Cinquenta anos depois de Abril. Está quase tudo dito, mas há muito que fazer
- – O 25 de Abril apanhou todo o mundo de surpresa: as chamadas democracias europeias estavam satisfeitas com o fascismo a que nos condenaram depois da derrota do nazi-fascismo e a CIA talvez esperasse algum golpe liderado por Spínola que se limitasse a umas obras de fachada e a uma ‘democracia’ ao gosto dos EUA.
Os homens do MFA fizeram o seu trabalho bem feito e, patrioticamente, não procuraram ‘ajudas’ externas, talvez por saberem que mais vale só do que mal acompanhado. Ainda antes do 11 de Março/1975, o general Carlos Fabião deixava claras as razões por que não devemos contar com ‘amigos’ pouco fiáveis (entrevista a Der Spiegel): “durante meio século o povo português viveu sob um despotismo tenebroso, sem qualquer liberdade, e nenhum dos governos amigos se incomodou especialmente com isso. Mas, agora, que nos libertámos a nós próprios, todo o mundo se preocupa com que possamos cair numa ditadura do proletariado.”
No dia 25 de Abril de 1974 eu estava em Paris a preparar o meu doutoramento. E vi na TV que, contrariando as instruções do MFA, o povo veio para a rua, mesmo antes de estar consolidada a vitória do golpe militar, abrindo de par em par “as portas que Abril abriu”, colocando cravos vermelhos nas armas dos soldados. O povo prendeu os pides, libertou os presos políticos, guardou os edifícios públicos, obrigou Spínola a aceitar de imediato a existência dos sindicatos livres (que tinham constituído a Intersindical Nacional nos tempos do fascismo) e de todos os partidos políticos, impôs o 1º de Maio dos trabalhadores, correu das autarquias os fascistas que as ocupavam. Ao ver o povo exercer os seus direitos, com tanto civismo, com tanta alegria e tanta determinação, eu acreditei que, depois de tantos anos de sofrimento e de frustração, o povo português iria juntar-se aos militares democratas e patriotas para, com eles, construir um País melhor.
Uns tempos depois, tive conhecimento de um documento elaborado durante a preparação da acção militar que derrubaria o fascismo no qual se lê que “o prestígio das instituições militares só será alcançado quando entre as Forças Armadas e o povo houver realmente unidade fundamental quanto aos objectivos a alcançar.”
Sempre vi aqui a semente da Aliança Povo-MFA. Algo que me parecia natural: o 25 de Abril foi o culminar de um longo caminho de lutas, marcado pela resistência de um povo que soube organizar-se, lutar e caminhar rumo à vitória. Cansado da humilhação, das prisões e dos assassinatos, da guerra colonial e da emigração em massa, o povo fardado pôs termo a uma ditadura de 48 anos, libertando o povo português da opressão e da miséria a que nos condenou o fascismo.
- – O 25 de Abril acabou com o regime fascista. Mas os fascistas não desapareceram com o 25 de Abril: tomaram novo aspecto, disfarçaram-se, mantiveram-se no aparelho de estado, ocuparam posições ‘nos partidos democráticos’, infiltraram-se nas organizações esquerdistas. Vestidos de Abril por fora, mas inverniços por dentro, cheios de medo e de ódio à revolução e ao socialismo.
Spínola e os spinolistas (e os interesses que eles reflectiam) não queriam libertar os presos políticos, nem extinguir a Pide/DGS, nem legalizar os partidos políticos e os sindicatos, nem queriam a Assembleia Constituinte. Não queriam a autodeterminação e a independência das colónias portuguesas (especialmente Angola e Moçambique). Queriam uma ‘democracia’ afeiçoada aos interesses do imperialismo. E começaram a lutar contra Abril logo na noite do golpe militar, prosseguindo depois essa luta em vários momentos posteriores, colocando o País à beira da guerra civil (golpe Palma Carlos-Spínola-Sá Carneiro, 28 de Setembro, 11 de Março, 25 de Novembro).
