Programa governamental “Mais Habitação”: a afirmação de uma Terceira Via no direito à habitação?

O lançamento, consulta pública e regulamentação do Pacote Governamental “Mais Habitação” (P+H) tem-se revelado nas últimas semanas, mesmo que na espuma dos dias do acirrado confronto político, pelo menos, um catalisador assertivo do foco da agenda mediática e pública em matérias relacionadas com o direito à habitação. Ainda que de forma acupunctural, cirúrgica e pontual, visa ser um conjunto articulado de medidas políticas no sentido de promover o direito à habitação, representando uma oportunidade de robustecer de forma agilizada a intervenção do Estado no Mercado, procurando regulá-lo e ao mesmo tempo estimular o aumento da oferta privada e pública de fogos no arrendamento e habitação acessíveis. Portanto, é desta forma, um programa sectorial específico, sem menosprezo pela necessária articulação intersectorial e pluriescalar que a tutela fará com os restantes actores e protagonistas dos restantes sectores da política pública e respectivos níveis de administração pública.

Ainda que intervencionista, o P+H mantém o problema maior que marca todo o paradigma das últimas décadas de actuação da governação em matéria de habitação. A política pública de habitação existente mantém o Estado refém das lógicas e dos humores da iniciativa privada e do mercado. É certo que revela inteligência social-democrata típica do pensamento da Terceira Via dos anos 90 em procurar conciliar Economia e Sociedade, Público e Privado, Comunidade e Mercado, mas as suas melhores intenções podem esbarrar na prática. Tudo parece ficar ainda amarrado e dependente da iniciativa do mercado em disponibilizar propriedade que sirva uma função social e económica como garante do efectivo direito à habitação, contribuindo para a resolução da crise emergencial vigente. Procura, sobretudo, em tempo útil e pressionado pelo cariz urgente da necessidade de resposta a esta crise, mobilizar edificado com vocação residencial para alargar substancialmente oportunidades de arrendamento e habitação acessível. Resposta que viria tardia se se apostasse apenas na intervenção por estímulo da nova construção, mesmo que a custos controlados e acessíveis.

É certo que o P+H procura dinamizar o mercado de arrendamento acessível através da garantia de renda justa em novos contratos, pela norma travão também indexada ao valor da inflação, ainda que partamos de uma situação de valores de arrendamento extremamente sobreaquecidos na actualidade. Estimula o arrendamento obrigatório de casas devolutas. Reduz a taxa de IRS para contratos de arrendamento habitacional de longa duração, sendo que a carga fiscal vai diminuindo progressivamente em função da durabilidade do contrato. Dá vários incentivos fiscais ao arrendamento acessível e concede um apoio extraordinário ao pagamento das rendas.

Protege os contratos de arrendamento antigos (celebrados antes de 1990), ao isentar de IRS os rendimentos prediais e de IMI os senhorios com estes contratos. Neste contexto, ainda regulamenta a compensação a dar ao senhorio para compensar o não aumento de rendas e garante que estes contratos antigos não transitam para o Novo Regime do Arrendamento Urbano, contrariando a Lei Cristas, vulgo, Lei dos Despejos.

De forma a controlar as rendas o Estado vai arrendar para depois subarrendar, com o objectivo de disponibilização imediata de oferta de habitação para os agregados com especial dificuldade no acesso ao mercado de arrendamento. Portanto, o Estado vai arrendar imóveis devolutos a privados, subarrendando com uma taxa de esforço máxima de 35% do agregado familiar. Garante o pagamento no caso de 3 meses de incumprimento por parte dos inquilinos.

As casas são arrendadas pelo Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana I.P. (IHRU, I.P.), que garante o pagamento pontual das rendas e, quando o contrato terminar, garante a entrega das casas nas mesmas condições em que as recebeu. A Fundiestamo será um parceiro do IHRU, I.P., identificando no mercado os imóveis que cumpram os requisitos, trabalhando em permanência com imobiliárias, entidades do Estado, municípios e juntas de freguesia, cabendo-lhe ainda a promoção das vistorias técnicas que determinam as condições de habitabilidade.

