50 anos depois… o que faz falta?
É frequente ouvirmos a expressão “temos uma escola do século XIX, professores do século XX, alunos do século XXI” para fundamentar a crença enraizada do “e se tudo muda… porque não muda a escola?” Mas em boa verdade, a escola do século XIX não tem nada a ver com a escola atual e, em particular nos últimos 50 anos, a Escola mudou na forma de ser, de estar, de ensinar, de aprender, de pensar, de socializar, de inovar…
Os últimos 50 anos têm sido marcados por transformações significativas na educação – a expansão do pré-escolar, o aumento da qualificação, o investimento na formação de professores, o crescimento do corpo docente, os modelos de gestão escolar, a diversidade da população escolar, a inovação pedagógica, a expansão das instituições de ensino superior, a revolução digital, a capacidade de mobilizar o conhecimento… Os desafios também têm sido muitos – aceder à educação de modo igualitário; reduzir as disparidades entre áreas urbanas e rurais ou entre escolas públicas e privadas; melhorar a qualidade do ensino, promover práticas pedagógicas inovadoras, tornar as aprendizagens mais significativas, e mais recentemente tentar rejuvenescer o corpo docente. Muitos seriam os temas possíveis de explorar neste artigo, mas, enquanto Diretor de uma escola secundária, vou refletir em particular sobre três temas – gestão democrática, carreira docente e escola inclusiva.
- Gestão e autonomia – Viemos com o peso do passado e da semente?
A história da administração e gestão da Escola Pública em Portugal começou a escrever-se ainda antes do 25 de abril de 1974 com a figura dos Reitores, personalidades nomeadas pelo ministro da educação tendo por base critérios de confiança política, mas foi após a Revolução, e após um brevíssimo período de autogestão (com comités de gestão elegidos em assembleias resultantes de um forte envolvimento e comprometimento da comunidade escolar), que a “gestão democrática da Escola” assumiu força de Lei, muito embora a presença de velhos hábitos e de claras disrupções entre políticas-programas e práticas se perpetue até hoje, adensando-se em determinados períodos e esbatendo-se ou transfigurando-se noutros.
Com efeito, cinquenta anos depois do 25 de abril, 26 anos depois de um modelo de referência para a gestão escolar[1], em que autonomia e descentralização surgiam como conceitos fundamentais para a democratização, a igualdade de oportunidades e a qualidade do serviço público de educação, a agenda governativa portuguesa acentuou a liderança unipessoal[2] como variável determinante para o funcionamento eficaz dos estabelecimentos escolares, colocou os gestores escolares perante novas configurações do seu papel, determinou novos parâmetros para organizar as relações com os pares e com as autoridades governamentais, e evidenciou a mudança de paradigma em várias dimensões. Nesta mudança constata-se a alteração das relações entre o Ministério da Educação e a Escola, a passagem da gestão “experiencial” para a gestão “profissionalizada”, o acesso aos cargos de gestão, a representatividade da comunidade educativa e a evolução da Escola enquanto unidade de gestão. Este paradigma rompeu com a “tradição” herdada da “Revolução de 1974”, baseada no reforço do poder dos professores, no primado do “pedagógico sobre o administrativo” e na “gestão democrática”, entendida como a gestão exercida por órgãos colegiais eleitos.
Apesar dos “modelos”, a autonomia da escola tem sido uma promessa insistentemente repetida, mas eternamente adiada. Assistimos ano após ano a fenómenos que asseguram o protagonismo das equipas governativas com uma retórica generalista, mas sem consequências visíveis. Passados estes 50 anos podemos questionar-nos como está a autonomia das escolas, quando, em cada dia, parece assistir-se ao retorno de conceções instrumentais, mecanicistas e técnico-burocráticas da organização escolar.
Com a recente descentralização de competências, a promessa tem sido a de um olhar atento das autarquias que asseguram alimentação, transporte, planeamento, recursos, lógica de proximidade, investimento, equipamento e manutenção de edifícios escolares, mediante a prática já acumulada. Mas será que todas as autarquias dispõem das mesmas condições humanas, físicas e económicas para dar resposta a todos os objetivos de uma forma igualitária para todos os cidadãos? Será possível assegurar uma decisão administrativa que não tenha uma componente pedagógica? Faz sentido que coexistam no mesmo espaço escolar funcionários do município (assistentes técnicos e operacionais) e outros do Ministério de Educação (professores)? Ou não pertencemos todos ao mesmo projeto educativo de escola? Ou as escolas deixarão de ter uma identidade dentro da sua localidade? Viemos com o peso do passado e da semente?
- A carreira ao longo dos tempos – A sede de uma espera só se estanca na torrente?
