Eugénio de Andrade – No centenário do seu nascimento, breves notas
Eugénio de Andrade (1923-2005) desde muito cedo começou a publicar livros de poemas – nos anos 40, antes de As Mãos e os Frutos (1948), já haviam saído três volumezinhos (Narciso – 1940, Adolescente – 1942, e Pureza – 1945) que depois retiraria da listagem das suas obras, reconhecendo nos anos de aprendizagem alguma ingenuidade, bem natural. Mas nesses livros, se os lermos à procura das origens do poeta, reconhecemos linhas de um percurso que aí se esboça e que, sem cessar, foi glosando em verso e em prosa de modo constante na sua longa carreira de autor. Eugénio conservou quase sempre, nas reedições, o que primeiro dera à estampa em cada caso, mas vale a pena lembrar não apenas que em 1960 havia de rever o livro de 48 (lembre-se que alguns dos poemas saíram em pré-publicação na Seara Nova), mas também que em 1977 Primeiros poemas recupera textos dos volumes dos anos 40 que, como se disse, retirara da lista de obras. Procedendo ao confronto entre os poemas editados em 77 e os daqueles antigos livros, torna-se claro que o autor conserva quase sem lhes tocar poemas vários (como aqueles que estão muito próximos da raiz popular e dos cancioneiros medievais – assunto muito relevante, como em outra ocasião já tratei). A primeira publicação de Os afluentes do silêncio, datando de 1968, vem ainda acrescentar o que em outros títulos Eugénio virá a fazer – a recolha de ensaios, de entrevistas e de textos diversos que, em prosa, formam as linhas de uma poética muito consciente de si, das suas fontes e das leituras que o informam. Além disso, estes textos, alguns dos quais muito citados pelos críticos (“Poética” e “O sacrifício de Ifigénia”, retomados do livro de 68 em Rosto precário, de 1979), mostram bem como o sopro da poesia tem porosas fronteiras com os escritos em prosa: por um lado, porque a auto-análise literária aqui levada a cabo se serve de uma linguagem comum à que o poeta usa não apenas no registo que se quer mais ensaístico, mas também nos livros que vão sendo invadidos pelo poema em prosa.
Na obra poética, sirva de exemplo a este propósito Vertentes do olhar, de 1987, volume composto por cinquenta poemas em prosa; o próprio Eugénio põe em evidência numa nota inaugural o seguinte:
“Entre o mais antigo poema deste livro (“Fábula”, 1946) e o mais recente (“Aos inimigos”, 1986) passaram quarenta anos. É uma vida à procura de uma voz. A melodia do homem nasce dessa busca incessante (…)” (1987, p. 11).
Sublinhemos o arco temporal, que reitera o gesto já tornado claro nos Primeiros poemas – o tempo passou, sim, mas não se apagou; há, com efeito, uma linha traçada pela memória de textos que, literalmente, compõem um sujeito que escreve – escreve, sim, forma verbal de um presente histórico que nada apaga ou anula, antes desenha uma linha constante, coesa, consistente, cada vez mais forte. E destaquemos bem os termos em que este autor (auctor, no mais pleno sentido da palavra) sabe que assim é: a essência que dá corpo à sua “vida à procura de uma voz” exprime um caminho de pesquisa não fechada em 87, antes prosseguindo sempre, até aos textos da obra mais recente (Os sulcos da sede, de 2001, o último livro publicado por Eugénio de Andrade). A figura da busca ergue-se no passo concreto agora mesmo citado, mas quem conheça a obra de Andrade sabe que essa “busca incessante” é um motivo obsidiante de toda a obra.
Mais ainda se diz neste preâmbulo de Vertentes do olhar: “desaprender custa mais do que aprender. Estarei agora, ao menos, mais perto desse dizer que ajude outros a falar?” (id.).
Eis aqui um exemplo da humilitas que atravessa toda a obra de Eugénio: primeiro, naquele conceito de aprendizagem que não cessa e se tece de despojamento; depois, naquele envio a quem lê – o rigor da mão que se estende para nós, que nos ensina e nos oferece os modos de um “dizer” tornado próximo, envolvente e inclusivo.
