Biblioteca de Alcântara – (que saiam à rua) canções de esperança

A Biblioteca de Alcântara, uma biblioteca pública municipal[i], nasceu na rua onde, em 1961, foi assassinado pela PIDE o artista plástico José Dias Coelho, resistente antifascista e militante do Partido Comunista Português.

Esse facto histórico, cantado n’A morte saiu à rua, de José Afonso, marcou definitivamente o Programa Funcional e as linhas de trabalho da biblioteca. A abertura de uma biblioteca pública na Rua José Dias Coelho, antiga Rua da Creche teria, também, de constituir uma homenagem a todos os resistentes antifascistas portugueses e uma afirmação viva da democracia, no tempo desumanizado em que vivemos, em que alastram as desigualdades e assimetrias e os discursos anti-democráticos em todo o mundo.

A história de Alcântara está profundamente ligada às lutas e aos ideais republicanos, à organização e às lutas e reivindicações do operariado, ao movimento anarquista e sindicalista e ao associativismo. Alcântara viveu períodos de intensa agitação social e revolucionária desde os finais do séc. XIX até aos anos 80 do séc. XX e durante os 48 anos do auto-denominado Estado Novo, continuou sempre a ser território de contestação e da luta e resistência clandestinas.

Num tempo pleno de complexidades como o que estamos a viver, onde um pouco por todo o mundo, e também na Europa, se fecham fronteiras e se erguem muros – os visíveis, de betão, da fome e da guerra e outros, invisíveis, da intolerância, do preconceito e da indiferença, – a abertura de bibliotecas públicas deve ser um lastro de esperança na luta pela democracia e pelos direitos humanos. Por essa razão, a afirmação da biblioteca como lugar vivo e democrático constituiu-se como a vocação primeira desta biblioteca e a recente inauguração da Sala República e Resistência vem reforçar, de forma decisiva, um percurso de trabalho trilhado no sentido de fazer deste espaço comum uma Casa da Cidadania.

Esse percurso implicou, desde o início, convocar processos participativos no sentido de envolver activamente a comunidade no desenho dos programas operacionais e investindo no desenvolvimento de projectos e acções em torno da aprendizagem da cidadania activa e esclarecida e da tomada de consciência do cidadão como actor de transformação do mundo.[ii]

Para isso, é imprescindível e vital, auscultar as necessidades e expectativas da comunidade e envolvê-la de forma permanente e regular nas dinâmicas de funcionamento e programação. Só nessa medida podem apropriar-se do espaço e senti-lo verdadeiramente como seu.

Foi com este propósito que em 2018 lançámos a campanha: Participe na construção da biblioteca de Alcântara. Quisemos que a comunidade local participasse ativamente na construção do programa funcional e operacional da Biblioteca, identificando os espaços e serviços prioritários e contribuindo com ideias, projetos, desejos e sonhos.

Identificámos parceiros-chave no terreno, afixámos cartazes explicativos, distribuímos flyers com um pequeno questionário e colocámos urnas para a recolha das respostas. A Campanha decorreu entre os dias 1 e 20 de Dezembro de 2018. O questionário esteve disponível online no facebook das BLX e em vários locais (treze) da freguesia de Alcântara. Recebemos 1101 respostas que nos permitiram começar a identificar as necessidades e as expectativas da comunidade.

Em Maio de 2019, convidámos 25 pessoas representantes de escolas, universidades, museus, associações de moradores, pequeno comércio, associações culturais e recreativas, centros de saúde mental e IPSS com várias valências para, seguindo a metodologia do World Café, podermos conversar sobre os serviços e as actividades que a biblioteca deveria prestar e promover e sobre as possíveis formas de trabalharmos em conjunto.

Em Junho, e já na sequência dos resultados do questionário e do World Café, lançámos uma campanha para a criação do Grupo de Teatro Comunitário da Biblioteca de Alcântara, que envolveu 127 locais do território, incluindo associações de vária índole, comércio, serviços, IPSS, escolas, Junta de Freguesia, etc.. O Grupo iniciou a sua actividade em Outubro de 2019.

A 22 de Novembro do mesmo ano, realizámos um Focus Group com a presença das Faculdades presentes no território de influência da Biblioteca de Alcântara (Pólo da Ajuda da Universidade de Lisboa – ISCSP, Faculdade de Arquitectura e Faculdade de Veterinária, Instituto Superior de Agronomia), da livraria Ler Devagar, da Fundação Oriente, do Centro Cultural e Científico de Macau, da Junta de Freguesia de Alcântara e do Projecto Alkantara) para perspectivarmos possíveis pontes e modalidades de trabalho em comum.

