Ciclos que não se fecham, choques que são necessários
Escrevo este artigo a 11 de março de 2024, um dia depois das eleições legislativas, quarenta e nove anos depois do 11 de março de 1975. A 25 de abril de 2024, teremos 48 cadeiras ocupadas por fascistas na Assembleia da República, uma por cada ano de ditadura e teremos de encontrar modo de as fazer cair, uma a uma, se não queremos que a aposta interessada de Marcelo Rebelo de Sousa se concretize, “fechando-se um ciclo de cinquenta anos”. É sobre isto que temos de pensar, começando por tirar notas de história da economia política.
Economia política com esperança
A 11 de março de 1975, lembremo-lo, travou-se um golpe militar de extrema-direita e a revolução democrática e nacional teve então a oportunidade de se consolidar decisivamente, através do que o Decreto-lei 132-A/75 de 16 de março apodava certeiramente de “política económica antimonopolista”. De facto, através da nacionalização da quase totalidade do sistema bancário, os grandes grupos monopolistas, principais esteios materiais do fascismo, desapareciam, dando progressivamente lugar a um setor empresarial do Estado robusto, alinhado com as melhores práticas europeias e mundiais de economia mista.
Lembremos que a 1 de maio de 1974, no mesmo dia em que a classe trabalhadora portuguesa confirmava em liberdade a transformação de um golpe militar numa revolução, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas aprovava a Declaração sobre o Estabelecimento de uma Nova Ordem Económica Internacional (NOEI). O ano de 1974 não acabaria sem a aprovação, a 12 de dezembro, pela mesma Assembleia, de uma Carta de Direitos e Deveres Económicos dos Estados. Os Estados Unidos da América (EUA) seriam um de meia dúzia de países capitalistas desenvolvidos a votar contra uma Carta aprovada com 120 votos a favor. É fácil explicar o voto dos EUA contra a Carta, quando, por exemplo, se lê no seu Artigo 2 que “cada Estado tem e deve exercer livremente a soberania plena e permanente sobre a sua riqueza, recursos naturais e atividades económicas”.
A política de nacionalizações em Portugal tinha então a sua contraparte rural, como aconteceu em tantas outras experiências revolucionárias, nos campos do Sul, com o processo de reforma agrária. Não há processo revolucionário de democratização sem ir à raiz, sem uma profunda alteração nas relações sociais de propriedade. Não há processo de democratização que não assuma algum controlo social sobre duas “mercadorias-fictícias” centrais, o conceito é de Karl Polanyi, seja porque uma diretamente política, seja porque uma natural e fonte de renda, respetivamente a moeda-crédito e a terra.[1]
Estas alterações seriam, por sua vez, uma das bases materiais do Estado de Direito Democrático e Social fixado na Constituição da República Portuguesa (CRP), uma cristalização das intensas lutas de classes democráticas de 1974-1975, aprovada apenas com os votos contra dos deputados do Centro Democrático e Social, a 2 de abril de 1976. Basta pensar que até à revisão constitucional de 1989, as mudanças democráticas nas relações de propriedade e nas formas de coordenação económica estavam constitucionalmente protegidas por fórmulas clarificadoras: “conquistas irreversíveis das classes trabalhadoras”, por exemplo.
De facto, as classes trabalhadoras organizadas – de classe em si a classe para si – tinham conquistado direitos, na prática e nas leis com efeitos práticos. O Artigo 1º da CRP proclamava de forma ambiciosa: “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na sua transformação numa sociedade sem classes.” No fundo, tratar-se-ia de uma economia mista, a caminho do socialismo.
