Um Novo Olhar Sobre a Ameaça Nuclear

A situação do mundo nos dias que vivemos é causa de sérias preocupações sobre o que nos pode trazer o futuro próximo, a cada um de nós, à humanidade, à sobrevivência da vida no planeta. À caminhada sem fim à vista para uma natureza profundamente transformada em resultado de alterações climáticas — a que não se dá o combate possível, antes se vê agravada pelos múltiplos conflitos a que se assiste, designadamente, na Europa, em África e na Ásia — associa-se, no plano das actividades produtivas, a exploração do trabalho numa corrida persistente à maximização do lucro para uma minoria que enriquece à custa da degradação das condições de vida, de fome, miséria e morte, para a grande maioria.

A guerra, em si mesma uma fonte significativa de poluição, está a levar a um crescimento significativo do recurso a matérias primas energéticas — petróleo e carvão — de efeitos particularmente nocivos para o ambiente.

Neste quadro insere-se a irresponsável ameaça da utilização da arma nuclear.

A destruição de Hiroshima e Nagasaki vivida por Albert Einstein levou-o a escrever que “O poder do átomo, desencadeado, tudo mudou, excepto a nossa maneira de pensar e por isso encaminhamo-nos para uma catástrofe sem paralelo”.

Três quartos de século volvidos, forçoso é reconhecer a actualidade do pensamento de Einstein. Mostram-na os comportamentos de figuras influentes nos círculos dirigentes das potências dominantes, detenham ou não armas nucleares nos seus arsenais militares.

No momento actual, tendo em conta as suas raízes e as circunstâncias que a rodeiam, há razões para recear que a guerra por procuração que se trava na Ucrânia possa evoluir para um conflito nuclear entre os Estados Unidos da América/OTAN e a Federação Russa, transformando-se na maior catástrofe da história da humanidade.

Como é dito numa Carta Aberta posta a circular no princípio de Outubro pelo “Institute for the Future of Life”, uma respeitável organização não governamental com sede nos EUA, “Quebrar a actual espiral de escalada é um imperativo moral global, porque as armas nucleares ameaçam não apenas aqueles que são visados por elas, mas todas as pessoas da Terra.[i]

Tem interesse recordar que em plena Guerra Fria o mundo passou por um transe de comparável gravidade aquando da chamada “crise dos mísseis de Cuba”. O perigo foi afastado pela via da negociação entre as partes envolvidas, via que deve ser a única a seguir numa situação de confronto em que é previsível a eclosão de um conflito militar ou quando se impõe pôr fim a uma guerra em curso, o que não será obviamente possível sem concessões de ambas as partes. Em finais de Outubro de 1962, John F. Kennedy e Nikita Khrushchev chegaram a um entendimento que pôs fim aos trabalhos de instalação na ilha por parte da então União Soviética de sistemas de lançamento de mísseis com capacidade nuclear e à retirada dos que já lá se encontrariam, em troca da retirada da Turquia de mísseis nucleares americanos, neste caso já aí instalados havia anos, a que se juntou o compromisso de que os EUA nunca invadiriam Cuba[ii]. Em Dezembro a crise estava sanada.

Cerca de seis meses mais tarde, a 10 de Março de 1963, Kennedy proferiu na American University um discurso notável, porventura um dos mais notáveis alguma vez proferido por um presidente americano. Foi um discurso em defesa da Paz e do desarmamento nuclear, assente no possível entendimento entre o seu país e a União Soviética. Esse discurso abriu caminho ao acordo assinado entre as duas potências que proibia a realização de ensaios nucleares na atmosfera, no espaço exterior ou em meio sub-aquático.[iii]

Há no discurso de Kennedy várias passagens que merecem ser recordadas. Talvez a seguinte, mais do que outras: “(…) não sejamos cegos às nossas diferenças — mas também direccionemos a atenção para os nossos interesses comuns e para os meios pelos quais essas diferenças podem ser resolvidas. E se não podemos acabar agora com as nossas diferenças, pelo menos podemos ajudar a tornar o mundo seguro para a diversidade. Pois, em última análise, o nosso elo comum mais básico é que todos nós habitamos este pequeno planeta. Todos nós respiramos o mesmo ar. Todos nós prezamos o futuro de nossos filhos. E todos somos mortais.

