José Relvas (1858-1929): um “amigo discreto” da Seara Nova

José Mascarenhas Relvas (1858-1929) é sobretudo conhecido como o “proclamador da República”. No entanto, várias abordagens têm focado outras vertentes da sua personalidade multifacetada (Serra, 2008; Batista, 2016). Na nossa biografia política (Noras, 2022) defendemos uma “análise total”, na perspetiva de ser impossível compreender o político sem o vitivinicultor, o diplomata sem o artista, o pensador da economia sem o crítico de arte, etc. Se para alguns teóricos a biografia não tem regras e para outros convive mal numa relação próxima entre biógrafo e biografado, para nós existirá sempre uma limitação intrínseca ao foco da análise. Uma biografia literária será diferente da biografia política por motivos evidentes, pese embora o esforço de convocar na narrativa a pessoa na sua plenitude.

Desta forma, devemos sublinhar três aspetos, digamos assim, “originais”, na origem deste artigo, desenvolvidos na biografia citada. O primeiro refere-se à relação de Relvas com a imprensa. Já era conhecida a sua esparsa colaboração com vários periódicos, documentando-se uma dinâmica constante. Relvas publicou entre 1877 e 1929, ou seja desde os 19 anos até morrer, vários tipos de textos em jornais e revistas, sob seu nome próprio, com pseudónimos e sob anonimato. Vários foram crónicas, outros revestiram um carácter noticioso (foi brevemente correspondente de O Mundo), e, para além do ensaio e da crítica de arte, localizou-se um conto, no que parece ter sido a sua única incursão na ficção (Relvas, 1877). A única conferência que resultou num opúsculo publicado em vida, foi primeiramente dada à estampa em diversos jornais (Relvas, 1910). Boa parte dos seus textos, sobretudo as “memórias agrárias” e as “notas de arte” sobre as viagens na Europa continuam por publicar, aparentemente o autor preparando algumas edições desinteressou-se sempre delas.

Esta relação com a imprensa não constituiu a maior novidade, mas foi possível identificar colaborações de diversa índole de José Relvas com diferentes periódicos, entre eles, naturalmente a Seara Nova. Este será o segundo aspeto, até agora desconhecido das abordagens biográficas. Por último, a síntese dos últimos 10 anos de José Relvas, grosso modo, resumia-se à repetição de uma aura de reclusão e de desilusão com a República, do chamado “isolado dos Patudos”. Efetivamente, ele afastou-se da cena política republicana após o fracasso do seu projeto de reconfiguração partidária em 1919, não conseguindo criar um “grande partido” da direita republicana e do convívio social depois do suicídio do seu filho. A entrevista que deu ao Diário de Lisboa, em 1923, afigurou-se como testamento político desencantado. Entre 1919 e 1929, José Relvas tomaria a decisão de viver em exclusivo para a sua coleção de arte. Todavia, as fontes demonstram uma relação ambígua com os primeiros anos da «Ditadura Nacional», dificultada pela participação nos movimentos de contestação dos “vitivinicultores do Sul”, primeiro em 1925 e depois entre 1927 e 1929 (Noras, 2022: p. 783-829). Foi mais conhecida a sua intervenção pública na homenagem a Alexandre Herculano[1], num discurso advogando o liberalismo, em cerimónia promovida por uma direita conservadora não totalmente alinhada na autocracia como solução de regime.

Em diferentes períodos da vida, a proximidade com diferentes periódicos correspondeu a determinadas escolhas ou posicionamentos. Daí, vermos Relvas colaborador assíduo de A Beira (Viseu) e O Debate (Santarém), nos “anos da propaganda” (1907-1910), não sendo de descurar que também os tivesse financiado.

É esse tipo de apoio, seja como investidor esperando retornos ou pro bono, que se deduz da sua correspondência, em relação à Seara Nova. Existem no Arquivo Histórico da Casa dos Patudos (AHCP), duas cartas de Câmara Reis (1885-1961) a José Relvas. Na primeira, datada de 1921, agradece-se-lhe o apoio prestado. Na segunda, mais elucidativa, pede-se um empréstimo necessário em virtude dos investimentos numa tipografia própria, o texto alude a apoios anteriores (ver anexos). Desconhecemos a resposta de Relvas. Contudo, no arquivo da “Empresa de Publicidade Seara Nova” vamos encontrá-lo arrolado entre os acionistas como “subscritor de «1000 escudos correspondente a 20 «ações», a 22 de abril de 1922”, participação que se manteve até janeiro de 1928, pelo menos de acordo com os registos disponíveis[2].