O IHRU, I.P. e o senhorio estabelecem livremente o preço da renda até ao limite de 30% acima dos limites gerais do preço de renda, por tipologia e concelho de localização do imóvel, disponíveis no tabelamento já feito ao nível do Programa de Arrendamento Acessível (PAA)[1]. Ainda que procure reestabelecer a confiança dos proprietários no mercado de arrendamento e por essa via atrair de forma célere mais propriedades que contratualizadas por esta medida possam alargar a oferta disponível, o que indirectamente, permitirá regular o mercado local de arrendamento; não podemos olvidar que apesar dos incentivos fiscais atribuídos, o PAA, lançado em Julho de 2019, teve um arranque lento e pouco promissor para senhorios e para inquilinos, com a angariação de apenas algumas dezenas de fogos nos primeiros meses, que hoje não ultrapassarão um milhar de contratos efectivos a nível nacional.

No que toca às lógicas de financiamento, e à semelhança da Nova Geração de Políticas de Habitação, a proposta centra-se quase exclusivamente na concessão de benefícios fiscais para os proprietários e na criação de um pacote de seguros para o arrendamento, não questionando sequer a necessidade urgente de regulação dum mercado de habitação e de arrendamento sobreaquecidos.

Aliás, a aceitação do “valor de referência de mercado” das rendas sobre o qual se aplicará a redução de 20% para definir o suposto arrendamento acessível, parece ignorar a escalada galopante e especulativa a que têm estado sujeitas as rendas nos últimos anos, com subidas constantes e ininterruptas, e generosas taxas de variação positiva percentual anual sempre na ordem dos dois dígitos.

Ora como o objectivo do P+H é limitar o valor da renda até ao limite de 30% acima dos limites gerais do PAA, acaba ainda por compensar o sobreaquecimento do mercado até mais 10%, o que tem vindo a ser criticado publicamente. Num contexto de economia de mercado, compreende-se a oferta desta benesse para garantir a dita “confiança do mercado” e atrair mais proprietários para esta contratualização, porém, críticas têm vindo a ser feitas por associações, colectivos e movimento sociais de defesa do direito à habitação e alguma academia no sentido desta subsidiação das rendas livres estar a reforçar a reprodução de lógicas rentistas de especulação no mercado de arrendamento, pelo que o subsídio directo aos senhorios alimenta um padrão de socialização dos custos da crise habitacional e privatização dos lucros.

Quanto ao aumento dos juros e seu impacto nas prestações e na taxa de esforço das famílias, impõem-se, como medidas cautelares: Obrigatoriedades de os bancos disponibilizarem uma alterativa de crédito à habitação a taxa fixa e os apoios previstos na subida da taxa de juro.

Sem entrar nas polémicas relativas ao Alojamento Local, ou de conversão do uso de imóveis de comércio ou serviços em uso habitacional, ou do licenciamento simplificado, não podemos deixar de referir que o programa dos Vistos Gold foi severamente reestruturado. Salvaguarda-se que a renovação dos vistos já atribuídos só ocorra se: o imóvel estiver alocado a residência própria e permanente do proprietário ou descendente; ou se for objeto de contrato de arrendamento para habitação própria e permanente por prazo não inferior a 5 anos.

Todavia, as críticas chegaram tanto da Esquerda quanto da Direita. A Esquerda acusa o Governo de manutenção de subsidiação ao sector privado e proprietários, de não eliminar as isenções fiscais nem regular a actividade dos Fundos de Investimento Imobiliário e de que a eliminação dos Vistos Gold peca por tardia. Acusa igualmente o P+H de escamotear a manutenção do conjunto de regimes fiscais de privilégio daquilo que se pode designar por “cidadanias rentistas”, como é o caso do estatuto dos Residentes Não-Habituais e dos Nómadas Digitais enquanto novas procuras residenciais, causas estruturais na distorção dos preços do mercado de habitação e arrendamento, sobretudo em Lisboa, Porto e Algarve.

Não se eliminou o pecado original: o NRAU de 2012, a Lei Cristas, quando se torna clara e necessária a promulgação de uma nova lei do arrendamento que permita a criação de um ambiente de confiança no mercado de arrendamento, com garantias efetivas de proteção aos inquilinos e pequenos senhorios, no caso do incumprimento dos contratos, mas também direitos e deveres para ambas as partes.

Para além de que a carga fiscal sobre cada senhorio deveria variar consoante o valor praticado de arrendamento por metro quadrado, penalizando fortemente os que sejam praticados em regime especulativo.

