VOZES AO ALTO, UNIDOS COMO OS DEDOS DA MÃO!

O começo

Não bastou aos humanos, para que humanos se fizessem, erguerem-se nos membros posteriores e usarem a inteligência que lhes guiasse a mão. Em algum momento dessa humanidade inicial lhes terá surgido a entoação, o traço, a dramatização, num tempo comunitário de repartição de tarefas e benefício comum. Porém, num longo processo de transformação, que aqui se abordará em dois segundos, os ainda há pouco semelhantes (des)organizaram-se em classes, apropriando-se, uns poucos, do produto do trabalho dos demais.

Compreender-se-á que tão grande desacerto acendesse, nos desvalidos, um sentimento de revolta, que foi crescendo até se tornar consciência. E luta, depois. Karl Marx e Friedrich Engels, estudiosos da condição humana, afirmariam no Manifesto que “a história de toda a sociedade, até aqui, é a história de lutas de classes. Livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, burguês de corporação e oficial, em suma, opressores e oprimidos, estiveram em constante oposição uns aos outros, travaram uma luta ininterrupta, ora oculta ora aberta, uma luta que, de cada vez, acabou por uma reconfiguração revolucionária de toda a sociedade ou pelo declínio comum das classes em luta”. De músicas e versos o Manifesto não fala. Ainda assim, sabemos que, até onde a memória consegue recuar, nas vidas dos explorados sempre se protestou cantando, desde a Comuna de Paris aos dias de Abril em Portugal.

A música popular terá sido o primeiro berço da canção de protesto. No cantar “Comem-nos vivos em vida / mortos a terra nos come. / Como dá tanta comida / quem cá passou tanta fome?” ou em “Ó minha mãe dos trabalhos / para quem trabalho eu? / Trabalho, mato o meu corpo, / não tenho nada de meu” não mora, ainda, a disposição revolucionária, mas percebe-se a consciência de classe que é o seu primeiro passo.

Fernando Lopes-Graça, José Afonso e Adriano Correia de Oliveira, iniciadores da moderna canção de protesto portuguesa (também chamada canção política ou de intervenção), iriam colher a matéria dos seus cantares à música da tradição oral. Em Marchas, Danças e Canções, que a Seara Nova publicou em 1946, Lopes-Graça assinala que “se frequentes sugestões da nossa poética e da nossa música populares afloram nestas produções, é isso devido ao facto de, naturalmente, naquelas nos inspirarmos, tanto por integração psicológica como por uma questão de método, que nos manda, se queremos ser práticos e atingir eficientemente o nosso objectivo, ir ao encontro das disposições naturais e empregar, tanto quanto possível, a linguagem, o estilo, daqueles a quem pretendemos dirigir-nos”.

O resgate dos valores da música da tradição oral opunha-se, na prática, à política cultural do fascismo português, dirigida pelo SPN de António Ferro (mais tarde SNI), recusando os produtos do processo de folclorização, misturados com o ruído do chamado “nacional-cançonetismo”. A música de protesto ampliava audiência nas dezenas de colectividades de cultura e recreio e nos demais lugares de conspiração (censurada e vigiada). Em 29 de Março de 1974, o protesto musical subiu ao palco no I Encontro da Canção Portuguesa, que reuniu, perante cinco mil pessoas, os mais sonantes nomes da música e da poesia oposicionista. O Encontro encerrou com Grândola, Vila Morena, a canção com que Portugal se viria a reiniciar, dali a menos de um mês.

O povo é quem mais ordena

Revolução consumada, depois de o povo de Lisboa ter desobedecido à ordem do MFA de “recolher a sua casa, na qual se [deveria] conservar com a máxima calma”, virou-se na Rádio a página das canções. O povo conheceu naqueles dias vozes que nunca tinha escutado, melodias e palavras que nem sabia existirem. Na vida, logo nos primeiros tempos de Liberdade eliminou-se a guerra de “Pedro Soldado”, extinguiu-se a barbárie colonial de “A Bola”, libertaram-se os presos políticos de “Por Trás Daquela Janela” e de “Eh Companheiro”, os camponeses de “Rosa de Sangue” e de “Cantar Alentejano” ocuparam o latifúndio, a “Pedra Filosofal” ganhava horizonte no Programa do MFA.

