Habitação, do sonho de Abril à proprietarização

O fascismo português não foi muito diferente de outros fascismos europeus no que respeita ao tratamento das questões da habitação sobretudo no que respeita às formas de exclusão a partir do acesso à casa. A 24 de Abril de 1974, as grandes cidades, onde se concentrou a maior parte do trabalho a partir do pós-guerra, estavam cercadas por milhares de construções de carácter informal e precário que, à época, eram denominadas como “bairros de barracas” ou “bairros de lata”. Estimava-se que faltavam 500 mil casas.

Com o 25 de Abril o problema deixa de estar amordaçado. A 29 de Abril iniciam-se as ocupações do Bairro Camarário de Monsanto e da Boavista em Lisboa, a 1 de Maio dá-se a ocupação do Bairro Camarário de São João de Deus no Porto, a 2 de Maio há ocupações no Casalinho da Ajuda (Lisboa), a 10 de Maio há ocupações em Chelas e Maderna (Lisboa) tudo antes da tomada de posse do I Governo Provisório (16 de Maio)[1]. Logo em Junho, o recém nomeado Secretário de Estado da Habitação e Urbanismo Nuno Portas emite um despacho com várias acções prioritárias entre as quais a constituição de um Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL) “que permita o seu imediato envolvimento em auto-soluções com apoio estatal em terreno, infra-estrutura, técnica e financiamento”. A 6 de Agosto, 103 dias após a Revolução, é publicado em Diário do Governo o despacho de criação do SAAL um programa que, ainda hoje, é uma referência mundial do ponto de vista do que foi o envolvimento das populações, técnicos e Estado na produção de habitação pública e cooperativa. Apesar da intensidade com que foi vivido e a qualidade dos resultados obtidos em pouco tempo, a reorientação política decorrente do golpe de 25 de Novembro de 1975, levou a que fosse extinto a 27 de Outubro de 1976.

Em 1983, quando Portugal estava sob a segunda intervenção do FMI, o IX Governo Constitucional (conhecido como o governo do Bloco Central) criou o crédito bonificado com o qual se lançou a lógica de proprietarização para o acesso à habitação em Portugal, com um modelo muito semelhante ao que Pinochet implementou no Chile na década de 70. Com a entrada na CEE e os sucessivos governos de Cavaco Silva, este processo é acelerado fazendo com que o recurso ao crédito à habitação passe a ser uma política pública quase hegemónica no provimento de habitação para a maioria das pessoas, a partir do endividamento das famílias. De acordo com o documento produzido pelo IHRU em 2015, “25 anos de esforço do Orçamento do Estado com a habitação”[2], entre 1987 e 2011 o país gastou 7.046.685.145,77€ a fundo perdido (73,3% dos 9,6 mil milhões de euros gastos em habitação) em bonificações de juros no crédito à habitação, ao passo que apenas investiu 1.353.426.012,54€ (14,1%) em programas de realojamento, 193.944.373,62€ (2,0%) em programas de promoção directa ou 13.868.736,35 € (0,1%) em Contratos de Desenvolvimento de Habitação.

É comum dizer-se que Portugal andou muitos anos sem políticas públicas de habitação, no entanto, é relativamente claro que houve uma política pública de habitação que estimulou e financiou o endividamento das famílias e vendeu parte significativa do património público edificado reduzindo-o aos inglórios 2% de todo o universo construído. Mais, muito deste património público está disperso e em edificados ou bairros de propriedade mista. O IHRU, instituto público da habitação e reabilitação urbana, gere propriedades em 242 bairros e 1.900 edifícios plurifamiliares, no entanto, é pleno proprietário de uma ínfima parte depois de anos de vendas e transmissões desse património aos seus habitantes, mais uma vez, a partir do endividamento das respectivas famílias.