Mas, em boa verdade, na praça pública tem-se discutido mais o mito da propriedade sacrossanta do que a concretização do direito à habitação, enquanto direito humano básico. A Direita acusa o Governo de excessivo intervencionismo, comunismo até, apenas pela recuperação de inúmeros instrumentos de execução de política urbanística contemplados já há anos no ordenamento jurídico português: Imposição da obrigação de reabilitar e obras coercivas; Empreitada única; Tomada de posse administrativa; Direito de preferência e arrendamento forçado. Medidas instituídas com resultados comprovados mesmo em sociais-democracias em regime neoliberal de capitalismo avançado por essa Europa fora: Dinamarca, Reino Unido, Finlândia, Alemanha, Áustria, entre outros.

Ainda assim acreditamos que, salvaguardando o constitucional direito à habitação, mas o equivalente direito à propriedade, as medidas previstas de tomada de posse administrativa, obras coercivas e arrendamento forçado deviam, em primeiro lugar, partir do próprio Estado relativamente ao seu património devoluto com vocação residencial. Depois de esgotados os seus fogos devolutos, avança-se para mobilização dos que estão na posse de IPSS e de Fundos de Investimento Imobiliário, e só depois, caso necessário, os dos privados e dos pequenos e médios proprietários, desprovidos de função social e económica e que se localizam em áreas de pressão urbana e de procura residencial insolvente.

O problema e o desafio da habitação e a sua crise mais ou menos recente sempre foi uma questão pluridimensional. Ora, espera-se que o P+H, sem desprimor do seu enfoque mais específico, possa contribuir para políticas de habitação mais multissectoriais, pluritemáticas e multiescalares, pelo que o racional transescalar que tem de ser adotado condicionará instrumentos e medidas diversas, em função da escala requerida do problema em questão (sejam casos de emergência habitacional, provisão direta e nova construção, apoio ao arrendamento acessível, regulação do mercado, estímulo às ações de escala local e participativas por partes dos atores coletivos das comunidades, como por exemplo as cooperativas de inquilinato ou os fundos de terras comunitárias (CLT – community land trusts, entre outros). Estas políticas de habitação devem estar articuladas dentro do quadro das políticas urbanas e sociais existentes, numa lógica de integração e complementaridade.

A habitação é uma matéria complexa, como vimos, multidimensional; mas também multifactorial e pluriescalar. A satisfação do direito à habitação é uma obrigação do Estado português, competindo ao Governo definir a política de habitação adequada a este desiderato constitucional. Ora, o Estado Central tem de assumir as responsabilidades que lhe são incumbidas pela Constituição da República Portuguesa e pela Lei de Bases da Habitação, como regulador, executor, construtor, promotor e provisor direto de habitação pública e de acesso à habitação, ao contrário do papel de gestor ou de mero garantidor, facilitador do mercado privado, papel que tem assumido com maior peso nos últimos anos em que vivemos uma verdadeira viragem neoliberal nas políticas urbanas e de reabilitação.

É indubitável que ao Estado incumbe intervir em todos os níveis da definição e planeamento da utilização de solo urbano, no controlo de preços e mais-valias, ser simultaneamente promotor e proprietário de habitação, contribuir na reabilitação do edificado e na oferta de habitação e arrendamento acessível.

Isto significa que o Estado se deve comprometer com uma coordenação eficaz de políticas de arrendamento que medeie os mais diversos e contraditórios interesses, agentes e organizações envolvidas no setor; exigir e permitir que todas as partes interessadas relevantes nos setores público e privado desempenhem um papel na realização de metas de habitação acessível e inclusiva; estabelecer e monitorar padrões para arrendamento adequado e acessível em todas as formas. O que significa que deve esforçar-se por fazer coexistir de forma equilibrada os três modelos de regime de propriedade previstos na Constituição da República Portuguesa e cuja lógica se deve estender também ao arrendamento: o do setor privado (portanto mercado livre), o do setor público e o do setor cooperativo e social.

Só assim se avança no sentido de ser possível delinear e concretizar uma Estratégia Nacional da Habitação, tendo em vista o desenvolvimento integrado e sustentável do território e permitir o efectivo direito à habitação de forma universal, incondicional e inalienável.

Nota:
[1] Ver tabelas I e II anexas à Portaria n.º 176/2019, de 6 de junho.