Consolidada a vitória da Revolução de Abril, muitos temeram o que era inevitável: que a libertação do povo português implicasse o reconhecimento do direito dos povos das colónias à independência pela qual tinham lutado de armas na mão, como era seu direito, perante a recusa de diálogo político por parte do Portugal fascista e colonialista.
Ainda em Janeiro de 1976, Mário Soares defendia, junto de Kissinger, ser “extremamente grave para outros países – e para o mundo ocidental em geral – o reconhecimento do MPLA por parte de Portugal.” Em Nota enviada para Washington em 17.2.1976, Carlucci salientava que “Soares e o PS bloquearam o reconhecimento do MPLA desde a independência”, mas entendia que “Soares está a combater uma batalha perdida.”
A batalha perdida de Soares foi a batalha ganha pelo MFA e pelo povo português, que se libertou do colonialismo (não pode ser livre um povo que oprime outros povos). Foi a vitória definitiva dos povos das colónias portuguesas. A descolonização é uma das grandes vitórias de Abril!
- – No quadro da Aliança Povo-MFA, o povo português apoiou o MFA no reconhecimento dos movimentos de libertação como legítimos representantes dos povos colonizados. E apoiou a nacionalização da banca, dos seguros e de outros sectores estratégicos da nossa economia (que tinham sido a razão de ser e a base de apoio do fascismo). E apoiou a ocupação das terras do latifúndio e a Reforma Agrária. E administrou as empresas abandonadas pelos patrões e criou cooperativas na agricultura, nas pescas, na construção de habitações. Foi a Aliança Povo-MFA que fez a revolução de Abril.
Se o MFA meteu medo a muita gente, a Aliança Povo-MFA meteu muito mais medo a muito mais gente: o número dos inimigos da Revolução aumentou consideravelmente quando o povo português se apercebeu de que a sua libertação só seria alcançada verdadeiramente através da construção de uma sociedade socialista. A adesão dos órgãos do MFA à opção socialista da revolução agravou o pânico entre os adversários de Abril.
A CIA é tão competente no seu trabalho que conseguiu vestir de ‘pomba’ o ‘falcão’ Frank Carlucci (ligado ao assassinato de Lumumba e ao golpe militar no Brasil). E Frank Carlucci, nomeado embaixador da CIA em Lisboa quando ainda se sentia o cheiro do sangue das vítimas nas ruas de Santiago do Chile, foi capaz de estabelecer relações privilegiadas com um homem como Melo Antunes (um homem de esquerda e um anti-fascista com provas dadas já antes do 25 de Abril) e com outros elementos do Grupo dos Nove, conseguindo mesmo fomentar uma ligação estreita e relações de confiança e de cooperação de alguns militares de Abril e gente como Henry Kissinger (o mandante do golpe de Pinochet).
E Carlucci, que veio para Lisboa para conter a ameaça comunista, foi capaz (cito Marcelo Rebelo de Sousa) de criar “uma cumplicidade estratégica com o futuro Presidente Mário Soares.” Mário Soares chegou mesmo a ser mais ‘duro’ que Carlucci. Cito o jornalista Miguel Carvalho: “Mário Soares, como hoje é público, solicitara inclusive ajuda militar aos seus aliados ocidentais. Esteve em cima da mesa uma invasão de tropas espanholas.”
Internamente, toda a gente sabe que, entre os militares, Spínola foi sempre o grande amigo de Mário Soares. Melo Antunes não poupa críticas ao PS e a Mário Soares porque “já se tinham aliado a Spínola e voltaram a fazê-lo (os spinolistas integram a casa militar do Presidente da República)” e porque, por ocasião do 25 de Novembro, “o PS e Mário Soares, em nome de uma certa ideia da esquerda, (…) aliaram-se ao que de pior havia nas Forças Armadas.”
