25 DE ABRIL, 50 ANOS
A Seara Nova é uma referência para todos aqueles que, sendo cada vez menos porque a idade não perdoa, sabem por experiência própria, como eu sei, que o 25 de Abril de 1974 tem passado. E que é o ponto de chegada de um longo percurso de luta na qual ela própria foi uma trincheira cívica e cultural de enorme e reconhecido significado. Daí que ao seu convite para nela, mais uma vez, colaborar e, desta vez, para assinalar o meio século do acontecimento cívico mais importante da minha vida, só possa merecer uma resposta: estou aqui.
Não é novidade, para quem conhece minimamente o meu envolvimento no 25 de Abril, que ele está umbilicalmente ligado a Angola. Quando em maio de 1973 para aí embarquei para a minha sexta comissão na guerra colonial que, graças a ele, seria também a última, já ia implicado no que seria o seu “ato fundador” – a tomada de posição coletiva, e pública, de umas centenas de oficiais das Forças Armadas demarcando-se do Congresso dos Combatentes, iniciativa da extrema-direita prestes a ocorrer no Porto visando pressionar o Governo para prosseguir a guerra nas colónias. Em Angola me envolvi na contestação que se seguiu, o Movimento dos Capitães, gerador do ambiente que favoreceu a motivação política dos militares, desembocou no Movimento das Forças Armadas e culminou no derrube da ditadura e no fim da guerra colonial. Em Angola estava no dia da liberdade e foi em Angola que, por influência dos meus jovens camaradas do movimento, viria a assumir responsabilidades decisivas no processo que se seguiu. O 25 de Abril tem, para mim, um registo inalienável, ANGOLA.
Não se estranhará, por isso, que esta minha invocação comemorativa do 25 de Abril seja centrada em Angola.
Ao contrário de algumas abordagens mais desatentas que tendem a classificar as independências das colónias como uma dádiva da potência colonial, venho-me batendo por clarificar o que me parece óbvio – a libertação dos territórios sujeitos a domínio colonial é sempre uma conquista resultante da luta organizada dos seus povos. Angola é, neste contexto, um caso paradigmático. Porque foi, efetivamente, uma conquista muito sofrida a que culminou séculos de resistência contra o domínio estrangeiro, e nos derradeiros 90 anos, assumiu os contornos da luta de um povo com uma identidade própria, contra o sistema colonial e pela sua independência. Luta que se prolongaria para além da independência até 2002, num doloroso processo de mais quase três décadas a que chamei “fase da consolidação da identidade nacional”. Nas quatro décadas finais depois de 1961, os angolanos foram forçados a combater contra o país que conduziu a guerra colonial mais prolongada na África a sul do Sahara (Portugal), e a confrontar-se com a maior potência regional (RAS) apoiada pela maior superpotência global (EUA). Neste processo de descolonização o protagonista foi o colonizado. A generalidade dos povos colonizados, de todas as eras históricas e de todos os quadrantes geográficos, passou por este sacrifício. Angola em particular porque, no contexto das colónias africanas de Portugal, foi a joia da coroa e, não só por isso, mas também por isso, viria a ser o rubicão da descolonização.
Com a passagem da luta de libertação nas colónias portuguesas ao patamar da luta armada entrava-se numa guerra, colonial para Portugal, de libertação para os colonizados, que atingiria dimensões regionais pelo envolvimento de Estados ou movimentos rebeldes vizinhos. As lutas pela independência nas colónias portuguesas, nomeadamente dos angolanos, talvez por ter sido a mais prolongada, teve reflexos políticos que transcenderam o próprio país. Acabou por ser determinante na libertação de outros povos colonizados ou sujeitos a regimes de apartheid em todo o espaço regional da África Austral e teve também repercussão no Sahara Ocidental, então colonizado por Espanha. E, o que tem sido menos salientado, em Portugal contribuiu para a queda da ditadura que vigorava desde 1926, intimamente associada ao regime colonial.
Na África Austral esses reflexos assumiram maior transcendência. Declaradas as independências de Moçambique e Angola, no período de instável fragilidade que se seguiu com governos e sistemas políticos declaradamente adversos ao eixo Pretória-Salsbury, foram alvos de agressões sistemáticas destes países na tentativa de salvarem o apartheid. Maputo e Luanda viriam a enfrentar intermináveis guerras civis e com os seus vizinhos apoiando os movimentos rebeldes, a RENAMO e a UNITA, enquanto toda a África Austral se tornava palco privilegiado da guerra fria, com as superpotências do mundo bipolar em apoio das partes em conflito.
Moçambique e Angola resistiram e seriam os regimes de apartheid da África do Sul e da Rodésia e o regime colonial da Namíbia a desabarem. A independência da Namíbia e a conquista do poder pelas maiorias negras no Zimbabwe (antiga Rodésia) e na África do Sul, contrariando as expetativas do ocidente e mesmo o empenhamento direto dos EUA que previam e desejavam se perpetuasse a hegemonia branca na África Austral, foi consequência direta das lutas de libertação e das independências de Moçambique e de Angola. Nas conclusões do meu livro …da descolonização, escrevi: «As independências das colónias portuguesas na África Austral foram momentos de rotura com uma projeção geopolítica, regional e global, transcendente. O quadro geopolítico mudou radicalmente.» (p. 716) É justo salientar isto.
Mas há um último aspeto, a que já atrás aludi de passagem, que importa destacar, até porque nem sempre tem merecido a merecida atenção.
