A Nova Ordem Internacional Multipolar – A Ascensão da China e a Retribuição do Sul Global
1. A Ordem Internacional durante o “Século Americano”
O primeiro quartel do séc. XXI destaca-se pela acelerada mudança na ordem internacional saída do período da Guerra Fria. Com o colapso da União Soviética e o consequente fim do mundo bipolar, os EUA emergiram como a potência prevalecente nos domínios militar, económico, tecnológico e político. Reforçaram o papel de país líder com hegemonia incontestada tanto na capacidade de ação estratégica global, como na posição de vantagem que ocupam nas instituições internacionais que regulam o modelo de governação democrática e de economia de mercado. Também no plano do soft power os EUA emergiram como líder e polo de atração, nomeadamente para os países saídos do antigo bloco soviético, inclusive para a própria Federação Russa. Isto foi patente no processo de liberalização da economia conduzido por Ieltsin nos primeiros anos do período pós-soviético, sob assessoria de um grupo de economistas neoliberais da Universidade de Chicago.
A ideia da excecionalidade e indispensabilidade dos EUA no plano internacional encontra inspiração original no manifest destiny que impulsionou a expansão deste país para Oeste. Foi este “impulso continental” que uniu a costa Leste à Oeste e mais tarde inspirou a doutrina Monroe (1823), que sustentou a oposição dos EUA à interferência no continente de Estados exteriores. A progressiva afirmação da relevância dos EUA dá-se tanto no plano regional como no internacional. Isto foi patente nos conflitos que travou com o México entre 1846/48 e com a Espanha em 1898, de onde colheu importantes ganhos territoriais. No plano internacional destacam-se o tratado com o Japão de 1858 que impôs a abertura deste país ao exterior e o papel fundamental que tiveram no desenho do mapa político da Europa a seguir à I Guerra Mundial. Este último ficou conhecido pelos “14 pontos do presidente Woodrow Wilson”, consubstanciando o início do designado “século americano”. O epílogo deste percurso dá-se em 1945 com a afirmação dos EUA, então a única potência nuclear, tendo culminado com a vitória na Guerra Fria que conduziu à implosão da URSS.
A ordem internacional emergente do fim do mundo bipolar encontra justificação ideológica no pensamento de Francis Fukuyama no livro “O Fim da História e o Último Homem” (1992), que vê na queda da União Soviética o triunfo da democracia liberal (por falta de alternativas) e, portanto, o fim das lutas políticas ideológicas. Esta visão está plasmada na retórica justificativa da Guerra do Golfo, e continua explícita na alocução do presidente Barack Obama realizada na Academia Militar de West Point, no dia 28 de maio de 2014, exaltando os futuros Oficiais dos EUA a prosseguirem nos próximos cem anos o rumo traçado nos cem anteriores. Logo na primeira página, a Estratégia de Segurança Nacional dos EUA de 2022 reafirma que “o imperativo da liderança norte-americana, no plano global, apresenta-se presentemente maior do que nunca”.
O “século americano”, que sucedeu ao século imperial inglês, teve duas grandes fases e está agora a entrar numa terceira. Na primeira fase, durante a Guerra Fria, o mundo era bipolar e por isso mesmo dotado de uma relativa estabilidade estratégica, uma vez que os dois rivais económicos dos EUA – Alemanha Federal e Japão – não eram rivais estratégicos (até porque saíram derrotados da IIGM). Por outro lado, o rival estratégico – a URSS – não era um rival económico, guiando-se por um modelo económico alternativo. Portanto, a confrontação direta subsumia-se principalmente ao plano ideológico, processando-se a confrontação estratégica através de terceiros, nomeadamente na disputa pela influência nos países emergentes. Na segunda fase, o mundo unipolar revelou-se mais instável com proliferação de crises e conflitos (guerras do Golfo, guerras da ex-Jugoslávia, Afeganistão, Somália, Líbia, Síria, Iémen, etc.). Na terceira fase, que está agora em curso, a hegemonia norte-americana está de novo em causa.
2. Sonhos e Pesadelos do Processo de Globalização
Não obstante a globalização ser anterior às mudanças geopolíticas acima referidas, o impacto decorrente da contração dos fatores espaço-tempo associada ao desenvolvimento das tecnologias de comunicação e informação, a par do incremento da mobilidade de pessoas, bens e mercadorias à escala global, ganhou uma dimensão e relevância acrescidas após o final da Guerra Fria, em especial a seguir ao fim do sistema de Bretton Woods em 1971. A generalização do modelo de economia neoliberal, com a redução de barreiras ao comércio internacional, levou à internacionalização das cadeias de valor e deslocalização da produção para longe dos centros industriais do ocidente.
