A agricultura em Portugal, questões da atualidade e do futuro
A degradação da qualidade dos ecossistemas e dos recursos naturais, suportes da produção de alimentos, com origem no modelo agrícola industrial que se foi afirmando a partir da década de 1950, denuncia a insustentabilidade ambiental do mesmo. A legitimar os diferentes apoios à difusão e adoção daquele modelo, em distintas geografias incluindo as do Sul Global e exemplarmente operacionalizado e apoiado pela Política Agrícola Comum (PAC) desde 1957, estava o objetivo da erradicação da fome no Mundo. Para tal, impunha-se aumentar a produtividade agrícola, a qual foi conseguida com base nos processos de intensificação, especialização e concentração produtiva.
É certo que o aumento da produtividade agrícola, que entre 1950 e 2000 cresceu 2,3% ao ano à escala mundial triplicando a produção em relação aos anos anteriores (Federico, 2005), permitiu melhorar a ingestão calórica média com ganhos correspondentes na redução da fome. Contudo, para além da insuficiência destes ganhos, o progressivo aumento das desigualdades sociais tem vindo, cada vez mais, a desviar o Mundo de alcançar o objetivo de acabar com a fome, a insegurança alimentar e a subnutrição.
Embora a narrativa dominante continue a fazer-nos crer, como de seguida se evidencia, que as causas daquele desvio e, consequentemente, da não materialização da soberania alimentar[1] e da segurança alimentar global[2], radicam na deficiente oferta de alimentos, (Sem, 1981), a par de outros autores, há muito demonstrou que a origem das mesmas, antes, advêm das relações de poder que enformam o modelo de desenvolvimento socioeconómico dominante, recetáculo do sistema agrícola e alimentar industrial.
Com efeito, para o reforço daquelas relações de poder e o consequente acentuar das desigualdades no acesso à alimentação em muito contribuiu o sistema alimentar industrial. Caracterizado pelo processamento industrial dos alimentos e pela concentração da sua distribuição num reduzido número de grandes empresas, individualmente detentoras de uma crescente panóplia de marcas, difunde-se progressivamente, à escala global, a partir de finais da década de 1970.
A forte interdependência entre este sistema alimentar industrial/comercial e o modelo agrícola extractivista dos recursos naturais que lhe serve de suporte, aliada à crescente especialização e concentração produtiva levou à redução significativa da agricultura familiar autónoma e ao consolidar dos processos de desterritorialização, ou deslocalização, dos sistemas alimentares ao ponto de praticamente ninguém se poder alimentar sem ter de recorrer aos mercados globais.
Para além da insustentabilidade ambiental e socioeconómica do sistema agroalimentar industrial global há a acrescentar a sua enorme instabilidade e vulnerabilidade. A confirmar o referido estão as três disrupções da cadeia alimentar global registadas nos últimos 15 anos (em 2008 a crise financeira global combinada com o aumento dos preços dos combustíveis e uso crescente de culturas alimentares para biocombustíveis; em 2020 a COVID-19 e desde 2022 as perturbações das exportações de cereais na região do Mar Negro na sequência da agressão russa à Ucrânia), e o consequente aumento dos preços dos alimentos que impedem o seu acesso a centenas de milhões de pessoas localizadas, sobretudo, no Sul global, mas não só.
Face às irrefutáveis evidências sobre a incapacidade do sistema agroalimentar industrial global em dar resposta aos problemas antes descritos, duas propostas distintas vêm-se progressivamente afirmando, sobretudo a partir da viragem do milénio.
Uma delas elegeu por paradigma a denominada Intensificação Sustentável (IS): aumentar a produção agrícola sem (pretensamente) aumentar os impactos ambientais negativos. Esta é a via que domina, à escala internacional, as agendas académicas e políticas e, também, o sector privado. Com base na adoção de novas tecnologias (agricultura de precisão, biotecnologia, sistemas inteligentes, que integram deteção remota, geoposicionamento, big data, aprendizagem automática, drones e robótica, entre outras), aquele paradigma garante assegurar a crescente procura de alimentos tendo em conta o (suposto) aumento da população mundial, prevista para nove/dez mil milhões de pessoas em 2050, acautelando os impactes ambientais negativos. “É preciso que algo mude para que tudo fique na mesma”, a fórmula fixada por Tomasi di Lampedusa, sintetiza, no nosso entender, o grande senão desta proposta, uma vez que a IS deixa intacta a estrutura e lógica de funcionamento do sistema agrícola e alimentar industrial global. Com efeito, dadas as baixas consequências das opções tecnológicas a IS para além de não resolver, mas, tão-só, atenuar os impactes negativos da agricultura intensiva tradicional, nomeadamente nos recursos solo e água, também ignora quer a biodiversidade, já que a monocultura e as unidades produtivas de grandes dimensões físicas continuam a ser o padrão dominante, quer a equidade social na adoção daquelas opções, uma vez que beneficiam de economias de escala. Mantém ainda intacta quer a concentração empresarial ao longo da cadeia de valor onde um (muito) pequeno número de grandes empresas controla o acesso aos fertilizantes químicos e fitofármacos, sementes/plantas, e à transformação, comercialização, distribuição e ao retalho alimentar, quer a financeirização da agricultura e o modelo laboral baseado no recrutamento dos novos trabalhadores da globalização e circuitos migratórios que a suporta, entre outros aspetos.
