Agustina e os confrontos com a História
A história será apenas / um indício para a história / um sinal que nos escapa
José Tolentino Mendonça, «Strange Eyes», De Igual para Igual
1. Com a sortílega sugestão da aura sapiencial e do estilo sentencioso, a obra de Agustina Bessa-Luís reconhece e evidencia, no âmbito do pacto ficcional dos seus romances, novelas e contos, e nas margens desse protocolo de leitura (conferências e testemunhos, páginas de memórias e literatura de viagem, artigos e ensaios) que é na História que se inscreve toda a existência do ser humano, todo o seu contexto de ser de relação (ora mais de convivência comunitária, ora mais de recolhimento solitário) e até todo o seu habitat geofísico ou edificado, conservado ou transformado.
Agustina não confunde essa História enquanto devir temporal da presença do homem ao mundo com a historiografia que pretende pesquisá-la, documentá-la e narrá-la com objectiva e autorizada referencialidade. Aliás, é pensando nessa disciplina científica e avizinhando-se das prevenções de Karl Popper e da modernidade tardia contra a Miséria do Historicismo que Agustina uma e outra vez reponta com humor crítico:
«A História é uma ficção controlada», porque «A verdade […] jaz encoberta debaixo dos véus da razão prática e da férrea mão da angústia humana.» (Adivinhas de Pedro e Inês).
O que essa asserção, retoricamente peremptória, quer significar é uma perspectiva de construção discursiva, que coenvolve uma múltipla motivação e um horizonte vário de criação alternativa: uma percepção da relatividade dos acertos epistemológicos dos historiadores e dos seus êxitos heurísticos na consecução dos seus bons desígnios de pesquisa e análise dos dados empíricos que constituem em seu objecto formal de estudo – e uma correlata legitimação de tentativas de visão diversa dos mesmos fenómenos históricos; o discernimento de que não há historiografia relevante que não envolva, de modo mais assumido ou mais tácito, uma teoria da História – e uma correlata reivindicação e prática intercadente de uma própria (e bem peculiar) historiosofia; o entendimento de que toda a experiência humana se reveste de historicidade e toda a instância, individual ou colectiva, do humano viver (sentir, pensar, agir…) tem a sua própria historicidade, mais ou menos partilhada em graus variáveis de autoconsciência ou de alienação – e o correlato projecto de inscrever a historicidade do pessoal projecto de escritora no caleidoscópio de historicidades em que se constitui a sua escrita de narrativa ficcional e referencial que – seja quando se orienta para uma convenção comunicativa de congruência com os factos do mundo empírico e de informação unívoca e pertinente para a inserção nesse mundo, seja quando se rege pela convenção estética de criação ficcional de mundos possíveis e de polivalência significativa – não deixa de narrar «histórias», nem aceita abdicar da «paixão de imaginar» e do «amor pela arte de contar». E, sem paradoxo, é nas réplicas pós-modernas do romance histórico, mais do que na novelística de actualidade, que Agustina varia a óptica narrativa, inculca versões dúplices dos mesmos acontecimentos, instaura a indeterminação semântica e vulnerabiliza a verosimilhança.
2. Se Samuel Usque pro domo sua chamava a «língua que mamei» ao português em que profere a Consolação às Tribulações de Israel, a escritora que o recriará no romance Um Bicho da Terra bem pôde dizer que fora criada no «gosto de escutar e contar histórias». Como impulso primeiro da sua obra polígrafa, nada pode disputar a primazia a esse gosto de rememorar, imaginar e narrar histórias. Todavia, essa obra é tão ampla e complexa, tão prismática e subtil, que vai responder a densa congregação de motivações e dotes, de aquisições e propósitos. Só assim a Agustina de Contemplação Carinhosa da Angústia se propôs ser «testemunha sensível dos costumes, circunstâncias e discursos da [sua] época»; só assim professou que um escritor digno da sua vocação – ao cimo da aspiração humana a iluminar «com paixão uma realidade» – há-de obedecer ao alto imperativo de fazer valer cada livro como pregnante «documento cultural»; e a esse imperativo chamou Agustina «uma ética» condutora de todo o projecto e trajecto de escritor em meio do «princípio da incerteza» (num perspectivismo gnoseológico e discursivo que não anda longe do Nietzsche a quem vai buscar, logo no primeiro fascículo dos Contos Impopulares, de 1951, a epígrafe que assevera: «Todo o trabalho importante […] exerce uma influência moral.»).
