Testemunhos da História – No cinquentenário do assassinato de Ribeiro Santos

“Morte à PIDE!”, “Abaixo o Fascismo”, “Abaixo a Guerra Colonial”

Estas eram as palavras de ordem que orientavam as lutas académicas há 50 anos. No dia 12 de outubro de 1972, pelo final da tarde, num anfiteatro pré-fabricado do ISCEF (atual ISEG), para onde estava convocado um meeting contra a repressão, o agente da PIDE/DGS António Joaquim Gomes da Rocha assassinou o jovem estudante de Direito José António Ribeiro Santos e atingiu ainda o estudante de Direito José Lamego e o estudante de Económicas José Alberto Ribeiro dos Reis.

Natural de Lisboa, Ribeiro dos Santos nasceu a 19 de março de 1946, frequentando à altura da morte o 4º ano de Direito. Era filho de Maria Antónia Leitão Ribeiro Santos e de Vasco Artur Ribeiro Santos, médico assistente dos Hospitais Civis de Lisboa. Frequentou a escola “Avé Maria” e depois o Liceu Pedro Nunes, onde se inscreveu nas lutas académicas. No auge da contestação que opôs o associativismo estudantil ao Ministério de José Hermano Saraiva (1969/70) e depois ao Ministério de Veiga Simão (1970/74), Ribeiro Santos é sucessivamente membro da Secção de Propaganda, vice-presidente para as Relações Internas, Presidente da Mesa da Assembleia-Geral e delegado de curso do 4º ano na Associação de Estudantes de Direito. Em 1972, ano do assassinato, aderira à Federação de Estudantes Marxistas-Leninistas, uma organização juvenil do Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado (MRPP), fundando, com outros colegas de diferentes universidades, o movimento “Ousar Lutar, Ousar Vencer”.

Dias efervescentes em que “não aconteceu nada”

A perceção pública dos factos foi deformada, de forma extremada, pela imprensa legal, sujeita à censura. Nesta imprensa, os factos não passaram de “incidentes” com estudantes, menorizados nas poucas “notícias” publicadas e completamente dominadas, no campo interpretativo, pelos três comunicados oficiais, saídos nos dias 13, 14 e 16 de outubro. O primeiro comunicado, da responsabilidade da Direção do ISCEF (e veiculado pela Secretaria de Estado da Informação e Turismo), foi publicado com escassos comentários, nos jornais O Século, Diário de Lisboa, República (dos dias 13 e 14 de outubro) e na revista Seara Nova do mês de novembro. Na verdade, sem grandes diferenças de conteúdo entre a imprensa oficiosa e a imprensa em que se fazia ouvir a oposição moderada. De resto, o Diário de Lisboa tinha aberto a primeira página do dia 14 com uma implícita condenação dos grupos de jovens que apedrejaram montras de bancos e o Ministério das Corporações no centro de Lisboa, após o funeral de Ribeiro Santos. A acrescentar aos comunicados oficiais, a imprensa acrescentava uma pequena nota da redação anunciando a morte de Ribeiro Santos. O mesmo acontecendo com os incidentes que ocorreram durante o funeral, no Largo de Santos, a 14 de outubro, onde a polícia carregou para impedir o transporte da urna ao ombro de estudantes, como estes pretendiam.

Dá-se a conhecer a “versão oficial” dos acontecimentos. Tendo sido encontrado um “bufo” a recolher informações sobre um meeting, a ocorrer no dia 12 de outubro, a Direção do Instituto e a Direção da Associação Académica puseram-se de acordo em chamar agentes da PIDE/DGS para identificar o intruso. Entretanto, aquele “indivíduo foi levado por um grupo de estudantes para um anfiteatro”. À chegada dos agentes, que negaram reconhecer o agente “retido” pelos estudantes, “suscitou-se burburinho, havendo um grupo molestado esse indivíduo, enquanto outro, apesar do apelo de numerosos estudantes para restabelecer a calma, atacava os dois agentes. Gerou-se assim, grande confusão e verificaram-se atropelos dentro do anfiteatro, havendo sido disparados alguns tiros e sabendo-se que foram transportados dois feridos, em automóveis particulares”.

Pelo que escondia (e também pelo que sugeria), esta passou a ser a versão que originou a interpretação dos acontecimentos, pela parte do Ministério do Interior – que fez sair um comunicado no dia 14 de outubro. A imprensa clandestina e semi-clandestina refere-se-lhe de forma diferente. O jornal Avante!, refletia a visão dos “estudantes unitários” e o panfleto da FEML expressava a versão dos estudantes maoistas. Neste último caso, acentuava-se a justeza do “expurgo” do “bufo” e o “castigo merecido” que infligiram ao agente infiltrado e aos agentes da PIDE/DGS chamados ao Instituto.