- – A Revolução de Abril não conseguiu resistir à reacção interna e às acções contra ela desencadeadas pelos seus inimigos externos, os mesmos que condenaram o povo português a trinta anos de fascismo depois da derrota do nazi-fascismo em 1945 e que permitiram que o governo fascista de Lisboa mantivesse durante treze anos uma guerra criminosa contra os povos das colónias africanas.
Com a Revolução veio a liberdade e a democracia, o reconhecimento do direito dos povos colonizados à autodeterminação e à independência, a fixação do salário mínimo em 3.300$00, duplicando ou mesmo triplicando o rendimento de milhões de trabalhadores; e veio a generalização da segurança social, o direito ao subsídio de Natal, o aumento do abono de família e de outras prestações sociais; veio a licença de parto; a igualdade entre homens e mulheres. E vieram as nacionalizações e a Reforma Agrária, a subordinação do poder económico ao poder político democrático. E veio depois a CRP (que, no essencial, consagrou as soluções que o povo já tinha escrito, a tinta forte, nas ruas, nos campos, nas cidades, nos locais de trabalho), e, com ela, o Serviço Nacional de Saúde, o desenvolvimento da escola pública, o poder local democrático.
O País mudou. Por mais que isso custe aos saudosos do fascismo e a todos os defensores do empobrecimento como caminho da salvação (as troikas, os FMIs e os seus fiéis servidores), hoje somos um País melhor do que aquele que o fascismo nos deixou.
O mundo mudou. No mesmo ano em que a guerrilha vietnamita impôs uma derrota humilhante às forças imperialistas, a derrota do colonial-fascismo em Portugal significou também a vitória dos movimentos de libertação das antigas colónias portuguesas e o reconhecimento internacional da independência dos novos países africanos, pondo fim ao último império colonial e preparando o caminho para a derrota do apartheid na África do Sul.
- – O grande Camões já alertava para “quantos enganos/ faz o tempo às esperanças.” E a verdade é que, com os tempos, mudaram as vontades de muitos, provocando enganos às esperanças do povo que fez Abril.
“A Europa tornou-se alemã” e a Europa alemã (cito Ulrich Beck) “viola as condições fundamentais de uma sociedade europeia na qual valha a pena viver.”
Sabemo-lo bem: a democracia não pode considerar-se nunca uma conquista definitiva. As ameaças à democracia podem vir de onde menos se espera. Hoje é claro que o neoliberalismo é incompatível com a democracia. É preciso, por isso, lutar por ela todos os dias, combatendo os dogmas e as estruturas neoliberais próprios do capitalismo dos nossos dias, porque este é, essencialmente, um combate pela democracia.
São muitos os portugueses que se sentem gravemente atingidos nas suas condições de vida e na sua dignidade. Muitos poderão estar frustrados. Alguns poderão estar descrentes. Somos um povo cheio de contradições, capaz de todos os heroísmos, capaz de todos os servilismos. Mas sinto-me feliz quando penso em tudo o que fizemos depois de Abril. E sinto-me confiante no futuro, porque acredito, com Vasco Gonçalves, que o futuro com que sonhámos, o futuro do Portugal de Abril, “não é cada vez mais saudade, mas antes, cada vez mais, necessidade imperiosa.”
Os poetas ajudam-nos muitas vezes a ganhar forças. E Torga disse-nos que “a esperança nunca desespera.” Nestes tempos de guerra e de genocídio, é bom sabermos que podemos contar com Pablo Neruda, ele que um dia escreveu: “Dai-me toda a dor do mundo/ Vou transformá-la em esperança.” Sabemos, porém, que a esperança, como o sonho, só comanda a vida através da luta. Para os democratas, lutar por Abril continua a ser um dever de todos os dias, se quisermos honrar a memória dos “mortos que vão ao nosso lado”, como nos garantiu o poeta José Gomes Ferreira.
25 de Abril sempre! Fascismo nunca mais!
“Quem viu morrer Catarina/ não perdoa a quem matou.”

António Avelãs Nunes
(1939)
Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Direito de Coimbra
Nº 1766 - Primavera 2024