A Revolução de Abril, um grande passo em frente na vida dos portugueses
Nos 50 anos da Revolução do 25 de Abril de 1974, somos justamente convocados para as celebrações desse histórico acontecimento que tão profundamente transformou o país e a vida dos portugueses ao derrotar o regime opressor e pondo fim ao domínio colonial de outros territórios e povos, levando a sua forte dimensão libertadora a todos os cantos do mundo.
Chegava ao fim uma longa e dura caminhada em que os portugueses enfrentaram com luta e resistência tempos de barbárie, repressão, tortura, perseguição, censura, muitos e muitos deportados, dezenas de milhares de presos políticos e mais de duzentos mortos.
Ao celebrarmos os 50 anos do 25 de Abril é necessário lembrar as imensas lutas que se prolongaram por quase um século, desde os anos finais da 1.ª República, quando os sonhos se desvaneciam, as lutas não tinham resposta, se iniciaram as vagas repressivas e por fim se instaurou a ditadura e o fascismo.
Estávamos ainda nos anos vinte do século passado quando a República se deixou afogar em contradições, pela inflação galopante e o agravamento das condições de vida da população.
Já incapaz de cumprir as promessas que havia feito – com os governos a sucederem-se, alguns arrastados em corrupção, desnorteados e sem soluções e respostas para a situação que se agravava, acabando por recorrer a vagas repressivas para suster a insatisfação, o desespero das massas e conter as suas lutas, uma crise que os democratas da altura não souberam resolver –, a República foi traída pelo golpe militar de 28 de maio de 1926.
Seguiram-se os longos e negros 48 anos de ditadura fascista, aprofundada a partir de 1933 com Salazar e a sua máscara do “Estado Novo” no mesmo ano em que Hitler chegava ao poder na Alemanha e outros regimes fascistas se expandiam pela Europa.
Operários, militares, estudantes, democratas, desde a primeira hora deram combate à ditadura, as primeiras revoltas militares desenrolaram-se logo em 1927, um ano depois do golpe militar que acabou por impor o regime repressivo que conduziu ao fascismo.
Para servir os grande interesses económicos e financeiros, o fascismo criou e foi aperfeiçoando, ao longo dos anos, um forte aparelho repressivo, com base nas forças policiais militarizadas, na polícia política, num forte controle do funcionalismo público em toda a estrutura do Estado, uma rede de “bufaria” espalhada pelos locais de trabalho, escolas, universidades, cafés, tabernas e até no seio de famílias, a imigração política forçada, locais para a deportação no continente e sobretudo nas ilhas e nas colónias, os tribunais especiais e uma rede de cadeias para encarcerar os opositores e a teia de cumplicidades envolvendo até setores mais reacionários da igreja.
Houve sempre resistência. A greve geral de 18 de janeiro de 1934 contra a tomada dos sindicatos pelo fascismo; a revolta dos marinheiros no Tejo em 1936; as grandes lutas dos operários agrícolas no Ribatejo e Alentejo pelas conquista das 8 horas de trabalho; as lutas prolongadas dos pescadores de Peniche, Nazaré e Matosinhos, do operariado dos têxteis da Covilhã e outras localidades da corda da Serra da Estrela, dos Corticeiros no Montijo, Seixal, Grândola, Silves e outros locais, das enfermeiras nos hospitais e maternidades contra o celibato e tantas, tantas outras greves, manifestações e protestos, foram marcos da luta e resistência contra o fascismo. O Partido Comunista Português, que a 6 de março, completou 103 anos de vida, resistiu sempre, lutando na clandestinidade.
Foi nessa ininterrupta revolta, com o evoluir das lutas, de movimentos democráticos, de ações que envolveram os principais centros operários e movimentaram populações dos campos e da cidade, civis e militares, que resistiu sempre às vagas repressivas, que se desenvolveu e reforçou a consciência antifascista e se forjou a experiência, a atitude, o despertar e a organização tão fundamental para criar as condições que mais tarde foram a fonte e a génese do levantamento militar e popular vitorioso em 25 de abril de 1974.
São páginas e páginas de uma epopeia, descrita sempre de forma incompleta, uma experiência histórica simultaneamente heroica e revolucionária que hoje e sempre democratas, antifascistas e as instituições da República devem saber preservar e tornar conhecida até como elemento de formação cívica, democrática e de preservação da memória sobretudo para as novas gerações.
A Revolução Portuguesa do 25 de Abril não foi uma transição negociada e muito menos uma simples mudança de governo, mas um levantamento revolucionário, militar e popular, que derrotou o fascismo e logo deu início a um processo profundamente transformador que marcou a vida dos portugueses como nunca havia acontecido.
