Descolonização como libertação
E na altura em que se comemoram os 50 anos do 25 de Abril, o tema da descolonização é incontornável. Em pleno século XXI a descolonização permanece um tema atual e de leitura complexa e situada. Por exemplo, nos debates públicos, os processos de transição para as independências africanas, a partir da segunda metade do século passado, são frequentemente usados como sinónimo da descolonização. Todavia, uma leitura cuidadosa revela diferenças importantes entre os dois conceitos. Enquanto a independência se refere à transição política ou judicial de uma colónia para um Estado autónomo e soberano, a descolonização compreende mais significados que importa conhecer.
Após décadas de críticas ao colonialismo e ao imperialismo, muitas narrativas contemporâneas insistem ainda que a miséria do Sul é fruto da sua própria sub-humanidade. Estas análises revelam um quadro analítico que não contempla a possibilidade de diálogos com outras experiências de luta e saberes que compõem o Sul global.[1] E falar do Sul implica aceitar que uma das características da modernidade nortecêntrica consiste na criação e reforço permanente de uma hierarquia intelectual, na qual as tradições culturais e intelectuais do Norte global são impostas como o cânone, autodefinidas como superiores porque apresentadas como mais desenvolvidas. Estas análises revelam que qualquer estudo, independentemente da sua origem, ao privilegiar um enfoque monocultural e hierarquizado da diversidade do mundo, reproduz uma lógica exclusivista que reafirma a posição de poder que assenta nos saberes presentes em bibliotecas coloniais.
Desafiar esta interpretação é possível se nos comprometermos a confrontar a modernidade colonial de frente, buscando, através de uma leitura dos impactos das relações coloniais, o nosso presente, perspetivando diálogos universais cujo alcance não se pode cingir às referencias do Norte global. Como destacou Albert Memmi [Portrait du Colonisé précédé de Portrait du Colonisateur, 1957], o sistema colonial é gerador de uma interdependência perpétua entre colonizadores e colonizados. Juntos, mas ocupando posições de poder diferentes, este sistema forjou um passado em comum, mas com diferentes experiências, que importa conhecer para compreender as lutas pela descolonização a Sul.
O colonialismo moderno, como projeto político, perseguiu um objetivo central: a negação do direito à história, à cultura, pelos povos dominados, através da violenta usurpação do seu direito à autodeterminação. A segmentação sociojurídica da sociedade colonial entre “colonizados e colonizadores”, entre “civilizados e indígenas atrasados” conferiu consistência a todo o sistema colonial, transformando os povos africanos em objetos, sobre quem urgia agir, para os “introduzir” na história, na civilização. Nesse contexto, a temporalidade linear é assumida como um meio neutro, através do qual a história universal se desenrola. Mas quer em situações de colonização direta, quer de neocolonialismo, o fio condutor da violência da colonização passa pela permanente negação da humanidade do Sul global. E ao longo das etapas de imposição do projeto moderno nortecêntrico consolidou-se a rutura ontológica e epistémica entre corpo e mente, entre a razão e o mundo.
Para vários académicos a descolonização é vista nesta longa duração das lutas pelo direito à autodeterminação e à autodefinição, a pensar o seu futuro a partir das suas experiências e saberes. Neste sentido, a descolonização integra os processos que (teoricamente) acompanharam as lutas pela independência política. A descolonização integra, pois, de forma ampla, a desvinculação dos laços entre o antigo colonizador e a colónia e o estabelecimento da soberania das antigas colónias, processos que se iniciaram muito antes da independência, com a resistência ao domínio colonial e a negociação da independência política, e que continuam depois desta transição.
As análises dos processos de transição em África revelam uma longa história do desenvolvimento do conceito de descolonização e das suas metamorfoses. Não é, pois, de estranhar que em Moçambique, na transição para a independência, a descolonização fosse apresentada como um desafio, como uma proposta de mudança cultural, política e epistemológica radical. Esta perspectiva da descolonização assenta no reconhecimento dos efeitos epistémicos persistentes do colonialismo: a forma como pensamos sobre as culturas, sociedades e povos e em que referenciais nos baseamos para o fazer. Por exemplo, a língua em que a literatura e a investigação são publicadas espelha o impacto duradouro do colonialismo enquanto projeto epistémico. É neste âmbito que Franz Fanon, nos Condenados da Terra [Les Damnés de la terre, 1961], apela à descolonização através da substituição de uma determinada forma de ser humano por outras formas de ser e estar, expressão de outras ontologias, epistemologias e posições políticas.
