Eduardo Lourenço – um diálogo com Portugal
Deste naufrágio de uma raça toda a gente se lembra, exceto os portugueses. Das epopeias que perduram neste país tão folclórico de história nem uma página o relembra. A História trágico-marítima é a dos portugueses devorados pelo mar e pelos selvagens. Este espantoso silêncio esconde a aventura colonial, a mais pura de toda a história. Tão pura que hesitamos chamá-la colonialista. E, no entanto, ela é certamente uma entre outras, a primeira e a última ainda de pé, sob a indiferença dos trópicos e o esquecimento do mundo. Este esquecimento faz-nos pensar, mas explica-se. Portugal não foi o único país a deixar-se esquecer desta maneira. No tempo das Grandes Descobertas a importância cósmica desta aventura escondia aos olhos da Europa o colonialismo nascente. Mais tarde, a mesma Europa teve também demasiado interesse em esconder, em conjunto, este colonialismo.
Eduardo Lourenço[1]
Com alguma facilidade, mas também com seguro rigor podemos ler a obra de Eduardo Lourenço como um constante diálogo com Portugal. É uma escrita e uma interrogação constantes: Portugal interroga Eduardo Lourenço e Eduardo Lourenço interroga Portugal. E o ensaísta fá-lo a partir de alguns elementos constantes: a literatura, enquanto representação dialética da realidade de uma comunidade, e que é para o ensaísta o grande arquivo da nação; a história, desde a quase paradoxal fundação da nação portuguesa marcada por uma “intrínseca fragilidade”, nas palavras do ensaísta, à aventura marítima que tornou Portugal vanguarda da Europa, desde a excêntrica perda do Brasil ao momento do 25 de Abril de 1974; e, finalmente um terceiro elemento, a experiência vivida, o seu tempo, o seu contemporâneo do Portugal salazarista e do europeu do pós Segunda Guerra Mundial, que está sempre dentro mas aparentemente fora de tudo, absolutamente livre para pensar, ver e escrever a sua obra vastíssima, escrita “à face do mundo”, para usar as palavras de Padre António Vieira, de que era leitor ativo e circunspecto.
A literatura é a sua paixão e o centro orgânico do seu pensamento vem da análise da literatura, oferecendo-lhe uma coerência e unicidades raras numa obra que pela sua diversidade temática teria tudo para poder ser lida como dispersa. Mas não se pense que se trata de um crítico literário, no sentido académico ou jornalístico do termo. A sua forma escrita de comunicação é o ensaio, ou seja, aquela forma que melhor serve um pensamento que se procura, pela vida e pela escrita, como lhe ensinou o mestre Sílvio de Lima. O seu método é a heterodoxia, como aprendeu desde Coimbra enquanto aluno de filosofia, vivenciando a sua juventude ávida de conhecimento num país fascista e uma oposição marxista e de expressão neo-realista. Por isso, também heterodoxia, um saber simultaneamente “indisciplinado” e rigoroso, passe o só aparente paradoxo, exposto em 1949, e era a Europa em que se/ nos queria situar, era com a Europa que queria dialogar a partir da vanguarda e da margem que era Portugal. Vanguarda por Portugal ter sido a cabeça da Europa num momento pioneiro da história da Europa que se lança na descoberta de outros mundos para si; margem pela situação geográfica de extrema Europa em que se tornou também como história e, em particular no momento histórico do desenvolvimento de Eduardo Lourenço como pessoa e pensador.
Os saberes ativados por Eduardo Lourenço para a reflexão sobre Portugal são múltiplos, bem como os seus autores, mas é clara a revisitação incessante daqueles que empreenderam com o Portugal que lhes foi contemporâneo um grande diálogo interpretativo – Camões, Vieira, Antero de Quental, Oliveira Martins, Eça de Queirós, Teófilo Braga, Guerra Junqueiro, Teixeira de Pascoaes e depois Pessoa e os seus contemporâneos: Miguel Torga, Vergílio Ferreira, os próprios neo-realistas, os presencistas, Cardoso Pires, Maria Velho da Costa, António Lobo Antunes, Lídia Jorge, José Saramago, Gonçalo M. Tavares e todos os poetas. Une-os esta forma de através dos seus tempos discutirem Portugal.