Partia-se então do reconhecimento político-institucional de que o trabalho, de jure e de facto, não era uma mercadoria, sendo, quando muito, a terceira “mercadoria-fictícia” de que falou Karl Polanyi: “O trabalho é somente outro nome de uma atividade humana que acompanha a própria vida, a qual, por seu turno não é produzida para venda, mas por razões totalmente diferentes”.[2]
A instituição do Salário Mínimo Nacional (SMN), logo a 27 de maio de 1974, no I Governo Provisório, foi uma primeira expressão de razões desmercadorizadoras que iam da negociação coletiva ao fugaz controlo operário, num contexto de dinamização sindical, filha da estratégia comunista e católica de criação da Intersindical Nacional, a partir dos sindicatos nacionais previamente conquistados por tantos democratas e patriotas no tempo do fascismo. Fixado em 3.300 escudos, o SMN representou, automaticamente, um aumento significativo dos salários da maioria social de baixo, cujo peso no rendimento nacional atingiria o pico histórico nesses anos de intensa mobilização social e democrática. Em termos de poder de compra, chegados aos 40 anos do 25 de abril, em 2014, ainda antes dos aumentos deliberados pela solução governativa das esquerdas a partir de 2015, o SMN era inferior ao daquele ano de todas as possibilidades.
Às dinâmicas transformadoras de abril nas relações de propriedade e laborais, temos de juntar a complementar institucionalização do Estado social, associado a impostos fortemente progressivos: de um sistema de segurança social à criação do Serviço Nacional de Saúde, passando pela rápida massificação da escola pública e pela infraestruturação do país, obra também do poder local democrático. Assim, compreendemos a razão para uma grande expansão do emprego a seguir ao 25 de abril, mesmo num contexto económico internacional periclitante, e para uma súbita compressão da desigualdade de rendimentos e de riqueza, incluindo no topo da distribuição.
Estas realidades forjadas pela luta dão-nos pistas para a reação contrarrevolucionária de classe que se seguiu, à boleia das crises de balança de pagamentos, entre o final dos anos 1970 e a primeira metade dos anos 80, impedindo qualquer estruturação de uma economia política de desenvolvimento socializante para lá do Estado social. O medo da revolução levou a burguesia a uma reação a partir do Estado, crescentemente formatado pela sua envolvente internacional. De facto, as intervenções do Fundo Monetário Internacional e a aposta na adesão às Comunidades Europeias foram a forma de criar um vínculo externo condicionador, que facilitasse a progressiva incrustação do neoliberalismo.
O resto da história, incluindo o cavaquismo, é relativamente conhecido e, por isso, aqui chegados, peço a tolerância do leitor para o salto que vou dar.[3]
Choque salarial, choque antifascista
Escrevo este artigo procurando ser objetivo, mas não neutro. Apresentam-me como independente, mas considero-me dependente, procurando não acabar em mim mesmo: afinal de contas, acabei de ser candidato pela Coligação Democrática Unitária no distrito de Coimbra. Este artigo tem essas marcas e mais vale assumi-las: a 4 de março de 2024, tive a oportunidade de discursar num comício na cidade de Coimbra e trago atrevidamente para aqui um excerto, que resume o principal desafio que continuamos a ter pela frente, independentemente da relação de forças.
«Paulo Raimundo tem usado outra metáfora ao longo desta campanha em crescimento – “choque salarial”. É uma metáfora tão justa e tão poderosa que o PS se sentiu obrigado a usá-la. Porquê um choque salarial, porquê uma defesa de um aumento de dois dígitos dos salários? A realidade bruta explica as nossas razões. Entre 1999 e a atualidade, os salários reais cresceram 11,9%, mas a produtividade do trabalho cresceu 23,9%. Esta diferença representou automaticamente uma transferência de rendimentos do trabalho para o capital. As trabalhadoras e os trabalhadores estão apenas, através da CDU, a exigir o que lhes pertence.
Um choque salarial ajudaria a quebrar o círculo vicioso da economia portuguesa: baixa pressão salarial, mercado interno comprimido e falta de incentivo para o investimento empresarial produtivo. Os empresários podem mentir, mas não mentem no inquérito do INE: não é por causa dos impostos que não investem, mas por causa das “expetativas de vendas”. Os salários são uma fonte de procura.