Em 50 anos muito se alterou em termos da missão escolar e atualmente tudo é pedido à escola. Em termos administrativos, espera-se que o diretor, entre a sua missão de liderança, seja responsável pelo preenchimento de inúmeras plataformas nas quais tem de consultar ou inserir dados de natureza diversa; aos professores e diretores de turma pede-se o encaminhamento de alunos problemáticos para inúmeras equipas de trabalho e instituições; em termos pedagógicos, para lá das experiências de aprendizagem relativas aos conteúdos programáticos de cada disciplina, pressupõe-se a abordagem de um sem número de áreas transversais – educação ambiental, toxicodependência, igualdade de género, segurança rodoviária, violência doméstica ou abuso sexual, pouco fica de fora; às escolas é pedido para concretizar uma infinidade de projetos, sabiamente idealizados por instituições públicas e privadas, sempre em nome de causas grandiosas, que com o trabalho acrescido dos professores, encontram na escola, campo ideal para veicular todo o tipo de mensagens junto dos alunos, e tudo isto pode ser certo, mas será que a escola pode fazer tudo isto?
Isto prende-se, também, com o modo como a profissão se tem desenvolvido e tem sido encarada ao longo dos tempos, o constante desrespeito dos políticos pelo trabalho dos professores e a criação de desequilíbrios e contradições. Os governos massacraram a classe docente, burocratizaram a profissão, desrespeitaram o horário de trabalho, ignoraram problemas… E apesar de sucessivos relatórios nacionais e internacionais, recorrentemente terem alertado para a gravidade do envelhecimento da classe docente, e dos efeitos a isso associados, esta desvalorização da profissão conduziu à falta de professores, na maior parte dos grupos de recrutamento, tal como há 50 anos. A previsão é a de 50 mil professores a aposentar-se até 2030 e a maioria dos grupos de recrutamento a perder mais de metade dos docentes de quadro. A este cenário também não foi alheio um modelo de avaliação do desempenho docente que desencadeou a maior luta de professores de que há memória e fez com que no dia 8 de março de 2008, um mar de professores desaguasse em Lisboa, num gigantesco protesto que partiu do Marquês de Pombal e terminou no Terreiro do Paço, com cerca de 100 mil docentes a contestarem a política educativa do Governo, a exigir a demissão da Ministra da Educação e o fim do seu modelo de avaliação. Ainda assim, silenciado por incompreensíveis motivos, na atualidade é este o modelo que ainda vigora e que continua a revelar-se um obstáculo à progressão na carreira. A sede de uma espera só se estanca na torrente?
- Inclusão e avaliação – Liberdade de mudar e decidir?
Neste ponto gostaria de salientar duas áreas – Depois de uma inesperada pandemia que nos abalou e condicionou o modo de viver, apesar do elevado esforço por parte de todos, nos últimos anos, acentuaram-se fragilidades em termos de aprendizagens, de socialização, de desenvolvimento emocional, de saúde mental. E entre os mais penalizados encontram-se os alunos com necessidades educativas especiais, os alunos institucionalizados e os estrangeiros não falantes de Português, deixando cair por terra a ideia de uma escola inclusiva, um dos grandes desafios da escola atual. E aqui, a primeira nota – Integrar imigrantes ou refugiados que se fixam em Portugal significa, no essencial, criar um sentido de pertença à comunidade que só pode ser construído se a relação da pessoa estrangeira com quem a acolhe for simples e eficaz. A língua constitui uma das grandes barreiras à integração, pelo que o apoio linguístico é fundamental no ambiente com o qual se estão a familiarizar. Infelizmente, esta prática nem sempre é possível, baseando-se a integração escolar destes alunos, num sistema absurdo de equivalências automáticas, o que pode tornar o quotidiano penoso para estes estudantes, que por sua vez torna mais lento o processo de adaptação.
Uma segunda nota que gostaria de deixar diz respeito ao acesso ao ensino superior, baseado numa avaliação das aprendizagens refém de provas de avaliação externa. Resistindo aos anos, a todas as mudanças, capacidade de inovar e de repensar paradigmas, os rankings escolares fundamentam o conceito de sucesso baseado no resultado de um exame e ano após ano acentua-se a perceção social de que as escolas bem classificadas nestes rankings serão as melhores, e que um aluno que nelas seja integrado terá melhores classificações nos exames e, porventura, uma vida de maior sucesso. Em cada ano, parece mais feroz a caça à décima para entrar num curso almejado, com um acesso ao ensino superior fortemente condicionado pela realização dos exames. Para quando, e em liberdade, a capacidade de mudar e decidir?
A concluir, 50 anos depois…
Que este abril seja o reflexo da esperança que ainda mantemos na educação e que numa Liberdade do desconcerto, se compreenda que há um mundo à espera de ser concertado. Num novo abril, é fundamental criar uma gestão colegial com verdadeira autonomia, uma carreira docente aliciante que capte e motive os jovens para serem professores, permitindo o rejuvenescimento de um corpo docente envelhecido; valorizar a imagem do professor e a estabilidade profissional numa carreira estruturada e com um horário que se possa cumprir; desenvolver políticas para acolher e integrar alunos estrangeiros que envolvam toda a comunidade escolar; valorizar os projetos de vida dos jovens na sua vivência na escola com as suas motivações, expetativas, emoções e sonhos; recuperar a escola da curiosidade, do espírito crítico, da criatividade, da equidade, do debate, uma escola com vida, que, como diria Camões não perderá seu preço e sua valia (Os Lusíadas, canto V est. 100).
Notas: [1] Decreto-Lei nº 115-A/98, de 4 de maio [2] Decreto-Lei 75/2008, de 22 de abril
Nº 1766 - Primavera 2024