A verdade é que John Kennedy conseguiu impor-se aos interesses e pressões de altas figuras políticas e militares estado-unidenses para chegar onde chegou. O prestigiado economista e professor Jeffrey Sachs[iv] diz-nos no seu livro “Mover o Mundo: o caminho da Paz de JFK” que Kennedy usou de todos os seus poderes de persuasão para convencer os membros do Estado-Maior General das Forças Armadas, a direita republicana mais dura e os democratas sulistas, a aceitar o Tratado, comprometendo-se a não deixar aos militares mãos livres para levar por diante ensaios nucleares subterrâneos.[v]

Noutra passagem do mesmo discurso Kennedy afirma o seguinte: “(…) ao mesmo tempo que defendemos nossos próprios interesses vitais, as potências nucleares devem evitar os confrontos que levam o adversário a escolher entre uma retirada humilhante ou uma guerra nuclear”. Adiante, esclarece o seu pensamento; “A que paz me refiro? Que tipo de paz procuramos? Não uma Paz Americana imposta ao mundo pelas armas de guerra americanas. Não a paz da sepultura ou a segurança do escravo. Falo de paz genuína, o tipo de paz que torna a vida na terra digna de ser vivida, o tipo que permite que homens e nações cresçam, tenham esperança e construam uma vida melhor para seus filhos – não apenas paz para os americanos, mas paz para todos, homens e mulheres – não apenas paz no nosso tempo, mas paz para todos os tempos.”

Seis meses depois, em 22 de Novembro, o Presidente Kennedy era assassinado em Dallas, no Texas.[vi]

Os tempos mudam. Aquilo a que vimos assistindo nestes dias está em frontal contradição com as palavras de Kennedy, nos Estados Unidos como noutros países, não é o Presidente e a administração federal que definem as políticas a seguir. Poderosos interesses determinam, por vezes tragicamente, o seu destino. Já dois anos antes Dwight Eisenhower que fora o comandante supremo das forças militares ocidentais na Europa no período final da 2ª Guerra Mundial, chamara a atenção para a ameaça que poderia vir a representar a poderosa indústria dos armamentos em contínua ascensão desde os anos 40 do século passado. Em 1961, quando o general-presidente se despediu do povo americano fê-lo com estas palavras em que pela primeira vez surge o termo “complexo militar-industrial”: Na esfera do governo, devemos precaver-nos contra a aquisição de influência injustificada, procurada ou não, pelo complexo militar-industrial. (…) Nunca devemos deixar que o peso dessa influência coloque em risco as nossas liberdades ou processos democráticos”.