Na versão oficial, os agentes da PIDE/DGS tinham sido deliberadamente atraídos para um tribunal popular, vaiados e agredidos, sendo um deles completamente “dominado”, conseguindo o outro “embora agarrado pelas costas” (…) “retirar a pistola da cintura e fazer três tiros, com o propósito de intimidar”. O comunicado do M.I. conclui a sua informação afirmando que os feridos foram conduzidos por automóveis particulares ao Hospital de Santa Maria, tendo a PSP comunicado, pelas 21 horas, que um deles tinha falecido. Considera ainda o Comunicado do M.I. que “comunistas e maoistas responsabilizam-se mutuamente por estas ações “, que o poder considerava subversivas, “mas mostram-se unidos no ataque à autoridade e às instituições”.

Na verdade, a informação veiculada pela FEML (comunicado de dia 13 de outubro) acusava do sucedido, em igualdade de circunstâncias, “o triunvirato PIDE – direção da escola – direção revisionista”: A polícia teria entrado provocatoriamente no meeting “com a cobertura dada pelos revisionistas”. E terminava, em toada militante, própria da época: “O fascismo apertou o gatilho e o revisionismo apontou-lhe o alvo”.

Os “unitários”, que dominavam a Direção do ISCEF, consideravam, através de um comunicado da UEC (União dos Estudantes Comunistas), e indiretamente através do Avante! (nº 447, nov. 1972), que o assassinato de Ribeiro Santos tinha sido um “crime premeditado”, através de uma provocação organizada pela PIDE. Coibia-se de apontar o dedo aos maoistas, mas, não deixava de considerar que as manifestações que se seguiram ao assassinato “não foram ainda mais amplas e massivas devido à ação sisionista de alguns grupos de pseudo-revolucionários”. Queiramos ou não, o desenrolar dos acontecimentos ficou indissoluvelmente ligado à intensa luta ideológica que, em 1972, opunha “unitários” e maoistas nos meios académicos.

O acontecimento teve enormes repercussões públicas, com manifestações de rua e greves estudantis em Lisboa e no Porto nos dias seguintes e encerramento de diferentes Associações de Estudantes. Ao funeral de Ribeiro Santos associaram-se cidadãos reconhecidos publicamente, entre eles Magalhães Colaço, Urbano Tavares Rodrigues, Vasco da Gama Fernandes, João Abel Manta, Aquilino Ribeiro Machado, os realizadores António Lopes Ribeiro e Fernando Lopes, Maria de Lurdes Modesto, a atriz Hermínia Silva, entre muitos outros.

O silêncio ruidoso da burocracia fascista dominante

Em 18 de outubro de 1972, Gonçalves Rapazote, o ministro do Interior, mandou abrir um inquérito. O PIDE Gomes Rocha foi ouvido, houve mesmo uma reconstituição do “incidente”, mas prevaleceu a tese do “disparo acidental que foi atingir o estudante Ribeiro Santos na região lombar”. Em função de sucessivos artifícios burocráticos, o Tribunal Militar – onde deveria ter sido julgado o Pide que assassinou Ribeiro Santos -, mandou arquivar o processo, invocando “legítima defesa”.

Depois do 25 de Abril, o assassino não foi julgado. António Joaquim Gomes da Rocha, agente de 2ª classe, fugiu em 29 de junho de 1975 da Prisão de Alcoentre, na companhia de mais de oito dezenas de agentes que assim se furtaram à ação da justiça, alguns definitivamente.

A rua onde vivia Ribeiro Santos – a Calçada de Santos, nº 37 -, é hoje Calçada Ribeiro Santos. Uma placa evocativa enuncia o seu nome, a data de nascimento e a menção de “resistente à Ditadura, que perdeu a vida pela causa da Liberdade”.

Acontecimentos marcantes do Cinquentenário da morte de Ribeiro Santos:

“Conferência Internacional Resistência juvenil, ditaduras e políticas de memória – O assassinato de Ribeiro Santos em 12 de outubro de 1972”, Auditório da Torre do Tombo, 11 e 12 de outubro de 2022

Mostra documental. Torre do Tombo, com fotografias inéditas do funeral da autoria de Zacarias Duarte Ferreira, 7 de outubro a 10 de janeiro de 2023

“O dia em que perdemos o medo”, documentário de Diana Andringa, RTP2, dia 12 de outubro de 2022

“Naquele dia não passou na Televisão”, Teatro do Vestido, no Museu do Aljube Resistência e Liberdade, 19 a 21 de outubro de 2022