A abertura da China, iniciada durante o consulado de Deng Xiaoping, deu azo a um processo sem precedentes de industrialização e desenvolvimento nos planos económico, científico e tecnológico, impulsionando a economia para a exportação. A adesão à Organização Mundial do Comércio, no final de 2001, acelerou o processo de transformação do país na chamada “fábrica do mundo”. Consequentemente, a China atingiu índices de desenvolvimento económico assinaláveis, com crescimento do PIB de dois dígitos ao longo da primeira década deste século e desde então, embora em valores inferiores, no entanto significativamente maiores do que os registados nas economias ocidentais.
O ritmo e dimensão do crescimento económico da China e a progressiva transição do país de uma sociedade rural, assente em mão de obra intensiva, para uma economia baseada em trabalho especializado e na exportação de produtos de elevado valor acrescentado, no quadro da transição para a economia do conhecimento, é tanto um efeito emergente do caráter sistémico do processo de globalização, como resultado do modelo de economia planeada imposto pelo governo chinês.
A transferência do centro de gravidade da economia do conhecimento para a Ásia, com a China a converter-se a prazo na principal potência económica mundial, apresenta-se como um desafio à supremacia do ocidente em geral e dos EUA em particular.
Outro efeito emergente do crescimento económico chinês é a necessidade de o país aceder aos mercados globais, quer para acesso a matérias primas como para a colocação dos seus produtos. A resposta a este desafio surgiu pela iniciativa da “nova rota da seda”, compreendendo uma extensa rede de infraestruturas de comunicações terrestres e marítimas, que envolvem um financiamento na ordem dos 575 biliões de dólares. A “nova rota da seda” pressupõe a circulação nas rotas marítimas e nos eixos terrestres, conferindo uma importância estratégica à livre navegação no Mar do Sul da China e justificando o interesse deste país pelo Ártico (rota marítima mais curta para a Europa). Não menos importante é o papel de charneira da Ucrânia em relação à rota terrestre de ligação à Europa. Os acordos entre ambos os países tiveram como perspetiva tornar a Ucrânia num hub da “nova rota da seda”. Uma Ucrânia hostil à China, ou controlada por um rival estratégico deste país, representa um duro revés para a sua estratégia de expansão económica e para a disputa pela hegemonia económica no plano global.
A consciência desta realidade permite-nos entender o atual impulso das preocupações estratégicas dos EUA para o Indo-Pacífico, que ganhou expressão durante a administração Obama, agudizando-se no período de Trump e acentuando-se durante a atual administração Biden.
A ambiguidade da política norte-americana em relação a Taiwan, numa prática que contraria o alegado reconhecimento do princípio da “China única”, deverá ser entendida no quadro das alterações em curso no plano geopolítico e geoestratégico. O texto da Estratégica de Segurança Nacional dos EUA refere explicitamente que a China é o único competidor que em simultâneo reúne intenção e capacidade para alterar a ordem internacional, tendo progressivamente vindo a reunir o poder económico, diplomático, militar e tecnológico para alcançar este objetivo. Em termos estratégicos, quando um rival reúne simultaneamente capacidade e intenção, está-se perante uma ameaça.
A classificação da China pelo ocidente alargado como “parceiro para a cooperação e negociação, competidor económico e rival sistémico” consubstancia o impacto do agudizar das relações entre os EUA e a China, com reflexos visíveis no plano militar através do redirecionar da Aliança Atlântica para aquela região e a criação de uma aliança militar para o Indo-Pacífico com a Austrália e o Reino Unido (AUKUS). Tendo em conta que a China é o maior parceiro económico da generalidade dos países da NATO e do AUKUS, as consequências da agudização da tensão na região permitem especulações diversas, sendo já visível uma reversão no processo de globalização. O reforço dos blocos económicos regionais assentes em afinidades de ordem geopolítica e comunhão de interesses, ou pela observância da “ordem internacional baseada em regras”, fundamenta a diferenciação entre as designadas democracias “liberais versus iliberais”. Constituem, na prática, um indicador da atual fragmentação da ordem internacional entre o ocidente alargado e o designado Sul Global, tendo nos EUA e na China os respetivos polos.
