O “MEU” ADRIANO
Sempre que escrevo qualquer texto sobre o Adriano, acabo sempre por dizer, logo de início que o Adriano, foi, para mim, muito mais do que um cantor…foi um amigo, um amigo íntimo, um companheiro de bons e maus momentos, um cúmplice tanto nas músicas como em muitos retalhos da minha vida. Nós convivemos quase diariamente durante os últimos cinco anos do Salazarismo, andámos nos mesmos combates políticos e académicos numa altura de grande opressão, de grande repressão, passámos pelas crises académicas de 64 e 69, assistimos à prisão de muitos companheiros, assistimos à fuga para o estrangeiro de muitos outros e…sofremos alguns desgostos de saber da morte de colegas nossos na guerra colonial.
Mas o Adriano era também o amigo que a todos animava com o seu bom humor, com as suas histórias, com as suas aventuras amorosas. O Adriano era o centro das atenções quando estava presente.
Antes de eu o conhecer pessoalmente o Adriano já andava pela música de Coimbra. Ele vem de Avintes em 1960, vai inicialmente viver para um quarto numa residência para estudantes na Rua Sousa Pinto, junto ao “Ninho dos Matulões”. Nessa altura dedicava-se mais ao voleibol, mas, como tinha aprendido a tocar viola ainda em Avintes, cedo começou a participar na Tuna Académica, no Orfeão, e até no Grupo de Danças da Academia de Coimbra. Na mesma residência do Adriano havia outro estudante que era um excelente guitarrista – o Eduardo Melo. É com ele que Adriano dá os primeiros passos na canção de Coimbra, tendo cantado, também experimentou a guitarra de Coimbra e tocou viola. Nessa altura, 1960, 61, Adriano começa a integrar o grupo “dos Melos”, Eduardo Melo, Ernesto Melo e Durval Moreirinhas em serenatas e espetáculos, tendo nesse início dos anos 60 gravado em Gaia o seu primeiro disco de fados. Em 1961 Adriano transfere-se para a Faculdade de Direito de Lisboa. Por mais de um ano ele abandona o fado de Coimbra. Em 1962 volta de novo a Coimbra, mas desta vez para a República do Rás Te Parta.
A República do Rás Te Parta era um local onde residiam alguns dos estudantes ativistas, de esquerda da academia; era residência, mas era também um local de reunião de convívio de música…e de conspiração.
Comecei por conviver com ele na casa do António Portugal, em tertúlias poéticas, políticas e musicais em que o Portugal pontificava, mas em que aparecia o Orlando de Carvalho, o Manuel Alegre, o António Bernardino, o Sucena, entre tantos outros. Foi ali que vi nascer o primeiro disco em que com ele colaborei com a minha viola: “Trova do Vento que Passa”, foi nesse momento, nessas noites de ensaios que assisti ao surgimento do “movimento das trovas” que pretendia ser a introdução de um estilo renovado na canção de Coimbra para isso contando com a inspiração poética do Manuel Alegre. Seguiram-se vários espetáculos em que este novo género foi apresentado ao público, alguns espetáculos em que o José Afonso também colaborou. Nascia assim uma “terceira via “da canção de Coimbra que trazia uma temática diferente, comprometida, com poemas novos e com um ritmo diferente. Adriano fica ligado a essa renovação que se tornou definitiva e que continua a ser interpretada pelas jovens gerações de intérpretes da música de cariz coimbrão.
Depois disso também andei com ele pelo teatro académico no CITAC, onde ele participava como ator em alguns espetáculos e eu também ajudava na parte musical.
Andámos juntos em várias digressões desse organismo académico, em que o Adriano era o animador principal dessas maçadoras e demoradas viagens. Ele brincava, metia-se com as meninas, contava anedotas e cantava, cantava muito e punha o grupo todo a cantar. Foi numa dessas viagens que eu o ouvi pela primeira vez no Cantar da Emigração que, mais tarde, gravei com ele.
O grupo do António Portugal, que nessa altura era o mais ativo em Coimbra, não prescindia do Adriano e, para toda a parte onde atuava, em saraus, serenatas, espetáculos na TV, serenatas radiofónicas, festas, etc, o Adriano era figura presente, com o Berna, comigo e muitas vezes também com o Manuel Borralho.