Durante todo o ano de 2019, realizámos dezenas de visitas guiadas à biblioteca, contando um pouco da história recente de Alcântara, a partir da história do edifício, que nasceu, nos finais do séc. XIX, como Palacete do Conde de Burnay, acolheu, dos anos 30 a meados dos anos 80 do séc. XX, a Escola Comercial Ferreira Borges e ainda um anexo da Escola Industrial Fonseca Benevides e, após alguns anos de abandono, foi adquirido pela Câmara Municipal de Lisboa e transformado numa biblioteca pública. Nessas visitas, que continuam ainda hoje, pedimos sempre que os participantes nos deixem as suas ideias, sugestões, projectos e também daí têm nascido iniciativas interessantes e surpreendentes.

Foi, de facto, no dia 5 de Outubro de 2020 que a Biblioteca de Alcântara inaugurou, mas foi muito antes que abriu as suas portas à comunidade. Foi em 2018 que começámos a pensar juntos, a sonhar juntos, a construir juntos, num processo dinâmico e em crescendo. Somos hoje, em 2023, muitos mais os que, todos os dias, fazemos a Biblioteca de Alcântara. E essa cultura da participação prossegue em vários projectos de menor ou maior dimensão.

Destacamos o projecto de curadoria participativa em que a Biblioteca de Alcântara o Centro de Arte Moderna (CAM) da Fundação Calouste Gulbenkian (FCG) se uniram para lançar um convite à participação de pessoas que residissem, estudassem ou trabalhassem nas freguesias de Alcântara, Ajuda, Belém, Campo de Ourique e Estrela, para ocuparem o lugar de curadores de uma exposição. Foram selecionadas 24 pessoas, muito diferentes entre si, mas com o gosto comum pela arte que, ao longo de seis meses, mergulharam na coleção de obras do CAM e da Biblioteca de Arte da FCG. Durante esse período, o grupo foi-se constituindo como comunidade, criando um espaço de diálogo e partilha, de debate e de aprendizagem conjunta sobre como pensar o espaço expositivo, as obras de arte no espaço, o tema, a iluminação, o tempo, o percurso, a(s) leitura(s) da exposição. A exposição Entre Olhares, Encontros (in) Comuns foi o resultado destes encontros e esteve patente na Galeria da Biblioteca de Alcântara, entre 20 de Janeiro e 31 de Março de 2023. Reuniu 17 obras da coleção do CAM e 14 livros de artista.

Destacamos ainda o Coro Infantil da Biblioteca de Alcântara – Sub-Coro, que ensaia, desde 2019, todos os sábados de manhã, sob a orientação do Professor e Músico Pedro Branco e que conta com um reportório original de mais de 30 canções. Fruto da parceria da Biblioteca com a Cusca: Cultura & Comunidade, que, além do Coro, oferece à comunidade o Quiz Literário, o Poemar e momentos tão marcantes como a peça Catarina, o Alentejo a viu nascer. Realçamos também as muitas residências artísticas que acolhemos, os ciclos de conferências sobre cidadania, ciência, os desafios da sustentabilidade, a parceria com a Associação Rastilho e as múltiplas actividades para crianças e jovens.

Em Outubro de 2023, a Biblioteca comemorará três anos de existência. Três anos em que soubemos sempre que navegar é preciso, que é preciso pensar, dialogar, dar voz, que é preciso ousar caminhos novos, construir pontes, desafiar as margens, não temer errar…

No ano em que se assinalam 100 anos do nascimento do artista plástico José Dias Coelho, e num tempo que reclama, urgentemente, a paz e caminhos que possam semear a esperança numa sociedade mais fraterna, mais justa, mais igualitária, é tempo de dizermos, dentro e fora da biblioteca:

Para a frente, coração

(que saiam à rua) canções de esperança[iii]

Notas:
[i] A Biblioteca de Alcântara é a mais recente biblioteca municipal da Rede de Bibliotecas de Lisboa, que conta com 18 bibliotecas, sendo 10 de gestão municipal.
[ii] Importa referir que em Fevereiro de 2019, a IFLA (International Federation of Library Associations and Institutions), reafirmou o potencial único das bibliotecas públicas na implementação de políticas de cidadania activa e participada, na promoção e desenvolvimento de parcerias e cooperações, amplamente comprometidas com a defesa dos Direitos Humanos e do desenvolvimento sustentável.
[iii] Este mote, que será o título da publicação anual (Fanzine nº 3) da Biblioteca de Alcântara, é inspirado no poema CANÇÃO LIVRE de José Dias Coelho:

Vai para a frente meu coração
A razão contigo vence
O sol nasce para te indicar o caminho
Já não há duvidas no querer
Na fábrica o aço é para a paz
Para a criança os frutos nascem
Colhidos pelas mãos dos poetas
No ar corre o som das canções vencedoras
Para uma vida nova construída pelo homem.
Vem comigo lembrar à ave que já não há perigo
No cantar canções livres
À flor que o beijar do vento se tornou natural
Vem, 
Vem comigo soprar os moinhos
Das crianças descalças
E depois correr, correr pelos montes,
Teu cabelo desfeito
E lá em baixo, na planície
A cidade nova escreve no céu
Canções de Esperança.