Liberdade, Aliança Povo-MFA, Campanhas de Dinamização Cultural e Acção Cívica, nacionalizações, descolonização, controlo operário, Reforma Agrária, Serviço Cívico Estudantil, legalização e criação de partidos políticos e sindicatos são algumas das palavras-chave do impulso revolucionário. Ignorou-se, porém, que a revolução não “pode simplesmente tomar posse da máquina de Estado [que encontra] montada e pô-la em movimento para os seus objectivos próprios[1]. Com efeito, ainda que a máquina do Estado fascista tenha fraquejado, depressa se recompôs sob a forma de rede bombista, desencadeando o Verão Quente e mobilizando os protagonistas que levariam Portugal ao “Novembro que Abril não merecia[2]. Era o tempo de cantar (de afirmar) “Ah! Só há liberdade a sério quando houver / a paz, o pão, habitação / saúde, educação”[3].

Cinquenta anos sem exame prévio

Nos últimos 50 anos a classe exploradora sofisticou-se e reservou presença no poder político. A destruição do aparelho produtivo nacional e o agravamento da dependência externa às mãos da “Europa Connosco” abriu caminho a políticas neoliberais, aplicadas a todas as esferas da economia (as do pão, habitação, saúde e educação). Naturalizou-se a precariedade laboral, a redução dos direitos sindicais, reforçou-se o poder do empresariado rico e da banca privada, a inevitabilidade da “austeridade”. O eleitorado maioritário elege, desde há muito, programas de governação neoliberal, mas a rua permanece um lugar de reivindicação de direitos e de contestação de políticas. Foi o tempo de escutar A Luta Vai Ser Dura, Companheiro, do Grupo Outubro; Para Além Das Cordilheiras, de Fausto; FMI, de José Mário Branco; Os Fantoches do Kissinger, de José Afonso; As Balas, de Adriano Correia de Oliveira. Mesmo assim, quando a dimensão da agressão justifica o protesto colectivo, ainda é Grândola, Vila Morena a canção que todos sabem cantar.

Hoje

O movimento de canção de protesto, que se revelou no I Encontro de 1974 e nas sessões de Canto Livre que a Revolução possibilitou, não existe nos nossos dias. Mesmo que aquele cancioneiro influencie – em nomes e temáticas – o “ouvido musical” contestatário, nos espaços de divulgação musical surgem agora fenómenos de afirmação de diferenças que não são sempre as de classe – persistente traço comum e essencial das desigualdades todas. Correntes chamadas identitárias criaram espaço de reivindicação de direitos e reconhecimento social, introduzindo temáticas de afirmação, como no caso de Fado Bicha, em que o fado é, simultaneamente, suporte estético e terreiro de contradição. Pelo seu lado, as populações migrantes reagem à pressão discriminatória, cultural e laboral, acrescentando ao universo da canção de protesto temáticas particulares, sonoridades que podem ser morna, rap, hip hop e idiomas como o crioulo. No caso particular do rap e do hip hop, a revelação do poder de penetração da cultura norte-americana, à escala planetária, não impediu que a plasticidade do género musical fosse palco de afirmação da mensagem transformadora de Sam The Kid ou Valete, a que se seguiriam, entre mais, Capicua e Dino D’Santiago.

À margem destas sonoridades, a música da tradição oral portuguesa, essencial no surgimento da canção de protesto inicial, sobe hoje ao palco nos cantares (e tocares) da Brigada Victor Jara, Cramol, Gaiteiros de Lisboa, Segue-me À Capela, Sopa de Pedra, Maria Monda, Retimbrar, Criatura, entre muitos. Trata-se, uma vez mais, de ser proposta musical alternativa à nova “Política do Espírito” da chamada globalização, produzida pelas indústrias do entretenimento.