Cada espetáculo gerava sempre uma história com o Adriano; o seu bom-humor e a sua saudável rebeldia trazia sempre um episódio hilariante.
Como me lembro bem do espetáculo da inauguração das instalações da SONAE no Porto em que o Adriano conseguiu “desviar” quase todo o cenário e os adereços da festa e trazer toda aquela tralha no táxi do Sr. Leandro para Coimbra! Como me lembro da cerimónia da inauguração das instalações da FNAT da Foz do Arelho em que o Adriano se preparava para trazer para Coimbra uma série de presentes que o município das Caldas da Rainha tinha preparado para oferecer ao Sr. Ministro das Corporações; é claro que fomos todos detidos pela PIDE em plena cerimónia…
Recordo também a falta de apego que o Adriano tinha pelo dinheiro; gravámos um disco, recebeu o dinheiro e…passado um ou dois dias virava-se para mim e dizia: queres ir tomar a bica a Lisboa? E atravessava a Praça da República, abeirava-se de um dos carros do Albertino dos Táxis e dizia leve-nos à pastelaria Suíça!
Enfim…muitas outras histórias houve em que eu participei com o Adriano.
Mas em 1969 eu sou expulso da Universidade e metido coercivamente a meio do curso no Serviço Militar onde meses antes o Adriano já estava. Ambos fomos para a arma de Cavalaria, ele foi destacado para a Polícia Militar e eu fui para atirador de cavalaria. Ou seja, o Adriano ficou a salvo da mobilização para a guerra colonial, mas eu fiquei praticamente mobilizado para a Guiné. Pois o Adriano, através dos contactos que tinha, preparou tudo para eu, caso quisesse, desertar… foram longas as conversas que tivemos a sós sobre este assunto. Felizmente que não foi necessário pois em abril ou maio de 1970 a “primavera marcelista”, por imposição do novo reitor da Universidade de Coimbra – Gouveia Monteiro – amnistiou os estudantes expulsos e incorporados no serviço militar e eu voltei à universidade para terminar o meu curso. Mas, em 69, quando estava em Santarém ainda gravei com ele um LP – O CANTO E AS ARMAS – praticamente todo com poemas do Manuel Alegre, composições do Adriano e arranjos meus, tudo feito no estúdio, numa maratona! Quando entrámos para o estúdio onde nos esperava o Moreno Pinto, nenhum de nós sabia uma só canção! E tivemos que o gravar em 24 horas porque o Adriano estava de ronda da Polícia Militar e eu estava desenfiado da Escola Prática de Cavalaria em Santarém com a ajuda do Salgueiro Maia.
O Adriano era assim mesmo, imprevisível, sem impossíveis, valente, generoso, amigo do seu amigo.
Como músico ele era um repentista, as melodias surgiam-lhe a qualquer momento e ele pegava na viola, “encaixava-lhe” um poema que ele trazia na cabeça e, em cinco minutos, surgia uma canção.
Fez imensas coisas que nunca chegou a gravar pois após as ter feito e cantado uma vez…nunca mais se lembrava.
Em 1972 eu termino o curso de Medicina, sou de novo chamado para o serviço militar, após concluir 24 meses como médico militar vou para Tabuaço fazer o Serviço Médico à Periferia, depois entro no internato da especialidade, sigo a carreira médica hospitalar e, praticamente deixei de me dedicar à música, tendo apenas contactos esporádicos com o Adriano. Depois dá-se o 25 de Abril e ele era dos cantautores mais requisitados para andarilho, de festa em festa, de reunião em reunião, de norte a sul do país, gratuitamente a cantar…a cantar por militância, tantas e tantas vezes em condições precárias e sem qualquer caché.
Todavia, sempre que nos encontrávamos era uma festa. O Adriano sempre generoso e emotivo fazia-me uma enorme receção! Eram abraços, eram recordar histórias do passado, eram aquelas gargalhadas dele que ainda parece que as ouço…, mas quase sempre esses encontros, essas conversas dele, terminavam numa fase mais depressiva e vinha a tristeza…as suas mágoas… as várias mágoas… e pedia-me segredo.
Além de um amigo, Adriano era uma voz como conheci poucas, um democrata, um combatente e um homem valente! Era excessivo em tudo…até no modo como decidiu morrer.