O processo de estímulo à proprietarização levou a que no final de 2022 tivéssemos cerca de 1,28 milhões de famílias com crédito à habitação, um mercado de arrendamento muito fragilizado pelas diferentes alterações legislativas que tenderam a precarizar o vínculo contratual em prol do senhorio e, os famigerados, 2% de habitação pública. O aumento das taxas de juro e a previsão da sua manutenção a níveis muito altos, a particular preponderância em Portugal de taxas de juro variável e o brutal peso que o custo da casa tem nos orçamentos familiares, parece estar para espoletar uma nova vaga de empobrecimento para a maioria das pessoas que vive em Portugal.

Prossigamos com a análise dos dados mais recentes.

Somando os valores identificados nas Estratégias Locais de Habitação aprovadas, admite-se que haja mais de 80 mil famílias a viver em condições indignas e, assumindo os valores constantes na Estratégia Nacional de Combate à Pobreza Energética, 660-680 mil famílias vivem em situação de pobreza energética severa. Por outro lado, o Censos de 2021 identificou 723 mil casas vagas, o que corresponde a 12% do total das casas do país. No entanto, no município de Lisboa as 48 mil casas vagas correspondem a 15% da totalidade das casas. Sendo certo que o conceito de casa vaga é suficientemente lato para contemplar casas que estão em transferência de titularidade, para arrendamento ou venda, ou que aguardam ser habitadas a curto prazo, o volume de casas vagas é suficientemente significativo para que se deva considerar para respostas habitacionais uma percentagem destas casas que são um mero produto mercantilizado à espera da valorização do ativo. Em Lisboa isso parece ser bastante claro pela concentração de casas vagas, expectantes, em freguesias do centro da cidade onde há mais procura: Arroios (3.890), Misericórdia (2.869), Penha de França (2.867) ou Estrela (2.564).

Entre 1974 e 2024, a situação da habitação alterou-se significativamente mas, passados 50 anos, percebe-se bem o que não conseguimos fazer pelo direito à habitação conquistado em 25/4 e consagrado, de uma forma límpida, na Constituição de 76. O problema é complexo e não tem uma resposta única. Uma boa resposta dependerá da articulação de várias respostas cirúrgicas mas que operem no mesmo sentido.

Sendo certo que o Estado deverá voltar a ter uma carteira mais significativa de imóveis de habitação pública, não deverá cair no absurdo ambiental de aumentar as áreas urbanas/edificadas a partir de construção nova. Sendo certo que muitas pessoas investiram as suas poupanças em imóveis para arrendar e que o Estado permitiu que o arrendamento de propriedades pudesse ser uma forma de prestação de serviços, deverá ser criado um sistema de tetos de renda em quem os senhorios que demonstrem ficar em carência financeira possam ser apoiados. Sendo certo que importa reconstruir um mercado de produção privada sem fins lucrativos e cooperativo, a propriedade dos solos e edificado deve manter-se colectiva e/ou pública sem ceder à tentação da individualização/proprietarização. Sendo certo que há casas vagas que importa mobilizar para a sua função social de habitação, esse processo deve começar a ser feito de forma criteriosa garantindo que se concentra em quem detém grandes carteiras de imóveis[3].

A disputa política e social em torno do direito à habitação parece um dos temas mais decisivos para os próximos 50 anos. Poder-nos-á ajudar a redescobrir um caminho para uma sociedade mais justa em que a maioria das pessoas viva mais e melhor mas também pode ser o tema que incendei e retome todos os medos e frustrações que ajudaram a perpetuar o regime anterior ao 25 de Abril.

Não me parece impossível que, se não começarmos a construir um caminho firme para a resolução do problema da habitação, assistiremos ao progressivo desmantelamento do sistema democrático tal como o conhecemos e tal como nasceu no 25 de Abril.

Notas:
[1] Conforme informação constante no “Livro Branco do SAAL 1974-1976”
[2] "25 anos de esforço do Orçamento de Estado com a Habitação | 1987-2011" (Março 2015)
[3] Veja-se o caso de Berlim em que se discute a municipalização das casas de investidores que tenham mais de 3.000 fogos