Para Eduardo Lourenço e, na verdade para todos nós, a existência de um povo é intrinsecamente histórica, ou seja, a realidade Portugal, França, Itália, Espanha declina-se a partir de uma história comum, de várias memórias e de vários mitos.
Nesse sentido a identidade é um atributo de uma existência histórica que muda e se reelabora pelo contemporâneo. É nesse sentido que falamos de identidade, uma reflexão elaborada a partir de algumas constantes, que produz imagens e mitos, ou seja, produz imagens da história. É assim que Eduardo Lourenço utiliza o conceito de hiperidentidade. É antes de mais um conceito irónico, que surge num contexto de enorme mutação em Portugal – queda da ditadura, fim da Guerra Colonial, fim do império, democratização –, mas em que, apesar de tudo, parece não haver dúvidas sobre o que é ser português, ou seja, Eduardo Lourenço não nos encontra problemas de identidade. Mas encontra sim problemas de identificação, ou seja, de imagem. Esta reflexão percorre toda a sua obra das mais variadas formas, mas podemos dizer que no ensaio “Portugal Identidade e Imagem”, Eduardo Lourenço realiza uma síntese, no sentido em que é talvez o texto em que o ensaísta mais clara e sucintamente explica a “questão” Portugal e a imagem da história. E a “questão” Portugal redunda também na certeza que, desde 1958, o persegue: a de que não é possível compreender Portugal sem compreender a sua dimensão imperial, ou seja, essa outra história de Portugal, sempre presente, mas raramente nomeada e assumida, a partir da qual se ativa um dispositivo de imagens da história, ou seja, de mitos. É na sua estadia no Brasil, como professor na Universidade da Baía, em 1958-59, onde essa história se torna uma evidência concreta, que chega a esta conclusão:
“Curiosamente estamos nos anos 58-59 e esse é um momento em que no mundo, em todos os continentes, se verificava o fim das descolonizações. E evidentemente percebi que Portugal estava metido numa encruzilhada por estar à beira de um precipício num ponto de vista da perda dos interesses coloniais, uma vez que Angola e Moçambique caminhavam para uma emancipação inevitável. Mas em Portugal ninguém queria realmente saber disso. Foi aqui no Brasil que, paradoxalmente, comecei a interessar-me por este tema do império, da colonização, e no fundo foi aqui que nasceu a ideia de que não se podia ter uma leitura da história portuguesa, da cultura portuguesa, sem conhecer esta outra parte do que tinha sido o império português. Em última análise, portanto, todo o arrière plan do Labirinto da Saudade tem a ver com a minha estadia na Bahia […]”[2]
Para quem teve o privilégio de passar tardes na sala da Biblioteca Nacional[3] onde está depositado o espólio de Eduardo Lourenço com acesso a várias versões de conhecidos textos, ou de versões iniciais de muitos textos fundamentais da obra de Eduardo Lourenço, é notória a sua preocupação, desde o final dos anos 50 do século passado, com o problema colonial português. E, por isso, é para mim tão assinalável que na primeira versão, em francês de um dos seus textos de reflexão sobre esta questão, provavelmente se antecipe o título O Labirinto da Saudade. Indicado a lápis está uma outra palavra no lugar de saudade. Era o Labirinto da Colonização. É que era, como bem nos explica Eduardo Lourenço desde os seus textos iniciais sobre a questão colonial portuguesa, datados dos anos 1960, de um verdadeiro labirinto que se tratava. E como frente a qualquer labirinto real ou simbólico a pergunta imediata era: como sair daqui? Primeiro a partir de uma reflexão profunda sobre o que era o colonialismo português na realidade e na imaginação da nação e, de seguida, o que ele foi para o regime salazarista que o manteve até ao final caminhando para a decisão mais radical de o /e de se manter, dando o início a uma resposta armada ao longo de treze anos. Como é que estes dois temas – Salazarismo e colonialismo – a partir de então ligados de uma forma indissociável se tornaram os dois impensados do regime e dos portugueses, de acordo com Eduardo Lourenço?[4] Em “Situação Africana e consciência nacional” escrito, como já sublinhado, entre 1961-63 o pensamento é claro, e o desafio está lançado.
