redução do consumo de energia e matérias-primas, através do incremento cada vez maior da eficiência, que, no limite utópico, apontaria para uma “economia circular”⁴. Tomando o exemplo do carvão, Jevons chamou a atenção para o facto de que embora há mais de um século todos os avanços tecnológicos nos motores “tivessem sido dirigidos para a economia no consumo de carvão, contudo o uso do motor e as quantidades de carvão consumidas aumentaram pari passu com o seu desempenho económico”. Por outras palavras: os ganhos de eficiência no uso do carvão, tornavam o seu consumo mais barato e isso permitia o aumento da procura numa dinâmica expansiva exponencial, motivada pelo estrito mecanismo da dialéctica da oferta e da procura⁵.
A atualidade do Paradoxo de Jevons está bem patente em muitas áreas da economia real contemporânea, para não dizer em todas. Acompanho Darrin Qualman, a propósito do crescimento exorbitante do transporte aéreo de passageiros ser uma contundente demonstração da validade do Paradoxo de Jevons: Entre 1960 e 2016 a eficiência das companhias aéreas no uso de combustível quase quadruplicou (dados do IPCC). Isso levou à diminuição em 60% do custo de viajar para os passageiros. A combinação de bilhetes baratos, com o aumento da população com poder de compra conduziu a que, globalmente, entre 1960 e 2016, o número de passageiros transportados tivesse aumentado 50 vezes⁶.
Reconstruir a ação coletiva internacional
A crise ambiental e climática está numa vertiginosa curva exponencial de crescimento. Entre 1880 e 1981 o aumento da temperatura média da Terra por década foi de +0,08ºC. De 1981 a 2021 o valor por década subiu para +0,18ºC. Isto significa que em 2022 a temperatura média em relação ao período pré-industrial já aumentou 1,2ºC. Ora, todas as projecções apontam para que nas próximas 3 décadas a temperatura média por decénio escalará para +O,34ºC, atingindo +2,2ºC em 2050.
O Acordo de Paris de 2015 não é um instrumento sério de direito internacional público. A Convenção do Clima de 1992 (UNFCCC), para ser eficaz como lei internacional, necessitaria de ser acompanhada por protocolos, que definissem objectivos, obrigações das partes, sistemas de monitorização, e penalidades para incumprimento. Foi isso que aconteceu com o protocolo de Quioto (que esteve vigente de 2005 a 2012).
Ora, o Acordo de Paris não tem nenhuma dessas características vinculativas do protocolo. Os objectivos nacionais são meramente voluntários. As infracções não são acompanhadas de penalizações. Como foi possível celebrar um instrumento retórico, sem uma pinga de coragem, como um grande sucesso? Em grande medida, isso ficou a dever-se ao desejo do presidente Obama fazer voltar os EUA à diplomacia climática, depois do afastamento nos anos de G.W. Bush, Jr. Mas como o Senado dos EUA votaria contra um eventual protocolo de Paris (por ser uma lei internacional vinculativa), foi preciso inventar um simulacro que carece de aprovação da câmara alta do Capitólio. É um gritante exemplo de moeda falsa que engana grosseiramente a opinião pública mundial!
Por outro lado, desde 1988, que o estatuto jurídico do clima como “preocupação comum da humanidade” nega tudo o que já sabemos sobre o sistema-Terra e perpetua um equívoco grosseiro que tem levado os Estados e os sistemas económicos sob sua jurisdição, a tratar o clima como vazio jurídico e externalidade económica. Não admira que nas COP os países pratiquem um jogo de soma nula, em que uns ganham o que os outros perdem (veja-se a incapacidade de reduzir as emissões), quando a natureza do clima deveria ser a de um “património comum da humanidade” (como é reconhecido no caso pioneiro da lei portuguesa do clima de 2021), pois resulta da combinação e equilíbrio de todos os campos e dinâmicas que constituem o software activo do Sistema-Terra (atmosfera, biosfera, criosfera, etc.), absolutamente incompatível com a rígida concepção de soberania territorial prevalecente nas relações internacionais.
Carpe diem….
Persistir no extrativismo e na exploração, de recursos e pessoas, em vez de colocar a nossa imaginação política e social na pista para uma pacificação das relações entre economia e ecologia, no quadro dos limites biofísicos do planeta, seria um profundo sinal de indiferença ética perante a maior crise existencial que a humanidade já enfrentou na sua história. Se não formos capazes de mudar o modo de habitar a Terra, crescendo como cidadãos e como nações, dominando as pulsões do consumismo desmesurado – à escala nacional e internacional – será o próprio colapso a encarregar-se de restaurar o equilíbrio destruído. Nessa altura será demasiado tarde para arrependimentos.
Referências: ¹ Papa Francisco, Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, § 53, 2013. ² Kenneth E. Boulding, "The economics of the coming spaceship Earth", Environmental Quality in a Growing Economy, H. Jarrett (ed.), Washington, D.C., The John Hopkins Press, 1966, pp.3-14. ³ John Stuart Mill, Principles of Political Economy with some of their Applications to Social Philosophy, (1ª ed.: 1848), New York, Reprints of Economic Classics, Augustus M. Kelley, 1965. ⁴ Ernst von Weizäcker, Amory B. Lovins e L. Hunter Lovins, Factor Four. Doubling Wealth, Halving Resource Use, London, Earthsan, 1998. ⁵ William S. Jevons, The Coal Question. An Inquiry Concerning the Progress of the Nation, and the Probable Exhaustion of our Coal Mines, London, MacMillan, 2th ed. 1866. Ver também: “On the probable exhaustion of our coal mines” in R. D. Collison Black (ed.), Papers and Correspondence of William Stanley Jevons, London, MacMillan, 1868, vol. 7, pp. 28–35. ⁶ Darrin Qualman, “Efficiency, the Jevons Paradox, and the limits to economic growth”, 14 08 2017. https://www.darrinqualman.com/efficiency-jevons-paradox/
Viriato Soromenho-Marques
(1957)
Professor catedrático de Filosofia da Universidade de Lisboa