Tudo começa e acaba nas relações sociais mais importantes, nas laborais, ali onde se cria tudo o que tem valor. A transferência de rendimentos do trabalho para o capital resultou de décadas de reduções dos direitos laborais e de correlativo aumento dos direitos patronais. Temos de fazer justiça a quem trabalha, aumentando o seu poder, reduzindo a discricionariedade patronal.
E tudo isto, porque se parte de uma hipótese tão generosa quanto realista: as trabalhadoras e os trabalhadores deste país fazem o melhor de que são capazes nas circunstâncias que são as suas. A nossa tarefa indeclinável é a de contribuir para humanizar as suas circunstâncias e desenvolver as capacidades populares.»
Esta tarefa é hoje mais difícil e obviamente não pode ficar circunscrita a uma coligação eleitoral. No espírito seareiro, é uma tarefa de todos os democratas e patriotas, que começam por identificar o inimigo principal: seria ilusório pensar que este ocupa apenas as tais quarenta e oito cadeiras. Ocupa muitas mais na Assembleia e sobretudo fora dela: as cadeiras dos conselhos de administração dos grandes grupos económicos e das casas dos milionários; as cadeiras das instituições europeias, da Comissão Europeia ao Banco Central Europeu, onde são definidas as políticas neoliberais que alimentam todas as fraturas sociais e todos os monstros políticos.
Mas identificar o inimigo não basta. É preciso desenvolver um programa de trabalho alternativo. Partindo de uma reflexão no blogue Ladrões de Bicicletas, deixo meia dúzia de pistas meramente sugestivas:
- Precisamos de alegria, de humor e de ironia finos, que corroam a propaganda das sociedades indigentes de comunicação, as que televisionaram a extrema-direita, subproduto do neoliberalismo, sem o qual de resto estas televisões ditas privadas nunca teriam existido.
- Precisamos de ter os olhos bem abertos: sociedades indigentes há muitas e os milionários, alimentados por uma forma de economia política neoliberal com décadas, têm cada vez maior capacidade de converter dinheiro em poder político, pagando “stink-thanks”, financiando as direitas cada vez mais extremadas, controlando cada vez mais aparelhos ideológicos.
- Precisamos de cultura com fôlego, como no antifascismo histórico, que “ganhe raízes no solo pátrio”, que imagine com luminosidade uma comunidade e o seu povo, que ame essa comunidade e o seu povo solar.
- Precisamos de economia política que vá à raiz, que parta do Algarve e que suba por aí acima, que exponha um modelo de desenvolvimento do subdesenvolvimento e o seu círculo vicioso: baixa pressão salarial e austeridade, subinvestimento modernizador, alimentação de fluxos migratórios súbitos, serviços públicos subfinanciados e sobrecarregados, rentismo fundiário e corrupção, ascensão da extrema-direita.
- Precisamos de economia moral, ponto de intersecção da tal cultura com fôlego e da economia política radical, ou seja, de um modelo de desenvolvimento, feito por propostas de política, por instrumentos de política soberana a resgatar, que deem os toques certos e com impactos sistémicos, contando uma história moral de um país plausível.
- Precisamos de mais e melhor organização, do YouTube ao sindicato, feita por militantes, ao invés de ativistas, solidária e acolhedora, sabendo sempre que as pessoas só se mobilizam por uma certa ideia esperançosa de Portugal.
Como escreveu o grande poeta Manuel António Pina, em 1974: “Ainda Não É o Fim Nem o Princípio do Mundo Calma É Apenas Um Pouco Tarde”.
Notas: [1] Karl Polanyi, A Grande Transformação, Edições 70, Lisboa, 2012 [1944]. [2] Idem, p. 215. [3] João Rodrigues, O neoliberalismo não é um slogan – Uma história de ideias poderosas, Tinta-da-China, Lisboa, 2022.

João Rodrigues
(1977)
Professor Auxiliar da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
Nº 1766 - Primavera 2024