Em Portugal é consensual a perceção que se tem da importância do 25 de Abril de 1974 na independência das colónias. É matéria onde, ironicamente, convergem, ainda que por motivações diferentes, os detratores do 25 de Abril que não lhe perdoam a “traição” de ter interrompido a “epopeia” imperial, e os seus apologistas que lhe louvam o sentido humanista e libertador que contribuiu para acabar com uma guerra injusta e sem sentido e para que fosse reconhecido o direito dos povos das colónias à sua liberdade e independência. Não alinhamos, porém, no equívoco generalizado que atinge ambos os lados e considera o 25 de Abril o fator determinante das independências. Temos deixado bem frisado, em trabalhos publicados e mesmo aqui, não ser esse o nosso entendimento. Sem recusarmos a sua importância como fator de aceleração do processo e para a forma como se processaram, sem derrotas humilhantes no campo de batalha, sem roturas definitivas entre colonizados e colonizador, através de negociações formais, pensamos que o fator determinante foi a luta dos colonizados pela sua libertação.
Mas há, também, a outra face da moeda, isto é, o contributo das lutas de libertação dos povos das colónias para o movimento contra a ditadura em Portugal e, consequentemente, para o 25 de Abril com os contornos que este assumiu, libertador, pacifista, democrático, anticolonialista, progressista. Sem entrar aqui em pormenores, que o espaço disponibilizado não permite, isto é reconhecido quer do lado português quer dos países africanos. Desde Humberto Delgado[1], que estabeleceu contatos com dirigentes dos movimentos de libertação e chegou a admitir a urgência de abrir uma quarta frente na metrópole associada à luta aberta pelos africanos em Angola, Guiné e Moçambique, a Manuel Alegre[2] que não teve dúvidas em afirmar que, lutando pela libertação dos seus povos, os movimentos de libertação também libertaram o país colonizador, a João Paulo Guerra[3] que atribui à guerra conduzida pelos movimentos nas colónias uma importância decisiva na corrosão e desgaste da ditadura, até Melo Antunes, o ideólogo do MFA, que traduziu esta realidade ao afirmar que a libertação das colónias e a libertação de Portugal eram duas faces da mesma moeda, a luta contra a ditadura colonial. Melo Antunes sintetizou este pensamento, paradigmaticamente, na “Apresentação” de um outro livro de João Paulo Guerra[4]: «[…] estávamos do mesmo lado da História.» (p. 17).
Do lado dos dirigentes africanos houve convergência nesta interpretação. Em finais de 1962, Agostinho Neto e Eduardo Mondlane fizeram saber a Humberto Delgado que estariam dispostos a apoiarem uma conferência entre a oposição portuguesa e os movimentos africanos, na qual também participaria o PAIGC. Mais tarde Amílcar Cabral ameaçava que os movimentos de libertação poderiam estender a sua luta ao território metropolitano, no que seria apoiado por Samora Machel. Já posteriormente ao 25 de Abril, na Declaração Final da Conferência Inter-Regional de Militantes do MPLA realizada em 2 de setembro de 1974, afirmava-se: «A luta armada nos territórios sujeitos à dominação colonial portuguesa contribuiu de forma determinante para a queda do regime fascista em Portugal, tornando assim possível […] a democratização daquele país […]» Leitura que, porventura, terá influenciado Agostinho Neto quando, na cerimónia do encerramento da Cimeira do Alvor, onde foi aprovado o Acordo para a independência de Angola, discursando em nome dos três movimentos de libertação angolanos, enfatizou o sentido comum da luta dos nacionalistas africanos e dos oposicionistas portugueses que culminou no 25 de Abril. E, por isso, chamou ao MFA o “quarto movimento de libertação”. Na outra costa não era diferente o pensamento que, sobre esta matéria, tinha Samora Machel. Logo a seguir ao 25 de Abril Samora Machel assinalou que o que estava a acontecer em Portugal estava intimamente ligado ao combate anticolonialista dos moçambicanos. O que retomaria no seu discurso, já como presidente da República de Moçambique, na cerimónia de celebração da independência, com a presença do primeiro-ministro português Vasco Gonçalves, ao afirmar que as lutas de libertação nacional «[…] também deram a sua contribuição para a libertação do próprio colonizador […] Nas florestas e savanas africanas foram formados, não somente guerrilheiros dos movimentos de libertação, mas também as consciências dos jovens oficiais portugueses.»[5] É algo que hoje, à maioria dos homens do MFA, não oferece qualquer dúvida.
Ao festejarmos os 50 anos do 25 de Abril comemoremos, obviamente, a arrancada vitoriosa do MFA. E façamos a justiça de assinalar, também, com igual reconhecimento, a luta de 48 anos do povo português contra a ditadura, a luta dos povos das colónias pela sua libertação e, finalmente, a posterior adesão dos portugueses nas ruas que deu oportunidade a que o levantamento militar não se ficasse pelo mero golpe de estado, se transformasse num processo revolucionário. É este que, apesar dos muitos retrocessos, ainda é a matriz generosa da revolução dos cravos e ficou consagrado na Constituição da República Portuguesa de 1976.
Notas: [1] A tirania portuguesa, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1995 [2] Seminário 25 de Abril 10 anos depois, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1984 [3] Memória das guerras coloniais, Afrontamento, Porto, 1994 [4] Descolonização portuguesa, o regresso das caravelas, Oficina do Livro, Alfragide, 2009 [5] Revista Tempo, Lourenço Marques, número especial de junho de 1975, p. 37

Pedro de Pezarat Correia
(1932)
Oficial General do Exército na reforma. Professor Universitário jubilado
Nº 1766 - Primavera 2024