Se considerarmos a descolonização como um processo e não como um momento, o diapasão temporal e geográfico é alargado, integrando tanto momentos anteriores como posteriores às independências. Desafiando as tentativas de destruição epistémica e física dos povos colonizados, assim como as tentativas de assimilação forçada aos valores ‘civilizatórios europeus’, o grito “colonizados do mundo uni-vos”, lançado por Kwame Nkrumah em 1945 [Declaration to the Colonial Peoples of the World], expressou o reclamar, pelos povos africanos, de um projeto revolucionário para a criação de um outro mundo: um mundo antirracista, igualitário, assente em várias raízes culturais, colaborador ativo de uma história mundo interligada que desafiava as ameaças imperialistas. Este desafio encontrou eco no programa político da Organização da Unidade Africana (1963), onde a luta pela descolonização política, epistémica e ontológica inaugurou uma rutura com a linearidade do suposto projeto civilizatório, defendendo uma consciência e uma vontade política imanentes de mudança, um processo dinâmico no seio do qual o sujeito africano se reconstrói ao mesmo tempo que apela, se encarrega da uma reconstrução do mundo. Nesta senda, Amílcar Cabral [Libertação nacional e cultura, 1972], a exemplo de outros pensadores nacionalistas, sublinhou repetidamente que “sejam quais forem as condições de sujeição de um povo ao domínio estrangeiro e a influência dos fatores econômicos, políticos e sociais na prática desse domínio, é no fato cultural que se situa o germe da contestação, levando à estruturação e ao desenvolvimento do movimento de libertação.” E adiantou: “o fundamento da libertação nacional reside no direito inalienável que tem qualquer povo, sejam quais forem as fórmulas adotadas ao nível do direito internacional, de ter a sua própria história”. É neste contexto que Fanon apela a uma alteração radical da relação epistémica e ontológica no mundo, ao defender que a descolonização como propostas de mudança da ordem mundial, é “um programa de desordem absoluta”. Embora existam diferenças importantes entre as propostas políticas e epistémicas avançadas em contexto africano, comum a estas é a ideia de que os saberes e a epistemologia não são neutros ou a-históricos, mas sim geo-temporalmente e ideologicamente sustentados.
Apesar do prefixo (de), a descolonização não consegue reverter o processo de colonização ou anular os efeitos do colonialismo; assumir a descolonização como processo simultaneamente individual e coletivo, material e imaterial, contribui para fomentar outras leituras do mundo a partir do que Boaventura de Sousa Santos refere como as epistemologias do Sul [2014], promissoras de novas relações universais dialógicas. A universalidade não existe em abstrato, como um princípio prescritivo que se aplica mecanicamente a qualquer contexto. Ela é produzida e reproduzida no gesto insurrecional, que exige a emancipação não apenas para aqueles que partilham a mesma identidade, mas para todos; que exige que nenhum ser humano seja conduzido a uma condição de sub-humanidade. Visto deste prisma a descolonização introduz nas nossas reflexões epistémicas e éticas um ritmo próprio, mas reflexivo, em novas línguas, geradoras de um outro projeto de humanidade, quando a “coisa” colonizada se torna humana no próprio processo de libertação.
Pensar a partir das nossas raízes, com o Sul e desde o Sul anti-imperial, é fundamental para garantir um amanhã. Conhecer o mundo a partir das epistemologias do Sul, enquanto desafio teórico e metodológico, concorre para criar um mundo com múltiplos centros, advogando que a diversidade epistemológica do mundo é potencialmente infinita. Para Paulin Hountondji [1997], a desmarginalização de África, a sua descolonização epistémica, passa por assegurar “que a margem não é mais margem, mas parte e parcela de um todo multifacetado, um centro de decisão entre outros centros de decisão, um centro autónomo de produção de saberes entre outros”. Recuperar outras genealogias históricas pela (re)conquista de narrar a própria história – e, portanto, de (re)existir a partir das experiências e saberes vivenciados – constitui-se num dos alicerces do processo de descolonização. Esse processo integra um diálogo crítico sobre as raízes das representações contemporâneas, questionando as geografias associadas a conceitos como Estado, nação, língua oficial, conhecimento, etc.
Portugal, tal como as suas colónias, foi profundamente transformado pela relação de poder desigual durante a presença colonial. Não havendo um caminho definido para a descolonização, urge reconhecer que todas as partes estão envolvidas e foram afetadas pelos processos de descolonização, num contexto em que falar de uma sociedade pós-colonial tem significados distintos para o antigo colonizador e para a antiga colónia. E aqui refletir sobre a descolonização significa termos a capacidade de nos questionarmos repetidamente em relação às nossas posições no mundo, de forma dialógica e em permanência.
Nota: [1] O Sul global coincide apenas parcialmente com sul geográfico. No contexto usado neste artigo o Sul global identifica-se com uma proposta epistémica e política, alternativa ao projeto colonial-capitalista e heteropatriarcal.
Nº 1766 - Primavera 2024