Livro dos Accionistas com o valor das acções de José Relvas na Seara Nova, 1922-1928

Neste caso, os investimentos documentados não corresponderam a uma colaboração regular, porém Relvas consta entre os autores. A pedido de António José de Almeida (1866-1929) surge como último subscritor do manifesto «Um protesto nacional: A Finança contra a Nação»[3], publicado já durante a Ditadura Nacional. A polémica contestava a “desnacionalização do porto da Beira (Moçambique)”, em virtude do processo de concessão a companhias estrangeiras. Assinaram o documento várias figuras do republicanismo, as quais já se posicionavam contra o regime autocrático, num conjunto heterogéneo de 81 personalidades, com diferentes percursos intelectuais e políticos, como por exemplo Sebastião Magalhães Lima (1850-1928) ou António Ginestal Machado (1874-1940), de entre outros. Anos antes, o primeiro, amigo pessoal de Relvas, representava um ideal republicano próximo de um “socialismo de génese liberal”, do qual Relvas se aproximou primeiramente; o segundo corporizou, de forma efémera, uma outra tentativa de um governo conservador, unindo todas as tendências que se opunham à hegemonia dos “democráticos”.

Em linha com a totalidade da imprensa portuguesa, republicana e não só, o simbólico obituário “Dois Mortos”, publicado na Seara Nova[4], relacionou as mortes de António José de Almeida e de José Relvas com o ocaso do regime onde foram figuras fundadoras, marcando no «imaginário republicano» a sua perceção pública até hoje.

“Amigo discreto da Seara Nova” a dimensão de acionista de José Relvas convoca-nos para um campo por explorar da sua vida e interesses, apelando de certo modo a uma biografia empresarial, a qual o seu arquivo também permite. Se, por certo, o investimento na Seara e, eventualmente, noutros periódicos não obedeceu a critérios económicos, o financiamento por parte de Relvas e de outros correligionários de vozes dissonantes a montante e jusante do fim da República, parece-nos também cabal motivo de interesse e de investigação. Ao mesmo tempo, o manifesto que subscreveu traduz-se no acompanhamento próximo das realidades coloniais, nas quais, aí sim investia boa parte dos seus proventos agrícolas vivendo de rendimentos de “papéis seguros”, sobretudo neste período final da vida.

Anexos – Transcrição das cartas a José Relvas

Carta de Câmara Reis a José Relvas, 30/09/1921, 1 fl. ms., Arquivo Histórico da Casa dos Patudos, cx. 41, pasta 37, PT/AHCP/FR/JMR/A/01/041/037

“[Papel timbrado da Seara Nova] Praia das Maças / Vivenda Montemor

30 de setembro [1921]

Excelentíssimo Senhor José Relvas / meu distinto e prezado Amigo / Em nome da “Seara Nova” agradeço muito a Vossa Excelência as boas palavras de incitamento e generoso aplauso assim como a sua valiosíssima cooperação. Quando o Jaime Cortesão regressar, comunicar-lhe-ei a referência que muito o desvanecerá, sôbre a útil e bela obra que a Biblioteca está realizando.

Aceite Vossa Excelência as respeitosas homenagens do seu servidor e amigo / Muito Obrigado / Câmara Reys”

Carta de Câmara Reis a José Relvas, 29/08/1927, 1 fl. ms., Arquivo Histórico da Casa dos Patudos, cx. 41, pasta 37, PT/AHCP/FR/JMR/A/01/041/037

“[Papel timbrado da Seara Nova] 29/8/27

Excelentíssimo Senhor José Relvas / meu estimado e ilustre Amigo

Apresento a Vossa Excelência as minhas respeitosas homenagens. / Apesar da censura e do exílio de alguns dos seus diretores, a Seara Nova voltou a publicar-se e, para as tipografias não continuarem a levar-nos couro e cabelo, montámos uma pequena oficina. Caso comovedor e que mostra que o espírito republicano não amorteceu muito, as assinaturas têm afluído e logo pessoas amigas arranjaram trabalhos para a tipografia. Isso nos levou, ou antes obrigou, a aumentar o material, e o que estava calculado valeria uns oito contos, já hoje vale 17.

Agora, em pleno verão, com o pagamento da contribuição anual e escasseando momentaneamente o trabalho, temos um pequeno embaraço para não demorar a satisfação dos nossos compromissos. Precisa a Seara dum empréstimo, garantido pela própria tipografia ou por fiador idóneo, de um ou dois contos, até fim do ano. Tomei a liberdade de pensar em Vossa Excelência para êsse auxílio. Vossa Excelência já provou generosamente – mesmo nas mais gravosas condições – a sua solidariedade para com a Seara. Poderá auxiliar-nos mais uma vez? No caso afirmativo, Vossa Excelência dir-me-ia se o empréstimo poderia ser por meio de letra e Vossa Excelência mesmo fixaria o juro, com o prazo até ao fim do corrente ano.