Não restam dúvidas de que a canção de protesto, política, de intervenção, de inconformismo ou o que mais lhe queiram chamar, existe no espaço português, sobe ao palco e tem coro. Há canções de protesto na pontuação de movimentos como Vida Justa ou Casa Para Viver, em comícios partidários, nas acções do movimento sindical, nas iniciativas pela paz. No Portugal zangado com as governações de décadas, vive um canto que se percebe interventivo ou, pelo menos, inconformado.

Luís Varatojo, da Luta Livre, afirma “não [ter] problema nenhum com isso do panfletário. Chegámos a um ponto em que temos mesmo de falar directamente sobre as coisas. No fundo, como dizia a Nina Simone, os artistas devem falar daquilo que os rodeia, devem ser um espelho da sociedade, devem ser isso senão não são nada, dizia ela[4]. Cátia Mazzari de Oliveira (A Garota Não) define-se de outro modo: “a minha música é mais de inconformismo do que de intervenção[5]. O lugar em que a artista se percebe é aquele em que “há gente muito adormecida, mas também há muita gente consciente, com vontade de que a música seja muito mais do que a letra que fala de mais um desamor, com as mesmas palavras que foram utilizadas em 30 mil outras canções[6]. Ana Fernandes (Capicua) também se inquieta com o apagamento da indignação: “estamos num ponto em que temos uma Civilização que, sendo suicida, é incapaz de pensar em alternativas porque nos venderam que esta era a única opção[7]. “Que Força É Essa, Amiga?” é, talvez por isso, a interrogação que atira à consciência colectiva (sobre uma canção de Sérgio Godinho).

Ouvidas as vozes dos tantos autores da canção de protesto mais recente, percebe-se a ausência (em quase-lamento) do movimento aglutinador que pudesse ser semelhante àquele que, em Março de 1974, subiu ao palco do Coliseu. Sente-se, no ambiente, a encruzilhada que o cantautor espanhol Luís Pastor tão bem caracterizou no seu poema “Que Fue De Los Cantautores[8]:

Que é feito dos cantautores?

Perguntam com ar estranho em cada quatro ou cinco anos despistados jornalistas

Que nos perderam a pista e nos enterraram a voz.

 

Alguns [cantautores] são deputados, presidentes, conselheiros, médicos e professores

Ou exercem assessoria na sociedade de autores.

Outros estão e não cantam, outros cantam e não estão.

Há os que se retiraram, alguns há que já morreram.

E outros estão por nascer

Jovens que são, agora, também universitários

Operários, miúdos de bairro, que percorrem a cidade

De CD debaixo do braço, a guitarra a tiracolo,

Com dez euros na carteira, cantando de bar em bar.

Ou esses RAPpers poetas, que denunciam em seus panfletos

Outra realidade social.

 

Das mulheres, nem se sabe.

Sobretudo se falamos das primeiras gloriosas

Que tiveram os ovários e a coragem necessária

Para subir a um palco daquela Espanha ‘camposa’.

 

Que é feito dos cantautores?

Aqui me têm, senhores

Como em meus tempos melhores, dando o canto que é o meu.

E se o Inverno for frio, ainda tenho a Primavera,

Um Abril para a espera e uma Grândola no coração”.

Notas:
[1] Marx/Engels, Manifesto do Partido Comunista
[2] Avelãs Nunes, António em “O Novembro que Abril não merecia”. Edição ACR, Lisboa
[3] Godinho, Sérgio. Liberdade, no álbum À Queima Roupa (1974)
[4] Entrevista de Luís Varatojo a altmont.pt
[5] Entrevista de A Garota Não a setentaequatro.pt
[6] Idem
[7] Entrevista de Capicua a “Abril conversas mil”
[8] YouTube https://youtu.be/fEUAUYPoJY4?si=OXDwuoCvhqob39qP (excerto)

Manuel Rocha

(1962)
Músico e professor no Conservatório de Música de Coimbra

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