TESTEMUNHOS DE ABRIL – “Conjunções de futuro”

Lembro-me, de forma muito vívida, do alvorecer do dia 25 de Abril de 1974.

A voz embargada da minha mãe — “será que vão conseguir?” — em resposta ao tio Artur que telefonou estava eu ainda semi-adormecida, marcou o início de um dia que só viria a compreender quase uma semana depois. Já não fui à escola e passei o dia a ver pela televisão a revolução a desenrolar-se.

Na verdade, o meu 25 de Abril foi no primeiro 1.º de Maio. A família reuniu-se em casa da tia Guida que morava na Av. Rio de Janeiro, mesmo em frente ao estádio da FNAT (hoje 1.º de Maio) e, como era normal naqueles tempos, pude vir sozinha para a rua, com indicações expressas de não me afastar muito. Empoleirada no portão do estádio, sem familiares por perto, assisti, perplexa, a um acontecimento em tudo extraordinário.

Para além da estupefacção de ver tanta gente junta, a visão de uma senhora da idade da minha avó a gritar a plenos pulmões palavras de ordem deixou-me perplexa. Nunca tinha visto ninguém levantar a voz e os braços, muito menos uma mulher, com tanta alegria e pujança, e não imaginava sequer que tal fosse possível. Essa imagem e a cor dela ficaram gravadas na minha memória até hoje. Com o desenrolar da manifestação, acabaria por ver muitas mais mulheres de todas as idades levantando a voz e fazendo gestos amplos e aquilo que parecia extraordinário em breve se tornaria habitual.

A profusão de cores que irrompeu no país, os vermelhos vibrantes, a amplitude dos gestos das pessoas, a liberdade dos corpos a movimentarem-se, as palavras de ordem e os cânticos uníssonos, a comunhão de seres humanos que durante quase cinco décadas estiveram impedidos de se reunir no espaço público, explodiria num momento que mudaria o país de um dia para o outro. As pessoas tornaram-se empáticas e sorridentes, havia um espírito de camaradagem geral, podíamos cantar livremente em qualquer espaço, adultos e crianças tratavam-se por tu. Na escola tínhamos reuniões, discutíamos o país e eu imaginava-me a fazer parte do Movimento das Forças Armadas, fardada a deslocar-me de jipe com os militares de Abril.

Entre os 12 e os 13 anos, já no âmbito da UEC, fui trabalhar para o campo em jornadas de apanha da azeitona, de milho, de tomate, de trabalho nas salinas.

Tinha 14 anos quando participei no movimento Alfa, naquele que foi o meu contacto mais intenso com uma realidade que desconhecia. Um curso de formação na Faculdade de Letras introduziu-me aos métodos de Paulo Freire, após o qual parti para o Alentejo profundo.

Foi lá que percebi em que condições viviam os trabalhadores e trabalhadoras agrícolas; foi lá que, ao longo de um mês, fui ouvindo relatos em primeira mão sobre as duras condições de vida e a feroz repressão exercida sobre os corpos e as mentes dos camponeses e camponesas.

Vivi numa casa sem água, sem luz, sem casa de banho, onde as galinhas entravam; escutei histórias de partos violentos e de mortes às mãos da GNR — não conhecidas, não faladas, hoje totalmente esquecidas, como a de um rapaz que foi morto por comer algumas bolotas de um terreno pertencente a um latifundiário.

Marcou-me profundamente esta experiência, assim como me marcou a imensa dignidade das pessoas. Foram anos formativos e fundadores daquilo que sou hoje, do que faço e da forma como procuro actuar no mundo. Vivi num mundo de intensa solidariedade e esperança, onde tentávamos dar o nosso melhor para haver mais bondade e equidade entre as pessoas. Um mundo que aos poucos se foi esbatendo e cuja mudança, para mim, se efectivou quando li a notícia, volvidos quase 30 anos da revolução, de que as pessoas com quem convivi no Verão de 1976 tinham perdido o acesso directo ao rio Guadiana. O rio, tão central na vida destas pessoas, que nele se banhavam e lavavam roupa antes de terem acesso a água canalizada, deixava de fazer parte das suas vidas devido à interdição do acesso ao caminho comunitário pelo dono das terras, terras essas que voltaram a servir de coutada de caça, como o eram anteriormente ao 25 de Abril.

Estava, nessa altura, a realizar o filme Natureza Morta (ano de produção 2005) maioritariamente baseado em imagens de arquivo dos tempos da ditadura e senti que se estava a operar uma estranha inversão. Eu, que sempre tinha vivido sob o signo do 25 de Abril, vendo a ditadura como algo do passado, via agora claramente o que dela subsistia. O 25 de Abril deixava de ser um continuum no tempo para, por momentos, passar a ser um ponto no passado, e a ditadura expandia-se para o presente.

Hoje, quando atingimos o marco histórico de 50 anos de democracia, essas permanências, e o recrudescimento de facetas que julgávamos quase extintas, agudizam-se, em sintonia com a conjuntura internacional. A democracia permite que toda a gente tenha voz, inclusivamente as pessoas que a querem destruir. Esse é o paradoxo dos nossos tempos e, por isso, fazer viver o 25 de Abril não deixando que seja apenas uma data que se comemora, é imperioso. É preciso levantar os braços, não permitir que os gestos sejam tolhidos, e combater para que se mantenham abertas possibilidades de futuro diferentes das que se parecem anunciar.