Pela forma como foi preparado e como decorreu, pela determinação e envolvimento de jovens militares, oficiais e soldados e pelo gigantesco apoio popular, o 25 de Abril de há 50 anos surpreendeu o país e também o mundo.
Provocando uma rutura com o passado fascista de 48 anos e animada pelo grande entusiasmo da participação popular, a Revolução de Abril, logo deu lugar a um processo de transformação progressista, inaugurando um novo tempo de alegria e de liberdade, afinal o mais avançado que o país e os portugueses viveram.
Poucos foram os povos que viveram igual experiência.
A URAP, A MEMÓRIA E O MUSEU NACIONAL DE RESISTÊNCIA E LIBERDADE
Sobre esse tempo, o que foi o fascismo e os seus crimes, tem a URAP dedicado parte substancial da sua atividade para o dar a conhecer, sobretudo aos mais jovens, através de sessões, de palestras e de livros que tem vindo a editar na coleção “Páginas de Memória”, reunindo testemunhos, depoimentos, descrição de lutas e acontecimentos e divulgando um a um, os nomes de homens e mulheres ex-presos da PIDE, num prolongado trabalho de pesquisa que vem realizando em arquivos na Torre do Tombo.
Uma informação que tem sido levada a milhares de alunos e a muitos professores nas numerosas sessões e encontros que a URAP promove com a participação de ex-presos políticos e outros antifascistas, conversas, palestras onde se fala desses tempos, como era a vida durante o fascismo, em que são dadas a conhecer as experiências e testemunhos, mas em que se fala também do presente, dos novos problemas e da importância de se combater a guerra e o militarismo e defender a paz.
Nesse sentido, é com sentimento de vitória e regozijo que vai ter lugar no próximo dia 27 de abril, dia da libertação dos presos políticos do fascismo, a inauguração do novo Museu Nacional Resistência e Liberdade na Fortaleza de Peniche.
Sim, trata-se mesmo de uma importante vitória. Foi o resultado do largo movimento da opinião democrática dinamizado por ex-presos políticos, familiares, amigos, muitos democratas, antifascistas e pela URAP que contrariou a intenção do governo para transformar a Fortaleza de Peniche em espaço hoteleiro de gestão privada. Foi uma luta que alcançou o seu objetivo. O Museu tem estado a ser erguido, a sua inauguração e abertura vai ser um dos maiores e mais simbólicos acontecimentos das celebrações dos 50 anos da Revolução de Abril.
A velha Fortaleza de Peniche, onde entre 1934 e 1974 funcionou uma das mais sinistras cadeias do fascismo é agora um fundamental museu da resistência e liberdade que mostrará em cada recanto, em cada corredor e sala a sala, a história, a informação, as fotos, os testemunhos e as pequenas celas com os gradeamentos onde dias e noites durante meses e anos se vivia, naquele silêncio apenas interrompido pelo barulho do mar e o grito das gaivotas.
Ao passarmos o antigo espaço do recreio dos presos, logo à direita do pavilhão B, naquela parede comprida ficam agora as fotos e pequenas biografias dos mais de 200 mártires, na sua maioria comunistas, assassinados pela PIDE, o Memorial que se junta a outro Memorial logo à entrada, onde figura um a um, o nome dos mais de 2.500 presos antifascistas que entre 1936 e 1974 ali cumpriram as penas, os acórdãos dos tribunais fascistas e, muitos deles, as infindáveis medidas de segurança indicadas pela PIDE.
A CONTRARREVOLUÇÃO E A LUTA QUE CONTNUA. 25 DE ABRIL SEMPRE, FASCISMO NUNCA MAIS!
A Revolução de Abril foi um processo único, quem o viveu e nele participou não o esquecerá.
Mas foi um processo libertador que sempre teve opositores. Desde muito cedo, fascistas e reacionários começaram a conspirar. Só a experiência e a lucidez dos democratas e a forte ligação entre o povo e os militares, a tal dinâmica povo-MFA, permitiu derrotar a conspiração e enfrentar os obstáculos e seguir com novos avanços.
Mas tratou-se de uma revolução sem um verdadeiro poder revolucionário. Nos governos estavam ministros identificados com a Revolução, mas também outros para a travar e trair. Foram sempre muitas as pressões, o ambiente de mentiras, as sabotagens e os conflitos e assim logo nos primeiros momentos se deram as tentativas de golpadas, quando, por exemplo, se procurou impedir a libertação de todos os presos políticos e o povo gritava a exigir a sua libertação e dentro das cadeias soava também o grito “ou todos ou nenhum”.
Seguiu-se o “golpe de Palma Carlos”, então primeiro-ministro, tendente a concentrar poderes no Presidente da República e assim esvaziar o MFA e o papel libertador dos militares. Depois em 28 de setembro a conhecida operação reacionária da “maioria silenciosa”. Foram diversas as tentativas de golpes que o povo e os militares do MFA derrotaram.