“A nossa consciência nacional hipertrofiada, nosso refúgio durante séculos em que a História nos deixou ser os “colonizadores inocentes” que nós somos, tornou-se de repente nossa inimiga. E duplamente inimiga. Foi ela que nos cegou para a visão de uma fragilidade de senhores de império, talvez não tão grande para heróis de Quinhentos, mas terrível para os herdeiros moles da sua energia, ou melhor, da sua clarividência, com raros amanhãs semelhantes aos que durante séculos nos guardaram o Brasil e Angola. É ela que continua cegando-nos, sob a máscara de último dever épico, impedindo soluções que uma consciência à altura do que somos e podemos mais facilmente encontraria. Mas tal não admira, pois essa consciência hipertrofiada representou e representa a expressão apenas retocada de uma fuga diante de nós mesmos, que um Poder como o nosso é incapaz de remediar no que precisa e tem remédio, por ser ele próprio a sua acabada expressão política. O problema da colonização é o problema do País. Mostrá-lo, tentar percorrer o labirinto da consciência portuguesa atual e, em parte, da dos cinco séculos de que é herdeira, é precisamente não pouco ambiciosa pretensão destas considerações. De antemão a teríamos rejeitado se outros, mais documentados e competentes, a tivessem tomado a sério como merece.”[5]
Quando eu e o Roberto Vecchi construímos com o Professor o que veio a ser o livro Do Colonialismo como nosso Impensado três imagens se colocaram diante de nós: em primeiro, e como dito acima no texto citado, o impacto da estadia no Brasil, a vivência num país sob a herança colonial portuguesa, os contatos aí havidos, as publicações em Portugal Democrático e Portugal Livre e a escrita do texto “O Brasil Caução do Colonialismo Português”. O império surgia assim como evidência concreta no espaço do país Brasil, como herança e como ativo político, que aliás Eduardo Lourenço reanalisa e de certa forma confirma, cinquenta anos depois, pela altura das comemorações dos 500 anos do Brasil, em que a ausência da palavra “Descoberta”, centro da mitologia portuguesa, lhe mostra que o ponteiro da História não bate na mesma hora para descobridores e descobertos e em que o Brasil assume os 500 anos como seus, assumindo portanto como seu o tempo colonial, mas rasurando contudo a sua inscrição índia anterior aos ditos 500 anos[6];
mas ainda em 1958, a segunda imagem é a França onde um outro colonialismo, o de um país luz na democracia europeia se explodia na Guerra da Argélia (1954-1962) e que o faz antever Angola, a “segunda Argélia”, nas palavras de Franz Fanon, como surge em textos escritos na altura, mas só publicados depois de 25 de Abril de 1974, em que se destaca “Situação Africana e Consciência Nacional”[7]; e refiro aqui Franz Fanon não apenas como citação, nem como teórico próximo de Eduardo Lourenço, mas para assinalar que a linguagem que Eduardo Lourenço utiliza nestes textos para descrever o colonialismo, a sua violência pública e íntima e os seus efeitos prolongados revelam uma proximidade de expressão com o psiquiatra e teórico da Martinica e depois da Argélia, em expressões que definem o colonialismo como “empresa colossal de subordinação do corpo e alma alheia”[8];
finalmente, a terceira parte de O Colonialismo como nosso impensado é dedicada às reflexões de Eduardo Lourenço sobre as heranças vivas desse ser imperial português hoje, em que se torna evidente o que teóricos do pensamento pós-colonial, irão designar de colonialidade, ou seja, a permanência, no espaço público, na política, na mentalidade do ethos colonial que fez da Europa o relógio do mundo e que marca ainda um dos tempos, certamente melancólico[9], do nosso mundo contemporâneo.
O Labirinto da Saudade quando sai em 1978, é Portugal em discussão e a raiz dessa discussão são as circunstâncias que levaram ao fim do império, à queda do regime de Salazar-Caetano, ao fim da Guerra Colonial, à descolonização. São eventos todos ligados entre si, ocorridos num curto espaço de tempo e com intenso impacto na vida de muitas pessoas e da nação.
A definição de hiperidentidade a que me referi e, no contexto em que aparece na obra de Eduardo Lourenço, é até de uma certa confrontação para que nos desembaraçássemos de uma história pátria que tinha sido construída de forma acrítica, baseada em descobertas e heróis de uma narrativa infantilizada ou ligada aos discursos do ditador Salazar em que era criada uma realidade paralela à que realmente Portugal vivia: a de um país pobre, na cauda da Europa, envolto numa história colonial já fora do tempo provocando um atraso geral entre todas as populações que estavam sobre administração portuguesa. Os tempos finais dessa obsessão imperial foram permeados por uma obsessão nacionalista em colaboração com um sistema racista na África Austral em luta contra a libertação dos povos[10]. O seu fim foi a “maior tragédia da nossa contemporaneidade”, nas palavras de Eduardo Lourenço, com o envolvimento de gerações de jovens de um lado e de outro numa guerra – a nossa Guerra Colonial a Guerra de Libertação em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau – que compromete as independências das novas nações e levou à deslocação de milhares de pessoas. A continuidade deste pesadelo na identidade e na intimidade portuguesa é analisada por Eduardo Lourenço logo em 1976 em “Situação africana e consciência nacional”, escrito em 1961-63, portanto logo após os acontecimentos que levaram à Guerra Colonial em Angola, mas só publicado depois do 25 de Abril e, mais tarde, em novos balanços reflexivos elaborados em ensaios como “Crise de identidade ou ressaca imperial”[11] e “Do pesadelo azul à orgia identitária – trinta anos de política portuguesa”.[12]
Estes e muitos outros são já, e apesar de tudo, textos de alguma serenidade de alguém que há muito tinha intuído que sem termos sido brasileiros, não seríamos os portugueses que somos, da mesma forma que não seríamos os portugueses que somos hoje sem termos sido moçambicanos, angolanos, guineenses, cabo-verdianos, são tomenses. Ou seja, o tal mundo que o português criou na lógica analítica colonial e vertical de Gilberto Freire, que Eduardo Lourenço sempre questiona é, na análise do ensaísta subvertida e centrada antes, no mundo que criou o português. Mas esta é uma conclusão a posteriori de alguém que cedo percebeu que há muito as crises identitárias, políticas, económicas, financeiras, são acima de tudo e sempre, crises culturais portuguesas, em que o grande desafio visível ou paradoxalmente ausente, era a questão imperial, ou seja, esse Portugal outro que sempre ultrapassou e compensou a “pequena casa portuguesa” que Camões sempre viu ameaçada face à grandiosidade descoberta e conquistada.
Camões é um caso sério para Eduardo Lourenço, primeiro pela sua genialidade, depois pela narrativa que cria no género literário mais nobre, uma epopeia, na verdade a primeira epopeia moderna europeia, construída a partir de um povo que desterritoraliza o centro da epopeia do país natal, colocando-o no mar e fixando-o para sempre num vago Oriente, que tudo ou nada contém. Mas Camões introduz nesta celebração a dúvida renascentista em todo o seu poema. No final de cada canto semeia a dúvida sobre o valor do que ele próprio narra, faz um balanço, sobre o que se perde e o que se ganha: ama o conhecimento humano adquirido no cruzamento dos mares, mas entristece com a violência e desumanização que a aportagem nas novas terras traz aos navegantes; celebra as armas e as letras, mas aponta a corrupção; espanta-se com o Outro com quem não comunica, mas é dele que recebe as perguntas essenciais na conversa com o Rei de Melinde que sagra um diálogo entre o Ocidente e o Oriente e no qual Portugal (e a Europa que ali representava) se define:
– Os Portugueses somos do Ocidente,
Imos buscando as terras do Oriente.[13]
Estes dois versos resumem tudo – uma origem geográfica, uma religião, um poder, uma missão. É com Camões que Eduardo Lourenço dialoga sobre essa dimensão “compensatória”[14] que o império oferece à “pequena casa lusitana”, para sempre descompensada e vertida em sucessivas crises. Desde cedo o poeta intuiu a “desproporção grandiosa entre o agente e a acção”[15] e, sobretudo no final do poema face a tantas terras avistadas e conquistadas, torna-se quase visual a perceção que a grande epopeia que ali se abre e se celebra vai antropagizar a “pequena casa lusitana” Portugal e, no limite, vai antropagizar a Europa, que Portugal no poema representa. Foi assim no século XIX com a perda real do Brasil; foi assim com África, no século XX. E são essas ressacas imperiais, traumáticas que levam ao questionamento da identidade portuguesa e do destino da nação. Assim foi com Garrett e Herculano, assim foi com a Geração de 70, assim foi com a geração de Eduardo Lourenço. Por isso, “Situação africana e consciência nacional”, escrito entre 1961-63 é um texto síntese de uma situação limite com a espessura de séculos. É um texto equivalente a “Causas da Decadência dos Povos Peninsulares”, de Antero de Quental, na análise de fundo que empreende da cultura e da política portuguesas. São estes os textos anteriores, aqueles que estão na génese de O Labirinto da Saudade e do conceito de hiperidentidade. Neles se regista, de forma irónica, que Portugal não tem, à maneira europeia, das Franças, Itálias, Alemanhas ou Inglaterras, problemas de identidade, no sentido de ter várias nações numa só que se identifica com o Estado. Mas mostram-nos bem que Portugal tem problemas de identificação, ou seja, de imagem, e O Labirinto da Saudade é também o início dessa discussão na obra de Eduardo Lourenço, escrita como diria Vieira, da sua própria obra “à face do mundo”, ou seja, do seu contemporâneo e do seu país, num particular momento de aceleração da história, que conjuga o fim da ditadura, o fim do império e da guerra colonial, a descolonização e o encontro de Portugal com a liberdade e a democracia. Os seus textos da época da revolução, publicados na imprensa, analisam com grande lucidez e acutilância crítica o que é que de facto findava com o 25 de Abril e o que é que continuava, o que era recordado e o que era esquecido e a questão colonial permanecia como um enigma, um central não dito, um “segredo público” para recorrer à expressão de Michel Taussig[16]. Afirma Eduardo Lourenço logo três meses após a revolução de 25 de Abril, em Julho de 1974 num texto publicado no Diário de Notícias: “é notório que uma parte da nossa classe política e a opinião com ela solidária (…) age como se o “pesadelo africano” tivesse terminado na manhã de 25 de Abril”[17].
As mensagens a Portugal sucedem-se à medida que Portugal se modifica, e como é próprio do género epistolar a cronologia da escrita é central: O Labirinto da Saudade, em 1978; Nós e a Europa ou as Duas Razões, 1988; Nós como Futuro, 1998 seguido de Portugal como Destino, de 1999, ou o que é o Portugal pós-império; 2005 um livro escrito à face dos momentos das comemorações dos ditos “descobrimentos”, intitulado, A Morte de Colombo ou o fim do Ocidente como mito, ou seja do Ocidente como projeto, na linha do que nos disse Edouard Glissant, “O Ocidente não é um ponto geográfico, é um projeto”[18]. Poderíamos aqui ver cinco longas mensagens a Portugal, e mais outras tantas ao longo da obra do ensaísta escritas num “nós” tribal que compromete o ensaísta e nos converte a todos em comunidade, e, por isso, sempre com cuidado e, sobretudo, com amor e lucidez.
Shakespeare, mais uma vez a grande literatura, fá-lo-á produzir o parágrafo radical do momento longo do que foi o colonialismo moderno europeu na história da humanidade, o seu final e dos seus prolongamentos e impactos hoje num tempo que designamos, e bem, de pós-colonial, porque já não é o mesmo, na ordem geopolítica do mundo, mas que reverbera ainda os seus efeitos sobre o nosso tempo político e sobre nós, como sujeitos biográficos e culturais desse tempo, que é já um tempo de heranças, e portanto de luto, como é o tempo de todos os herdeiros, de acordo com Derrida[19]. Referindo-se a nós portugueses de hoje, explica:
“…será longo o caminho a percorrer para que um dia existamos uns para os outros fora do envenenado círculo de um mútuo e oposto ressentimento: o das novas nações de terem sido colonizadas e o de Portugal de as “ter perdido” como imaginário (e real) prolongamento seu.”
Para depois se abrir à Europa e à sua relação de poder com o mundo e, com a literatura, concluir:
“Na aurora da aventura expansionista europeia um homem de génio pôde imaginar a tragédia deste duplo ressentimento e oferecer à Europa conquistadora e mágica de Próspero a revolta brutal e futuramente justiceira do escravo Caliban. Próspero perdeu o seu império, Caliban recuperou a sua humanidade servindo-se da magia de Próspero. Próspero desejaria que Caliban se lembrasse da “educação”, da “ciência” (e porque não da “moral” e da “arte”?) com que o mágico supremo o extraiu das “trevas coloniais”. Mas Caliban é o sem-memória, ou de uma memória-outra, a da longa humilhação do reino de Próspero, da magia de Próspero, do fascínio de Próspero. Nós adivinhamos que rejeitará Próspero, que um dia mesmo o assassinará. Para descobrir por sua própria conta, liberto da opressiva tutela de Próspero, o preço doloroso mas vivificante da sua magia. Tal é a lição da Tempestade: da de Shakespeare e da História.”[20]
Este artigo resulta da investigação realizada no âmbito do projeto de investigação MAPS - Pós-memórias Europeias: uma cartografia pós-colonial, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT - PTDC/LLT-OUT/7036/2020). O projeto está sediado no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra e é coordenado por Margarida Calafate Ribeiro.
Bibliografia: - Lourenço, Eduardo (1958), «A França em questão ou o fim da liberdade como boa consciência», Jornal da Bahia, 28 e 30 de Outubro, Caderno 1, p.1-2. Acervo de Eduardo Lourenço, Dossier França (AEL-DF), Biblioteca Nacional de Portugal, sob a direção de João Nuno Alçada. - Lourenço, Eduardo (1982), O Labirinto da Saudade, Lisboa: Dom Quixote (1a edição, 1978). - Lourenço, Eduardo (1988), “Do Salazarismo como nosso impensado. Divagação anacrónica ou ainda não”, in Semanário, 22 de Janeiro, pp.54-56. - Lourenço, Eduardo (1990), Nós e a Europa ou as duas razões, 3ªedição. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda. - Lourenço Eduardo (1999), Portugal como destino seguido de Mitologia da saudade, Lisboa: Gradiva. - Lourenço, Eduardo (2005), Heterodoxia I, Lisboa: Gradiva. - Lourenço, Eduardo (2005), A Morte de Colombo – metamorfose e fim do Ocidente como mito, Lisboa: Gradiva - Lourenço, Eduardo (2009) https://www.eduardolourenco.com/biografia/1958-Brasil.html. In “A Miragem Brasileira” entrevista por Rui Moreira Leite, cf. Colóquio/Letras “Eduardo Lourenço - uma ideia do mundo”, nº171, maio/ agosto, pp. 296 e sgs. - Lourenço, Eduardo (2014), Do colonialismo como nosso impensado, Margarida Calafate Ribeiro, Roberto Vecchi (org.). Lisboa: Gradiva. - Lourenço, Eduardo (2019), Antero Portugal como tragédia, Coordenação, introdução e notas de Ana Maria Almeida Martins. Obras completas de Eduardo Lourenço. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Outra bibliografia: - Camões, Luís de (1992), Os Lusíadas, Lisboa: Instituto Camões, 1992. (Leitura, prefácio e notas de Álvaro Júlio da Costa Pimpão; apresentação de Aníbal Pinto de Castro). (1a edição, 1572). - Derrida, Jacques (1994), Espectros de Marx. O estado da dívida, o trabalho de luto e a nova Internacional, Rio de Janeiro: Dumaré, 1994. (tradução de Anamaria Skinner) - Gilroy, Paul (2006), Postcolonial Melancholia, Columbia University Press. - Glissant, Edouard(1995), Le Discours Antillais, Paris : Le Seuil. - Meneses, Maria Paula e Martins, Bruno Sena (2013) As Guerras de Libertação e os Sonhos Coloniais: alianças secretas, mapas imaginados, Coimbra: Almedina. - Ribeiro, Margarida Calafate, Vecchi, Roberto (2023) Eduardo Lourenço – uma geopolítica do pensamento, Porto: Afrontamento. - Taussig, Michael (1999), Defacement: Public Secrecy and the Labor of the Negative, Stanford: Stanford University Press.