3. A Dolorosa Transição para o Mundo Multipolar – Conflito Rússia/Ucrânia
O ambiente internacional em que vivemos com crises globais sucessivas transporta-nos para o que Naomi Klein designa de “Doutrina do Choque” permanente, num ambiente político e psicológico onde o absurdo se alia ao surreal. Os últimos quinze anos foram marcados pela crise financeira de 2008, pela pandemia do SARS-CoV-2 e presentemente pelo conflito na Ucrânia que nos coloca à beira de uma confrontação militar direta com a Rússia, uma vez que nas outras dimensões da conflitualidade o ocidente alargado já ultrapassou todas as linhas vermelhas e, a atender pelos discursos, a tendência aponta no sentido do agravamento. A mistura de ignorância histórica com arrogância supremacista é sempre o caminho mais curto para o desastre.
O que está em causa na Ucrânia não é meramente a disputa territorial entre este país e a Federação Russa, ou o desejo de infligir uma derrota estratégica à Rússia por ter ousado enfrentar o ocidente coletivo (em linha com os objetivos da política externa do Kremlin definidos por Primakov). Está sim em jogo o fim da ordem internacional unipolar, i.e., da hegemonia norte-americana que emergiu do final da Guerra-Fria. No plano político esta hegemonia preconiza uma ordem internacional baseada em regras (as suas), uma economia internacional assente no dólar e uma forma de governação democrática intra-estados como modelo único. Este modelo é difundido no plano global por uma rede mediática e de think tanks que se encarregam de moldar as perceções, de desincentivar dissidências e justificar métodos híbridos de coação.
Em última instância, estas táticas destinam-se a punir os Estados divergentes, seja pela imposição de sanções económicas, pela ostracização nas instituições internacionais, pela intervenção direta fomentando “revoluções coloridas” e guerras por procuração, ou por ações militares de caráter punitivo.
A intervenção russa na Ucrânia iniciada em 24 de fevereiro de 2022, após o encontro de Putin com Xi Jinping aquando do início dos jogos olímpicos de inverno, tem como objetivos declarados uma nova ordem internacional multipolar, a primazia do Direito Internacional com sede nas Nações Unidas, o respeito pela soberania dos Estados e o princípio da Democracia inter-Estados. Em suma, pugna por um sistema internacional que à hegemonia do ocidente liderado pelos EUA contraponha a harmonia entre Estados Soberanos.
A atratividade da proposta permite compreender a atitude de neutralidade dos Estados do Sul Global em relação ao conflito na Ucrânia, a sua recusa em juntarem-se às sanções à Rússia promovidas pelo ocidente e, em particular, a atração pelas organizações internacionais que corporizam esta linha política, nomeadamente a Organização de Cooperação de Xangai e os BRICS, esta última com pedidos de adesão por parte de cerca de trinta países.
Quando um diplomata africano refere que a visita de um dignitário chinês, por regra, salda-se na construção de um aeroporto, ao passo que a de um ocidental subsume-se a uma lição de moral e não raras vezes em bullying, consegue-se perceber a receção dispensada a Macron na República Democrática do Congo, a Blinken na África do Sul e as declarações do Ministro dos Negócios Estrangeiros da Índia relativamente ao desagrado pela forma como o ocidente procura impor as suas políticas. São demonstrativos de que por um lado os dirigentes do ocidente alargado ainda não se libertaram do estigma supremacista da época colonial. Por outro lado, o mesmo Sul Global vê chegado o momento da retribuição de séculos de humilhação e domínio colonial, nas suas diferentes formas.
Quando o presidente chinês se despede de Vladimir Putin no final da visita a Moscovo dizendo que a relação estratégica entre os dois países “irá mudar os próximos cem anos”, é clara a dimensão da mudança em perspetiva e quem serão os países que a vão liderar.
4. Elementos para Reflexão
O mundo está a mudar. Está em curso uma luta de titãs entre os defensores da hegemonia ocidental e um Sul Global liderado pela China no plano económico e pela Rússia no âmbito estratégico, alavancada por recursos naturais colossais, que poderá ditar a emergência de uma nova ordem internacional multipolar e policêntrica.
Portugal teve uma presença de cinco séculos na China, mantém interesses em Macau e uma relação económica importante com aquele país. O lado mais universalista do nosso percurso histórico, capaz de estabelecer pontes entre culturas e continentes, recomenda tato político, sabedoria e sobretudo coordenação com os países que constituem a nossa rede cultural mais próxima (a CPLP). Essa coordenação deveria processar-se liberta das deliberações tomadas por centros de decisão onde a nossa voz e os nossos interesses não têm expressão relevante.
Uma das partes sairá necessariamente vencida da atual confrontação geopolítica. Convém que Portugal saiba acautelar o futuro e precaver situações que nos coloquem em contraciclo com os ventos da história.