A outra proposta, aqui entendida como uma questão (relevante) do futuro da Agricultura em Portugal, recordando o título deste texto, assenta no reconhecimento da necessidade urgente de ser criado um novo modelo de governança alimentar capaz de assegurar o acesso a uma alimentação saudável, à segurança e à soberania alimentar e à valorização, económica e social, de um universo de explorações agrícolas, designado por Agricultura Familiar que, embora arredado dos mercados globais, porque incapaz de aí competir, (ainda) continua a adotar práticas agrícolas ajustadas às características dos ecossistemas dos territórios rurais que lhe servem de suporte e está aberto a novos conhecimentos e inovações tecnológicas que não ponham em causa a sua continuidade.
Embora em termos políticos se reconheça que, em Portugal, “cerca de 242,5 mil explorações agrícolas classificam-se como familiares, o que representa 94 % do total das explorações, 54% da Superfície Agrícola Utilizada (SAU) e mais de 80% do trabalho total agrícola” (Decreto-Lei n.º 64/2018, de 7 de agosto), paradoxalmente, em 2021, dos cerca de 40% dos agricultores portugueses excluídos da distribuição das ajudas diretas da PAC sobressaíam os pequenos produtores, cuja taxa de exclusão registou o valor de 60% e de 15% nas explorações com menos de 2 hectares e mais de 5 hectares, respetivamente (Viegas et al., 2023). Contudo, é este tipo de agricultura que, ao continuar a adotar e poder introduzir novas práticas agroecológicas (rotações, consociações, …), assegura muitos serviços dos ecossistemas, garante a (cada vez mais reduzida) presença humana na maioria dos territórios rurais, para além de amortecer o risco da pobreza e exclusão social como é o caso da “agricultura de idosos” e da “agricultura a tempo parcial”.
Este novo modelo de governança alimentar inscreve-se no processo de Transição Alimentar e materializa-se nos Sistemas Alimentares Territorializados (SAT).
Enquanto impulsionadores da sustentabilidade e da segurança alimentar com origem na sociedade e em processos bottom-up, os SAT exigem a criação de novas dinâmicas que resultam da conjugação de esforços de uma multiplicidade de atores locais e regionais, incluindo o sector público e privado, associações de produtores agrícolas e de consumidores, e restantes membros da sociedade civil, capacitando deste modo a autonomia e resiliência dos territórios rurais.
A sua implementação exige, ainda, a articulação de instrumentos de políticas diversas (agrícola, saúde, educação, ambiental, ordenamento do território, desenvolvimento rural, …), o que permite potenciar sinergias e reduzir ineficiências.
Objeto de investigação académica, de ação política (como sucede em França, onde os SAT são apoiados por políticas públicas nacionais) e cívica, os SAT têm por suporte quatro pilares: a Agricultura Familiar, a Agroecologia, os Circuitos Curtos Agroalimentares e os Sistemas Participativos de Garantia (Rodrigo, 2024).
Em suma, enquanto a IS pretende dar resposta, numa perspetiva top-down, à questão “como alimentar o mundo em 2050”, os SAT têm por paradigma social “como podemos ajudar o mundo a alimentar-se a si próprio”.
Enquanto via relevante a ser adotada por Portugal, os SAT não destoam de recomendações recentes da Comissão Europeia expressas na “Estratégia do Prado ao Prato” e na “Estratégia da UE para a Biodiversidade 2030”, que integram o “Pacto Ecológico Europeu”. De sublinhar também que os propósitos a alcançar com a implementação dos SAT encontram eco no conteúdo da “Agenda de Inovação para a Agricultura 2020-2030” (Resolução do Conselho de Ministros n.º 86/2020, de 10 de setembro).
Notas: [1] Soberania alimentar é o direito dos povos a aceder a alimentos saudáveis e culturalmente adequados produzidos através de métodos ecológicos e sustentáveis, e a definir os seus próprios sistemas alimentares e agrícolas (Nyéléni, 2007), Declaration of Nyéléni, (https://nyeleni.org/spip.php?article290). [2] Existe segurança alimentar global quando “todas as pessoas, em todos os momentos, têm acesso físico e económico a alimentos em quantidade suficiente, seguros e nutritivos que satisfaçam as suas necessidades dietéticas e preferências alimentares e lhes permitam uma vida ativa e saudável” (FAO, 1996).
Referências bibliográficas: - Diário da República n.º 151/2018, Série I de 2018-08-07. - FAO (1996), Rome Declaration on World Food Security, World Food Summit, Rome, 13-17. - Federico, Giovanni (2005), Feeding the World: An Economic History of Agriculture, 1800-2000, Princeton NJ, Princeton University Press, 416 p. - Rodrigo, Isabel (2024), “Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 2 — ‘Erradicar a Fome’”, Agenda Estratégica para o Futuro, Ferrão, João (Coord.), Fundação Eugénio de Almeida, 30-38. - Sen, Amartya (1981), Poverty and Famines: An Essay in Entitlement and Deprivation, Oxford, Clarendon Press, 257 p. - Viegas, Miguel; Wolf, Jan e Cordovil, Francisco (2023), “Assessment of inequality in the Common Agricultural Policy in Portugal”, Agricultural and Food Economics, 11: 13, 15 p.
Nº 1767 - Verão 2024
