Celebrar Abril

Ao longo de quase meio século (1926-1974), Portugal viveu sob um regime ditatorial, de partido único, em que a censura, a repressão e o uso da violência foram instrumentos centrais de atuação do Estado. Um país analfabeto e pobre, com profundas desigualdades e onde apenas tardiamente, e para muito poucos, a mobilidade social foi possível. Um país que Eduardo Lourenço comparou a uma “Disneylandia”, “sem escândalos, nem suicídios nem verdadeiros problemas”, ocultados por um regime que pugnava pelo “viver habitualmente”. Um país que travou, durante 13 anos, uma guerra colonial em várias frentes, que comprometeu o futuro de milhares de jovens e o deixou isolado na arena internacional. Um país “orgulhosamente só”.

Quando, a 25 de Abril de 1974, os jovens capitães do Movimento das Forças Armadas levaram a cabo um golpe de estado que, em menos de 24 horas, derrubou essa longa ditadura, o rumo da história nacional mudou decisivamente. As suas vidas, assim como as de milhares de portugueses, estavam prestes a alterar-se de forma radical.

O impacto desta intervenção transcendeu de imediato as fronteiras nacionais, num mundo dividido pela Guerra Fria e profundamente abalado por uma recente crise petrolífera. Depois de décadas de ostracização, Portugal teve destaque de primeira página em todos os media internacionais e captou a atenção de decisores políticos e académicos de todo o mundo. A singularidade do processo de mudança política então iniciado deixou patentes as limitações dos estudos até então desenvolvidos e transformou o Portugal revolucionário num laboratório político.

Os que se apressaram a estabelecer um paralelo entre estes acontecimentos e os que, um ano antes, tinham ocorrido no Chile (golpe Pinochet), rapidamente constataram o seu erro. Negando as previsões e os modelos mais comuns de intervenção dos militares nos processos de mudança política, o derrube da ditadura em Portugal foi protagonizado por um corpo de oficiais intermédios (capitães) que, além do mais, apresentava um programa democratizador preconizando a restauração das liberdades fundamentais, a constituição de um governo civil e a realização, no prazo máximo de um ano, de eleições livres. Do mesmo modo, imprevisivelmente, depois de mais de uma década a lutar nas frentes de África, iniciaram um processo de descolonização que se traduzirá, a breve trecho, no reconhecimento do direito dos povos à autodeterminação e na concessão da independência aos antigos povos coloniais.

Os 19 meses da revolução Portuguesa foram pródigos em acontecimentos: três tentativas frustradas de ‘golpe’ de estado; seis governos provisórios; dois presidentes da República; a intervenção dos militares na política; as alianças que os seus diversos sectores estabelecem com diferentes grupos políticos e movimentos sociais; a ação dos partidos e movimentos políticos; a forte crise do estado e a multiplicação dos centros de poder; as nacionalizações e o desencadeamento da reforma agrária; as experiências de controlo operário e autogestão; a multiplicação das iniciativas populares; a realização das primeiras eleições livres com sufrágio universal que mobilizaram praticamente todo o país (91,6% de votos); os casos República e Renascença e toda a turbulência que percorreu o campo da comunicação social; a desconfiança das potências ocidentais de que Portugal se transformasse num cavalo de Troia na NATO; o debate sobre a essência do socialismo português, permitindo a coexistência de experiências e conceções radicais com projetos políticos mais tradicionais que apontavam para a instauração de uma democracia parlamentar de tipo Ocidental ou, então, para um modelo estatizante, inspirado na experiência soviética; o peso esmagador da política que inundou as ruas, os quartéis, as fábricas, as escolas, os campos, … Todas as possibilidades estavam em aberto sendo que, no final, como observou Eduardo Lourenço, esta foi “a Revolução possível e lúcida”.

Na evocação da Viragem Histórica que o 25 de Abril representou, pretende-se celebrar a conquista da liberdade e a construção da Democracia, refletindo sobre o passado e os seus múltiplos significados no século XXI.

O programa da Comissão Comemorativa 50 anos 25 de Abril desenvolve-se em torno de dois eixos estruturantes – Memória e Futuro – refletindo o carácter plural e multifacetado da nossa democratização, através de uma experiência comemorativa de âmbito nacional e participada. Por um lado, recordando o papel de diferentes atores no caminho que levou ao fim da ditadura: o movimento estudantil, as oposições democráticas, o movimento operário e sindical, a luta dos movimentos de libertação africanos, etc. Por outro, revisitando a história do processo de construção da democracia portuguesa e dela tirando ensinamentos de futuro, atualizando os princípios e os valores subjacentes ao Programa do MFA: paz, liberdade, democracia e progresso.

As comemorações não se circunscrevem, felizmente, à atividade que a Comissão desenvolve. De norte a sul, o país celebra, com grande entusiasmo e consciência cívica, esse dia “inicial inteiro e limpo”. Escolas, bibliotecas, arquivos, autarquias, associações e as mais diversas organizações da sociedade civil mobilizam-se, tomando as comemorações como suas e assumindo os 50 anos do 25 de Abril e da democracia como seu património. Porque defender os valores e as conquistas de Abril significa defender a liberdade e a democracia.

Como observou Vitorino Magalhães Godinho, “os aniversários e centenários só podem ser úteis se constituírem ensejo para estudar problemas, meditar diretrizes, criticar certezas dogmáticas; caso contrário, mumificam os vivos, sem ressuscitar os mortos”. Os 50 anos da Democracia Portuguesa devem ser um catalisador que promova uma consciência coletiva de cidadania e a evocação dos acontecimentos de há 50 anos deve contribuir para uma sociedade mais participativa, plural e democrática. Porque o legado do 25 de Abril deve alimentar a nossa prática democrática hoje.