Fiquemos ainda em Vertentes do olhar, em cujo poema de abertura “Soberania” (datado de 3.2.86) se lêem veios da poética de Eugénio, bem desenvolvida desde os começos:
Voltar, recomeçar – com que palavras? (…) Voltemos pois ao princípio. E o princípio são meia dúzia de palavras e uma paixão pelas coisas limpas da terra, inexoravelmente soberanas. Essas, onde a luz se refugia, melindrosa. Só elas abrem as portas aos sortilégios, e os sortilégios são diurnos, mesmo quando invocam a noite, e as águas do silêncio, e o indelével tempo sem tempo. (1987, p. 13)
Veja-se o movimento de retorno a um mesmo que é já outro a cada vez – como nos mitos antigos, nomeadamente o de Sísifo, condenado a um recomeço sem fim, cruzando-se com a genesíaca operação de um “princípio” que dá lugar ao vitalismo da “luz” e ao poder das “coisas limpas da terra”. Aí reside o poder das palavras, “meia dúzia” delas compondo um universo essencial, elemental (como diria Óscar Lopes), formulando a anulação das diferenças entre dia e noite (saindo vencedor o dia, o apolíneo sol) e abrindo “as portas aos sortilégios”, ao mágico fulgor que tudo inaugura e faz recomeçar uma e outra vez. Dirige-se este gesto criador à materialização, impossível e tão verdadeira, do “indelével tempo sem tempo”, rosto de todos os tempos a descobrir para anular qualquer clivagem, ou fenda, ou fissura leve.
Porque, diz o poema, a “soberania” está neste caminho que as palavras tecem à procura do mais fundo da terra – nome outro para o humano que a habita e a configura.
Eugénio deixara estes princípios bem visíveis em “Poética”[1]:
Ecce Homo, parece dizer cada poema. Eis o homem, eis o seu efémero rosto feito de milhares e milhares de rostos, todos eles esplendidamente respirando na terra, nenhum superior a outro, separados por mil e uma diferenças, unidos por mil e uma coisa comum, semelhantes e distintos, parecidos todos e contudo cada um deles único, solitário, desamparado. É a tal rosto que cada poeta está religado. (1968, p. 59)
Notar-se-á a rasura dos contrários na definição do “rosto” do humano, cuja imagem mais funda o poeta persegue. Há neste fragmento de “Poética” (que, insistamos, se desdobra em múltiplas faces em toda a obra de Eugénio) a clara obscuridade do humano que se perfila desde tempos imemoriais diante dos olhos daquele que escreve “Ecce Homo, parece dizer cada poema”, enigma fulgurante, prescrevendo o continuum a que cada texto vai dando forma.
O “rosto” só “precário” pode ser – efémero, refeito a cada vez, vértice e centro de toda a vida do poeta, tecida de versos; é o que Eugénio deixa inscrito no lapidar “Balança”, de Ofício de paciência (1994, p. 13), dizendo o nó cego entre vida e poesia:
No prato da balança um verso basta
para pesar no outro a minha vida
Obras de Eugénio de Andrade citadas neste artigo: (datas de 1ª publicação e edições disponíveis nas Obras de Eugénio de Andrade, Assírio & Alvim) - As mãos e os frutos, 1948; Primeiros Poemas, As Mãos e os Frutos, Os Amantes sem Dinheiro, prefácio de Gastão Cruz, 2012. - Poemas (1945/1965), Portugália, 1966. - Os Afluentes do Silêncio, 1968; Os Afluentes do Silêncio, prefácio de João de Mancelos, 2013. - Primeiros Poemas, 1977; Primeiros Poemas, As Mãos e os Frutos, Os Amantes sem Dinheiro, prefácio de Gastão Cruz, 2012. - Rosto Precário, 1979; Rosto Precário, prefácio de Joana Matos Frias, 2015. - Vertentes do Olhar, 1987; Vertentes do Olhar, prefácio de Fernando J.B. Martinho, 2016. - Ofício de Paciência,1994; Ofício de Paciência, prefácio de Gastão Cruz, 2018.
Notas: [1] Cito “Poética” pela primeira edição de Os afluentes do silêncio, Porto, Inova, 1968; uma nota esclarece ter este texto sido “escrito para a edição de Poemas (1945-1965), Portugália Editora, 1966” (1968, p. 168). Incluído nas reedições deste livro, veio mais tarde a passar para Rosto precário, Porto, Limiar, 1979; neste livro tem permanecido nas publicações mais recentes.
Paula Morão
(1951)
Professora Catedrática Emérita da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa