MÁRIO CESARINY ou a reabilitação do real quotidiano
Concelebramos este ano de 2023 o centenário do nascimento de Mário Cesariny naquele 1923 que também viu nascer em Portugal, entre outros, a Eugénio de Andrade, Natália Correia, Mário-Henrique Leiria ou Eduardo Lourenço. Todos eles, e outros da mesma geração, acabariam marcando os rumos da poesia e do pensamento poético em Portugal entre os finais da década de 40 e finais da década de 60 do século passado. Na década que vai de 1935 a 1945 assistimos em Portugal ao aparecimento e progressiva consolidação da poética do neorrealismo, primeiro através de revistas de intervenção que já desde os títulos manifestam um processo de progressiva intelectualização (Gleba, Gládio, Sol Nascente, Altitude, Vértice), e depois através de duas coleções de livros que supõem já a confirmação do neorrealismo como poética dominante no panorama literário português da época: a coleção de poesia “Novo Cancioneiro” e a coleção irmã de narrativa “Novos Prosadores”. Se acrescentarmos o que ainda ia sobrevivendo da Presença podemos -e aqui já entramos no território do argonauta maior Mário Cesariny- desenhar as margens do território da intervenção surrealista em Portugal, que teria justamente como alvo principal a poética do realismo socialista assumida pelo neorrealismo português e, num intento imediato de superar esses confrontos teóricos e pragmáticos, a aparição do que um dia chamei de “ecleticismo poético” -representado pelos Cadernos de Poesia e a sua afirmação fundamental de que “a poesia é só uma”. Cesariny refere-se a isso numa das suas entrevistas:
Há não tão pouco tempo como isso havia duas maneiras de aparecer fortemente recomendadas pela crítica: a maneira de aparecer neo-realista (gregários) e a maneira presencista de aparecer (individuais). Estes, apesar de tudo, os melhores, pois umas terceiras escritas aparecidas -lembro os “independentes” com Jorge de Sena nos “Cadernos de Poesia”- caíram numa matemática que ainda hoje está para melhores dias.
Três frentes poéticas que o próprio Cesariny encarou com a invenção do poeta Nicolau Cansado Escritor e da sua exegeta académica a Dra. Maria Palhinha, suposta responsável por uma obra onde, para além das paródias de alguns dos poemas mais conhecidos de presencistas e neorrealistas, aparece uma crítica diretamente orientada a atacar o drama da má consciência pequeno-burguesa de alguns dos artistas do neorrealismo (como podemos encontrar também na poesia dos poetas espanhóis da chamada “geração dos 50”), coisa evidente em poemas como:
REABASTECIMENTO
Vamos ver o povo.
Que lindo é.
Vamos ver o povo.
Dá cá o pé.
Vamos ver o povo.
Hop-lá!
Vamos ver o povo.
Já está.
ou
RAIO DE LUZ
Burgueses somos nós todos
ou ainda menos.
Burgueses somos nós todos
desde pequenos.
Burgueses somos nós todos
ó literatos.
Burgueses somos nós todos
ratos e gatos.
Burgueses somos nós todos
por nossas mãos.
Burgueses somos nós todos
que horror, irmãos.
Burgueses somos nós todos
desde pequenos.
Burgueses somos nós todos
ou ainda menos.
Duas breves notas em relação com o assunto e, em particular, com os poemas: uma, que podemos lembrar a este propósito a equivalente intervenção plástica de Mário manifestada em quadros como “O Operário”; a outra, numa outra direção dos vários registos do humor do autor de Pena Capital, que há pouco encontrei, entre os presentes que ele me ofereceu, uma pequena pandeireta com o poema “Reabastecimento” que ele dizia que tinha sido um presente seu para o casamento de uns amigos.
A história e as “estórias” da intervenção surrealista em Portugal têm vindo a ser contadas nas últimas décadas tanto do interior como do exterior do movimento, mas ainda continuam a ser discutidos alguns aspetos fundamentais como a existência ou não do Surrealismo em Portugal como um movimento de vanguarda à maneira do surrealismo francês, e, em relação com isso, e sempre a partir de uma reposta positiva, a possível especificidade do surrealismo português. Pareceria que não eram questões que deviam ter merecido a atenção de Mário Cesariny, mas a verdade é que ele interrogava-se com frequência sobre esses temas, e aqui quero eu aproveitar alguns fragmentos de entrevistas de Fernando Vale e César Antonio Molina onde Cesariny parece negar primeiro a existência de um movimento no Portugal salazarista.
Acho que o motivo principal foi a existência de uma ditadura. Se fizéssemos um movimento íamos presos. Não era essa a nossa ideia. A nossa ideia era não irmos presos. Claro que era possível ter formado um movimento, é possível ser-se mártir, ou herói, matar-se alguém ou ser-se morto. Mas a verdade é que tínhamos um certo amor à vida […]. Mas por um lado, foi bom que não tenha existido um movimento organizado como em França. Porque aí houve ditames e até expulsões. A ausência de estruturação deu ao surrealismo português uma enorme vitalidade externa. […] Em Portugal nunca houve um movimento surrealista, nem sequer no ano de existência pública (1948-1949) do grupo surrealista de Lisboa, que depois da edição de quatro cadernos, de um protesto público e de uma exposição de pintura se dissolve, dando lugar a outro grupo que também não tardará muito a dissolver-se. Como seria possível subsistir, ou subsistir-se na ditadura? O surrealismo português viveu e morrerá, talvez, clandestino […].
Para afirmar noutro momento a existência de uma intervenção surrealista em Portugal, o pouco que segundo ele ia ficando dessa intervenção, e o muito que o Surrealismo foi – com esse ou com outros nomes- e continuará a ser enquanto houver seres humanos a precisar de “luz, mais luz, como Goethe queria”:
Do Surrealismo NÃO RESTA NADA, mas acontece que ESTÃO TODOS. Permanecem intactos os propósitos, fins e meios da intentona surrealista de 1924. […] O Surrealismo continua a ser o último enunciado verdadeiro dos problemas centrais do nosso tempo, para quem quer viver como um homem, e não como um porco farto e satisfeito. Como filosofia, como poética, como busca da direcção desconhecida, da divindade civil: Liberdade, Igualdade, Fraternidade, deram lugar aos mandamentos sagrados do Surrealismo: Liberdade, Amor, Conhecimento […].
Na minha óptica não há uma só das premissas do surrealismo que não guarde as suas virtualidades. […]
Virtualidades essas que nem pela via da crítica nem da historiografia nem do ensino conseguiram ser integradas no discurso da cultura “oficial” mantendo-se ainda hoje à beira da estrada”:
Não está. Não vamos dizer surrealismo. Vamos dizer poesia. Porque surrealismo é o que existe de mais parecido com a poesia. Não se ensina, não é possível. Tudo o que é pedagógico é muito mau. Tudo o que nasce como revolta é um tormento. O surrealismo foi um convite à poesia, ao amor, à liberdade, à imaginação pessoal. O surrealismo reuniu o romantismo, o simbolismo, o futurismo, as tradições libertárias e outras correntes, e deu-lhes um sentido. Esse sentido não vai desaparecer, ficou explícito. Aquilo a que se chamou o surrealismo existiu sempre… […]
Sobre a possibilidade de algumas marcas específicas do surrealismo português em relação com o surrealismo francês ou internacional (e aqui os adjetivos não querem ser qualificativos) sempre se tem tentado explicar a particular história do Surrealismo português (a sua suposta “especificidade”) desde a perspectiva duma derrota (mais uma) da Arte frente à Vida, do Desejo frente à Realidade, e não faltam possíveis razões que explicariam a singularidade da aventura surrealista em Portugal relacionando-a com o difícil contexto histórico em que ela aparece (o Portugal salazarista dos anos 50), ao que deveríamos acrescentar algumas dificuldades específicas da poética surrealista. Assim, duma parte, a desconfiança na capacidade da palavra poética (entenda-se “poesia” por “criação”) como uma ferramenta para a transformação (ou “reabilitação”, em termos cesarinyanos) da realidade (que não para criar realidade) e até como instrumento de comunicação (não de conhecimento) dessa realidade, e que tem a sua exata expressão no conhecido poema de Mário Cesariny “You are welcome to Elsinore”.
Quanto ao tempo e ao espaço vital de miséria que encheu de trevas a experiência de liberdade, amor e poesia que orientavam o ser e o fazer e o dizer dos surrealistas, e para além de referências hamletianas como o Elsinor de Cesariny ou a Dinamarca de Alexandre O’Neill, dois poemas poderiam exemplificá-los, um do próprio O’Neill, “Um adeus português” e o outro “A cidade de Palagüin” de Carlos Eurico da Costa.
Tudo isto tem a ver, evidentemente, com o percurso artístico e vital de Mário Cesariny, que, no decurso da sua luta titânica por “reabilitar a realidade” desde a poesia, decidiu um dia reduzir o círculo da sua ação à poesia plástica, abandonando a poesia verbal (num suicídio parcial à maneira de Rimbau) por não acreditar numa dada altura na eficácia da poesia lírica para a transformação da realidade e por considerar que as palavras (pela sua insuficiência manifesta) eram algemas que tínhamos de arrastar ao longo das nossas vidas:
Escrevo desde 1942. A febre durou doze anos. […] No fundo escreve-se sempre o mesmo verso. Escrever poesia é uma espécie de invocação. Mas não se pode estar toda a vida a invocar o mesmo santo, sobretudo se ele não aparece. Assim sendo, não rezo mais. […] A pintura parece não bulir tanto connosco. É imagem à mesma mas parece exterior. É um trabalho de mediação em que parece não se estar implicado. Na poesia, na escrita, estão todas as nossas vísceras.
Falava no início desta divagação afetiva de celebração e de concelebrações, e por derivação lógica de homenagens de homenagens, como esta que em parte lembra Cesariny investigador, pensador, historiador e definidor dos sentidos essenciais do Surrealismo e dos acidentes do seu desenvolvimento em Portugal. Em tempos dedicámos um dos Cadernos do Centro Português do Surrealismo (então chamado Centro de Estudos do Surrealismo) à reedição dos textos das suas “homenagens excessivas”, e ali apontávamos que no caso do próprio Mário, nenhuma homenagem poderá ser nunca excessiva, porque ele continua a ser o prometeu que desafia os deuses para nós podermos manter o fogo na caverna até a saída definitiva à procura da outra Luz e por isso eu quero aqui e agora agradecer este espaço que me oferece a Seara Nova para lembrar mais uma vez o Mário, um dos mil capitães do Navio de Espelhos que hoje navega já sem a preocupação de rumos nem destinos, sabedores todos da lição dos clássicos: Navigare necesse est, vivere non est necesse.
Perfecto E. Cuadrado
(1949)
Professor Emérito da U.I.B., Colaborador de investigação da Cátedra "Mário Cesariny" e Coordenador do Centro Português do Surrealismo (Fundação Cupertino de Miranda, V. N. Famalicão)