Desculpe Vossa Excelência importuná-lo e creia-me sempre seu criado, obrigadíssimo e venerador admirador / Camara Reys”

Carta de António José de Almeida a José Relvas, Lisboa, 05/12/1927, AHCP, ms., cx. 1, pasta 22, PT/AHCP/FR/JMR/A/01/001/22.

“[p. 1] Avenida António Augusto Aguiar, 104

Excelentíssimo Senhor José Relvas Meu ilustre e prezado amigo!

Conforme mandei dizer a Vossa Excelência, a posição dos signatários do manifesto sobre o Porto da Beira; é mais do que segura, é seguríssima!

Pelos jornais deve Vossa Excelência visto os meandros dos acontecimentos, e, com certeza, reparou no convite feito contra todas as regras, que me dirigiu a Companhia de Moçambique no intuito de me levar á sua sede, a fim de me dar esclarecimentos que só podiam e deviam ser dados perante o grande publico. Não comparecemos, com excepção [p. 2] do Almirante Hugo de Lacerda. De mais, iríamos, numa confirmação à porta fechada, ser a seu tempo acusadores e juízes, o que era, além de desonesto, irrisório.

Além dos subscritores do Manifesto, foram manifestar-me o desejo de que se constituísse uma comissão executiva que, representado os a todos, – esclarecesse o assumpto todas as vezes que nisso houvesse conveniência e respondesse a Companhia de Moçambique de proteger os sãos princípios que representamos e defendemos. Essa ideia, que acarinhei desde o começo, está em marcha e em breve terá execução plena.

Chamo a atenção de Vossa Excelência para o artigo que vae hoje (5) no “Século”. Por ele verá [p.3] Vossa Excelência que a Companhia Moçambique não trepida (?) sua afirmação coisas cuja falta de veracidade é facilmente verificável.

Eu continuo muito doente, sendo com sacrifício que escrevo a Vossa Excelência, mas, devo das minhas forças, muito poucas, quase nulas, continuarei a dar a este assumpto todo o esforço ao meu alcance; pois que ele é de maior violência, vituperando profundamente a todos os portugueses.

Na verdade, a nossa situação de signatário do manifesto é seguríssima. Assim o fosse a do Porto da Beira!… Façamos tudo o que possível for para o salvar.

Com votos da melhor saúde, [p. 4] creia-me na afetuosa dedicação do de Vossa Excelência velho amigo

António José de Almeida Lisboa. 5-12-927.”

Este artigo resulta da comunicação na Fundação Mário Soares e Maria Barroso no Colóquio "Seara Nova": Discurso programático e intelectualidade republicana (1921-1979). 7-8 jun./2021.
Referências:
- BATISTA, Vanessa Sofia (2016), “Uma Diplomacia Estratégica: José Relvas em Madrid (1911-1913)”, tese de mestrado apresentada à FLUL. Disponível em: http://hdl.handle.net/10451/24692.
- NORAS, José Raimundo (2022), A ação política e o ideário social de José Relvas (1858-1929). Tese de doutoramento em História. Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, [Disponível em linha em: http://hdl.handle.net/10451/5595].
- SERRA, João Bonifácio (coord.), (2008), José Relvas: o conspirador contemplativo, Assembleia da República, 2008.
- RELVAS, José (1877), “Folhetim — Nuvem Negra em Céu Azul” em O Progresso — Jornal do Partido Progressista, Lisboa: s. n., anno I n.º 246, 31 de outubro de 1877, p. 2.
- RELVAS, José (1910), A questão económica portuguesa – aspectos do problema agrícola, conferência realizada no Centro da Associação Comercial do Porto a 3 de Março de 1910, Lisboa: Typografia Bayard, 1910.
Notas:
[1] Todavia este não se tratou do seu último discurso público, como sustentam as enciclopédias, o qual ocorreu dois meses depois em julho de 1929, em Santarém, num comício de vitivinicultores, defendendo um programa político e económico diferente do Governo para o setor.
[2] “Livro de Accionistas e Colaboração n.º 1”, Arquivo Editorial Seara Nova, fl. 46, 47. (Seminário Livre de História das Ideias, disponível em linha em: http://ric.slhi.pt/docs/Extras/0000001944.pdf).
[3] António José de Almeida (et al.) “Um protesto nacional: A Finança contra a Nação” em Seara Nova, Lisboa, n.º 110, 24/11/1927, pp. 263-265.
[4] “Dois mortos” em Seara Nova, Lisboa, ano 8, n.º 186, 7/11/1929, p. 275.