A situação que hoje se vive na Europa e no mundo não deve ser objecto de análise sem ter em conta todo um passado onde se incluem os anos da chamada “guerra fria”. Há em muitos espíritos a preocupação justa de que deliberadamente ou por acidente possa vir a dar-se uma conflagração nuclear. No momento presente parece-nos improvável que isso venha a acontecer. Há uma guerra de informação em curso e a informação que nos chega é em grande medida falsa ou deturpada. Neste contexto importa fazer notar que a existência de dispositivos ou vectores nucleares armados com explosivos nucleares em estado de alerta permanente, prontos a disparar em menos de 15 minutos, é uma realidade com a qual convivemos há décadas. Os EUA e a Federação Russa, nomeadamente, mantêm, cada um deles, cerca de 900 ogivas nucleares naquela situação. As armas nas condições de prontidão são armas estratégicas de grande poder explosivo e raio de alcance[vii]. Entretanto, a Rússia e os Estados Unidos desenvolveram e possuem já explosivos nucleares de baixa potência que são designados por “armas nucleares tácticas”. As armas tácticas, mais leves e de menores dimensões, destinam-se a ser usadas no campo de batalha utilizando dispositivos de lançamento de curto alcance. É difícil admitir que uma arma nuclear táctica possa ser utilizada a poucos quilómetros duma frente de batalha já que ambas as partes em conflito seriam expostas aos efeitos da explosão: a radiação, a onda de choque, a onda de calor e a contaminação radioactiva que perdurará no tempo. Triste fruto do engenho humano, as armas tácticas mais modernas são, imagine-se, de potência regulável, como um equipamento de utilização doméstica, para aquecer uma sala por exemplo. A versão mais recente da ogiva táctica americana B61, pode ser configurada para libertar entre 300 toneladas e 50 mil toneladas-equivalente de TNT de energia explosiva. A consideração de que os 100 mil mortos de Hiroshima resultaram da explosão de uma bomba de 15 t equivalente de TNT, levará a pensar duas vezes sobre a resposta de um adversário que possua, também ele, armas nucleares. A recente divulgação, em 27 de Outubro último, do documento de Revisão da Postura Nuclear dos EUA, não exclui a possibilidade de “em circunstâncias extremas” utilizar a arma nuclear designadamente contra a China ou a Rússia, mas também contra o Irão e a Coreia do Norte, “em defesa de interesses vitais dos Estados Unidos ou dos seus aliados e parceiros (…)”. A Federação Russa já anteriormente adoptara uma posição equivalente ao esclarecer que só usará a arma nuclear se atacada com armas nucleares, ou perante uma “ameaça existencial” que se coloque à nação.

A utilização pela Rússia de uma arma nuclear táctica lançada sobre território ucraniano parece altamente improvável. A direcção russa afirmou não ter qualquer intenção de o fazer e a sua utilidade no plano militar é duvidosa.

A guerra que se trava na Ucrânia insere-se num caminho que vem sendo seguido desde o fim da segunda Guerra Mundial pelos círculos dirigentes dos EUA no sentido de impedir, no plano geopolítico, a transição que parece hoje inevitável de um mundo unipolar para uma nova época histórica em que não há lugar para uma potência hegemónica que comande os destinos da humanidade. A agitação, a instabilidade que se vive são resultado inevitável da vontade de alcançar um tal objectivo.

Os riscos de guerra nuclear no plano global, apesar da ignorância sobre as suas consequências por parte de alguns políticos que representam interesses poderosos, são suficientemente bem conhecidos e avaliados para que se corra o risco de provocar a catástrofe. Que, aliás, poria fim ao extraordinariamente lucrativo negócio da guerra, que interessa ao complexo militar industrial norte-americano e a numerosos outros fabricantes de armas. Enquanto for possível, será a guerra convencional que lhes interessará estimular e fazer proliferar.

Notas:
[i] https://futureoflife.org/open-letter/open-letter-against-reckless-nuclear-escalation-and-use/
[ii] https://www.britannica.com/event/Cuban-missile-crisis
[iii] A assinatura do Tratado teve lugar a 25 de Julho de 1963, após escassos 12 dias de negociações
[iv] Para conhecer melhor Jeffrey Sachs ver o artigo “Paz sem Fronteiras” publicado no site da OTC-Organização dos Trabalhadores Científicos (https://otc.pt/wp/2022/08/31/paz-sem-fronteiras/)
[v] Ashutosh Jogalekar, “JFK, nuclear weapons and the 1963 Peace Speech: How far have we come?”, Scientic American, June 10, 2013 (https://blogs.scientificamerican.com/the-curious-wavefunction/jfk-nuclear-weapons-and-the-1963-peace-speech-how-far-have-we-come/)
[vi] A este respeito ver o artigo do economista Paul Craig Roberts: https://www.paulcraigroberts.org/2022/01/18/the-assassination-of-president-john-f-kennedy/
[vii] Podem atingir o milhão de toneladas-TNT e um alcance até 10.000 km