Essa concepção da obra de arte literária não é afecta à lição edificante, nem ao compromisso militante. Não por divórcio esteticista, por irresponsabilidade social ou por frivolidade política, mas sim por apego à autonomia axiológica da criação estética e ao seu «valor cultural» de risco, na lucidez corajosa perante «a mobilidade da vida», imune ao «fanatismo da verdade» e ao «delírio da felicidade». Não sofre contestação, porém, a importância que os problemas sociais e económicos, a acção política e as ideologias na obra que Agustina coloca fora e acima da prosa corrente da «burocracia de sentimentos» e dos «inúmeros romances de conversa de anatomia social» e de «má etnografia» na escalpelização dos «pequenos ritos da moda» e da condição alienante dos serviçais.
3. Essa importância não se restringe àquelas suas ficções que se apresentam ostensivamente concentradas em personagens e enredos transpostos da factualidade histórica da vida pública – quer se trate de épocas transactas, quer se trate da nossa contemporaneidade, identicamente objecto de aplicada indagação e crítica de fontes, de versátil análise e irónica interpretação.
Desde logo, a análise e a imaginação psicológicas, fulcrais em Agustina, manifestam-se quase sempre na representação de relações interpessoais, muitas vezes no interior das comunidades familiar, local, regional ou nacional, umas vezes nas relações de dependência de classe, outras vezes na disputa de bens e poderes, etc.
Por seu turno, essa psicologia relacional imbrica-se com a acção situada no espaço e no tempo, através de enredos contextualizados em várias épocas. Assim, embora os motivos catalisadores de cada trecho possam decorrer de biografemas autorais e incidir apenas nas características de cada personalidade, os romances e contos de Agustina – a par de Breviário do Brasil e outros lances de «psicologia dos povos», de Fama e Segredo na História de Portugal e outros lances de desmistificação da historiografia tutelar e de mitografia oracular, de Contemplação Carinhosa da Angústia e outros lances de psicologia das profundezas e de comunicação interrogativa, de Sebastião José e outros lances de «biografia romanceada» centradas na vontade de poder e na libido insidiosa – acabam por nos dar, em puzzle discontínuo, as fases e as condições principais de toda a história social e política de Portugal, e até das suas relações com a vida social, económica, política e cultural da Europa (como se vê, por exemplo, em Santo António ou em Adivinhas de Pedro e Inês).
É nessa teia de alusões e inferências com alcance sócio-político que Agustina faz actuar a poética do espaço, da casa e da paisagem, não só tão meticulosamente descritiva quanto simbólica na sugestão do espírito do lugar e na caracterização da geografia física e humana, de região em região, de centros e periferias – primeiro e recorrentemente mais a Norte, por Entre-Douro-e-Minho, em Coimbra e no Porto, do Douro ao Marão, de Lamego à Póvoa de Varzim (do conto Colar de Flores Bravias e da novela Cividade e outras primícias em narrativa breve, à novela Mundo Fechado e ao romance Os Super-Homens, dos Contos Impopulares aos romances A Sibila, Os Incuráveis, A Muralha e O Susto), mas também e desde Ternos Guerreiros em Lisboa e Alentejo, e tantas outras derivas entre Viana do Castelo e Évora, pelos Açores de Party e de O Concerto dos Flamengos, etc.
Com tão amplas coordenadas de tempo e espaço, a ficção de Agustina insere no seu diaporama, como tenho vindo a evidenciar em recentes ensaios, todos os escalões etários e fases de vida, desde a infância (nas originais narrativas protagonizadas por crianças e desfocadamente tidas por literatura infantil) e a primeira juventude (na renovação da literatura presencista sobre a temática do internato ou do adolescer em clausura) até à idade madura e à velhice. A ele são convocados todos os estratos das diferentes, e já cruzadas, classes sociais; ganham vida as variadas estirpes através das quais essas classes se distinguem e esses estratos se deslocam, em cidades e vilas, velhos burgos e novos bairros, aldeias e casais recônditos, os novos-ricos e «os pobres envergonhados», as «ilhas» portuenses e os «pátios» lisboetas, com os traços típicos e as metamorfoses ou anamorfoses das suas origens e dinâmicas.
Nesse quadro, um dos domínios que mais atenção merecem à perspectiva ficcional de Agustina é o da produção e fruição da riqueza, que envolve relações desiguais entre estratos ou sectores sociais; e os trâmites da economia e da finança aparecem com estreitos elos aos poderes políticos centrais e provinciais, com ou sem intervenção relevante de grémios e sindicatos, de «forças vivas» e «homens bons» ou de caciques e galopins.