Meses mais tarde, em 11 de março, de novo a instrumentalização golpista iniciada com tentativa de assalto ao RALIS. Em todas elas esteve envolvido Spínola, fascistas e reacionários, contando até com a cumplicidade, senão mesmo envolvimento, de partidos que dando o dito por não dito foram metendo na gaveta parte substancial dos seus programas, ideias e compromissos que proclamaram em inflamados discursos.
O golpe contrarrevolucionário do 25 de novembro, alterando a correlação das forças políticas e fragilizando de morte o Movimento das Forças Armadas, abriu caminho à contrarrevolução legislativa, a medidas contra os trabalhadores, à divisão do movimento sindical, à destruição da reforma agrária, ao fim da irreversibilidade das nacionalizações e às privatizações das empresas do setor empresarial do Estado.
Neste ano da celebração dos 50 anos do 25 de Abril, importa lembrar as mil e uma lutas que a partir daí o povo e os trabalhadores desenvolveram, as concentrações, mobilizações, a resistência à poderosa ofensiva dos sucessivos governos para destruir conquistas, quantas vezes recorrendo a formas repressivas, à violência e até a mortes, como as de trabalhadores agrícolas em defesa das unidades coletivas de produção, herdades que tinham retirado do abandono e cultivado.
Nesse sentido é indispensável reconhecer que as políticas governativas nestas últimas mais de quatro décadas e meia, apesar da denúncia e da resistência popular, acabaram por restaurar antigos monopólios e ajudaram a criar outros mais. Esta é a outra parte da história mais recente, da luta corajosa para defender palmo a palmo o que se tinha conseguido no decurso da Revolução.
Celebrar os 50 anos do 25 de Abril exige, por isso, que se olhe as políticas entretanto realizadas pela ação dos diversos governos, alguns deles muitas vezes apresentados como de esquerda, mas que afinal concretizaram políticas de direita servindo assim interesses que diziam contrariar e combater.
Por curiosidade histórica vale a pena revisitar o que diziam os programas dos diferentes partidos, o que afirmavam nos seus projetos de Constituição e depois as políticas que conduziram a partir dos governos que formaram e dirigiram.
Porém, acontece que a maioria da população portuguesa, felizmente, já não viveu o tempo do fascismo e também não teve a oportunidade de participar nos dias felizes da Revolução de Abril. Por isso, não pode comparar um e outro tempo, o tempo da opressão e do fascismo e o novo tempo aberto pela Revolução de Abril e assim perceber melhor o alcance, valor e significado do muito que se conseguiu realizar e conquistar, o grande acervo de conquistas alcançadas e, entretanto, o muito que se retrocedeu em resultado da ação dos governos nas últimas décadas.
O caminho aberto pela Revolução de Abril, embora interrompido e tão brutalmente atacado nas últimas décadas, permite-nos ainda usufruir de uma imensidão de direitos e conquistas que a Constituição incorpora. O texto constitucional continua a indicar um tempo que falta ainda percorrer, podendo mesmo ser a grande plataforma dos democratas e ponto de encontro de novas gerações para retomar o rumo e os valores da Revolução de Abril.
Como o vai-e-vem das marés, vivemos tempos de mobilização e de alerta porque em Portugal, na Europa e no mundo, no rescaldo do descontentamento destas políticas de mentira, engano e de agravamento das condições de vida, onde borbulha a corrupção, a exploração e a lama de que a reação e o fascismo se alimentam, a extrema-direita xenófoba e racista e até grupos neonazis têm ganho expressão nos parlamentos e até em governos.
Os portugueses têm por isso fortes razões para celebrar os 50 anos do 25 de Abril com festa, e também com luta, para que fiquem definitivamente bem para trás os tempos da miséria, do atraso, da mordaça, da censura, das perseguições, do fascismo e das suas sinistras cadeias.
Que esses tempos, esse passado, nos fiquem suficientemente distantes e finalmente se concretize a necessária rutura com os ciclos de domínio dos grandes interesses, que a democracia e a sociedade retomem outro novo percurso com políticas diferentes, melhor distribuição da riqueza produzida, com melhores respostas às necessidades dos jovens, dos trabalhadores e do país, o caminho iniciado com a Revolução de Abril.
Neste galopar do tempo é indispensável lembrar a história, o caminho percorrido, saber-se como foi, como aconteceu, para não voltarmos a tropeçar na arbitrariedade e hoje, mais informados e avisados, combater as novas ameaças reacionárias da extrema-direita e do fascismo continuando a afirmar, 25 de Abril sempre, fascismo nunca mais.

José Pedro Soares
(1950)
Ex-preso político e Coordenador da URAP – União de Resistentes Antifascistas Portugueses