Notas: [1] Eduardo Lourenço, “Colonialismo e boa consciência – o caso português”, in O Colonialismo como nosso impensado, Lisboa: Gradiva, 2014 (Organização, prefácio e notas de Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi), p. 347. [2] Eduardo Lourenço, https://www.eduardolourenco.com/biografia/1958-Brasil.html. In “A Miragem Brasileira” entrevista por Rui Moreira Leite, cf. Colóquio/Letras “Eduardo Lourenço - uma ideia do mundo”, nº 171, maio/ agosto 2009, pp. 296 e sgs. [3] Agradeço o olhar atento, cooperante e dialogante do organizador inicial de todo este arquivo, João Nuno Alçada e a cumplicidade de investigação do meu colega Roberto Vecchi. [4] Cf. Margarida Calafate Ribeiro, “Dois impensados” e Roberto Vecchi, “Impensado”, in Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi, Eduardo Lourenço – uma geopolítica do pensamento, Porto, Afrontamento, 2023, pp 89-122. [5] Eduardo Lourenço, “Situação africana e consciência nacional”, in O Colonialismo como nosso impensado, Lisboa: Gradiva, 2014 (Organização, prefácio e notas de Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi), pp. 136-137. [6] Cf. Eduardo Lourenço, “Quinhentos anos”, in O Colonialismo como nosso impensado, Lisboa: Gradiva, 2014 (Organização, prefácio e notas de Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi), pp. 339-342. [7] Eduardo Lourenço, “Situação Africana e Consciência Nacional”, texto publicado em Cadernos Critério, 2, Venda Nova/ Amadora, 1976. Em nota nesta publicação, o autor regista: «Estas reflexões fazem parte de um ensaio escrito entre 1961 e 1963, e conservado inédito por motivos óbvios, dedicado ao problema do colonialismo português.». Hoje disponível em Eduardo Lourenço, O Colonialismo como nosso impensado, Lisboa: Gradiva, 2014 (Organização, prefácio e notas de Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi), pp. 109-155. A opção dos organizadores foi publicar neste capítulo os textos «Retrato (póstumo) do nosso colonialismo inocente I», anteriormente publicado em Critério. Revista Mensal de Cultura, 2, dezembro de 1975, pp.8-11. «Retrato (póstumo) do nosso colonialismo inocente II» foi publicado em Critério. Revista Mensal de Cultura, 3, janeiro de 1975, pp. 5-10. [8] Eduardo Lourenço, O Colonialismo como nosso impensado, Lisboa: Gradiva, 2014 (Organização, prefácio e notas de Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi), p.123. [9] Referência a Paul Gilroy, Postcolonial Melancholia, Columbia University Press, 2006. [10] Cf. Maria Paula Meneses e Bruno Sena Martins, As Guerras de Libertação e os Sonhos Coloniais: alianças secretas, mapas imaginados, Coimbra: Almedina, 2013. [11] Publicado inicialmente em Prelo, 1, outubro/ dezembro de 1983, pp. 15-22. Hoje disponível em Eduardo Lourenço, O Colonialismo como nosso impensado, Lisboa: Gradiva, 2014 (Organização, prefácio e notas de Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi), pp. 273-284. [12] Publicado em Finisterra. Revista de Reflexão e Crítica, 35, setembro de 2000, pp. 7-16. Hoje disponível em Eduardo Lourenço, O Colonialismo como nosso impensado, Lisboa: Gradiva, 2014 (Organização, prefácio e notas de Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi), pp. 285-297. [13] Luís de Camões, Canto I, 50, in Os Lusíadas, Lisboa: Instituto Camões, 1992. (Leitura, prefácio e notas de Álvaro Júlio da Costa Pimpão; apresentação de Aníbal Pinto de Castro), p. 13, (1a edição, 1572). [14] A expressão é recorrente na obra de Eduardo Lourenço. Cf. o desenvolvimento da ideia em “Situação Africana e Consciência Nacional”, em Eduardo Lourenço, O Colonialismo como nosso impensado, Lisboa: Gradiva, 2014 (Organização, prefácio e notas de Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi), p. 134. [15] Eduardo Lourenço, O Colonialismo como nosso impensado, Lisboa: Gradiva, 2014 (Organização, prefácio e notas de Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi), p. 130. [16] Michael Taussig, Defacement: Public Secrecy and the Labor of the Negative, Stanford: Stanford University Press, 1999. [17] Eduardo Lourenço, O Colonialismo como nosso impensado, Lisboa: Gradiva, 2014 (Organização, prefácio e notas de Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi), p. 164. Publicado em O Fascismo Nunca Existiu, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1976, pp. 77-89 e anteriormente em Diário de Notícias, 23 de Julho de 1974. [18] Edouard,Glissant, Le Discours Antillais, Paris: Le Seuil, 1995, p. 12. [19] Jacques Derrida, Espectros de Marx. O estado da dívida, o trabalho de luto e a nova Internacional, Rio de Janeiro: Dumaré, 1994, p. 79. [20] Eduardo Lourenço, “Ressentimento e colonização ou o complexo de Caliban”, in Do Colonialismo como nosso Impensado, Porto: Afrontamento, pp. 216-217.
Margarida Calafate Ribeiro
(1965)
Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra
(Foto de Nuno Simão Gonçalves)