Pelos meandros da intriga em que se movem temperamentos e caracteres, sentimentos e desejos, ideias e ambições, resistem ou evoluem diversos regimes de propriedade e de participação nas fontes de produção, ou de acesso ao fluxo de bens materiais, sob diversas determinações por herança, por declínio ou por ascensão sócio-económica de famílias e comunidades. Aí, sem caderno de encargos de “romance social” comparecem as mais variadas actividades económicas, em escala muito diversa, dos ofícios e mesteres ancestrais às novas oportunidades e profissões, das laborações mais artesanais ou dos meros expedientes de sobrevivência até às grandes empresas ou explorações na indústria e na pesca, na pastorícia e na agricultura (dos terratenentes latifundiários às leiras de subsistência), do pequeno comércio de bairro ou de aldeia ao comércio dos grandes armazéns urbanos, dos «planos quinquenais» aos diferentes modos de trabalho agrícola ou oficinal, ao contrabando e outras actividades marginais ou clandestinas, das transumâncias tradicionais a mais recentes migrações internas e destas à emigração (com particular efeito n’O Sermão do Fogo).
Sobre um fundo contrastado de ignorância boçal ou envernizada e de sabedoria ancestral ou intuitiva, a ficção de Agustina está longe de ignorar o domínio da educação escolar – instrução elementar, caseira ou em pequenas escolas primárias, com recentes professores e regentes escolares, ou ainda com mestre-escola ad hoc), colégios internos (de linhagem e instalações conventuais ou mesmo de ordens religiosas como os jesuítas e as doroteias) e colégios externos (de transição social), seminários e casas congregacionistas de estudos, escassos liceus e universidades.
A distinção entre privilegiados e deserdados da fortuna não se confina na posse ou carência dos bens materiais, pois estende-se verosimilmente ao domínio dos bens simbólicos sociais e culturais, desde o plano da formação intelectual ao do lazer e do entretenimento, nas viagens e nos círculos (públicos e privados) de cultura e de diversão, nos teatros e cinemas, nos casinos e nos coretos, nos recitais de música e poesia, do «país tristinho e facecioso».
Enfim, se o impiedoso retrato psicossocial, que é peculiar de Agustina, contempla os ardis e as cobiças, os maquiavelismos e as astúcias, as motivações quixotescas ou mamónicas (diria António Sérgio), as generosas iniciativas assistenciais e os mecanismos da «caridade oficial», as inércias e as transformações, os bloqueios e as rupturas da vida política (com suas vertentes sociais, económicas, ideológicas), toda essa figurativa e oracular mimese da comédia humana abre-se, uma e outra vez, à especulação situada da filosofia política (por exemplo, n’A Muralha).
E se articularmos a recepção de O Comum dos Mortais com a de Prazer e Glória, de As Fúrias, de Os Meninos de Ouro, de O Concerto dos Flamengos, etc., mas também das «óperas» IX a XI de Fama e Segredo na História de Portugal («O Regicídio», «Afonso Costa versus Sidónio Pais», «Salazar»), teremos a evidência da importância invulgar da história e das questões político-sociais na obra de Agustina, nomeadamente percorrendo o ocaso da Monarquia liberal, as agitações da República jacobina, as convulsões dos anos 20 e a emergência do Estado Novo, o longo consulado de Salazar e a breve governação marcelista, «as ideias movidas pela esquerda» e «o ódio ao regime», o «brechtismo» afectado e «esse género de capela sixtina das Letras» dos católicos progressistas e «intelectuais da resistência pietista servida por filhos-família», a voga da relação entre capitalismo financeiro e correntes existencialistas e científicas num «misto de marxismo doce e pragmatismo liberal», o 25 de Abril e o PREC «onde ferviam as utopias e os interesses primários dos recém-chegados», a alternância do soarismo com a Aliança Democrática e o advento da incorporação na CEE, a integração incerta e tortuosa na União Europeia e outras facetas em que «as coisas mudaram, como sempre mudam» e «as incertezas são feitas da própria noção do tempo» – entre a melancolia das «revoluções mal concluídas» e a suspeita perante «os direitos que o tempo assume, desculpando as ambições dos homens», a pertinácia dos portugueses «na fé cirenaica, que é a de levar a cruz dos molestados pela injustiça» e «uma crueldade própria da riqueza tal como há uma eloquência própria dela, que a todos verga espinha e emudece a fala de quem tem entendimento.»
Após tantas outras modulações em diferentes registos genológicos, essas constatações são romanescamente registadas nos começos e lá para os finais de O Concerto dos Flamengos. Mas aí mesmo também confirmamos que com Agustina sempre haverá lugar para contrapor que «O maior dom é não se resignar. Daí sai tudo, a fé, a poesia e o milagre.» Ou não fosse a sua obra, mais por génio próprio do que por influxo de Musil, a voz insubmissa do direito à autenticidade e coerência daquela inconformidade que distingue uma anarquista conservadora.