JORNALISMO E DEMOCRACIA: A NOVA CENSURA NÃO PRECISA DE LÁPIS, MAS MATA COMO ANTES
Acabo de ler que Julian Assange foi libertado. Mais de cinco anos depois de ser metido e mantido, sem culpa formada, na cela minúscula da prisão britânica de Belmarsh, o criador da WikiLeaks teve de usar como recurso de sobrevivência a humilhante aceitação de um acordo com o seu tão distante quanto asfixiante algoz americano. Assumirá doravante a culpa pelo crime que cometeu de publicar a verdade impublicável.
Houve um tempo, curto, é certo, em que a WikiLeaks pareceu ser uma coqueluche dos média. Na verdade, a existência digital de uma base infinita de informação que parecia, então, uma porta escancarada aos segredos dos grandes poderes, assemelhava-se às promessas de radiosos amanhãs que vinham sendo proclamadas pelos que profetizavam a salvação da democracia pelo admirável mundo das novas tecnologias. Filósofos da técnica, como o canadiano Pierre Lévy, em moda à época, anunciaram-nos, mesmo, o advento da ciberdemocracia na passagem do milénio. Hoje sabemos que foram raios de sol pouco mais do que fulminantes. Fulminantes na luz rápida que deles exarou, como na treva em que nos instalaram depois. Em que instalaram, antes dos demais, o próprio Julian Assange. De facto, Assange acaba de sair de Belmarsh e eu pergunto-me: o que fez o jornalismo ocidental por ele, ele que tanto fez pelo jornalismo ocidental?
Aquilo que me percorre os pensamentos é pouco abonatório. É quase vomitatório, na verdade, de tão nauseabundo que fica o ar em que se rarefez o interesse dos média ocidentais pela história da infame violação dos direitos humanos a que foi sujeito o homem que denunciou os inomináveis crimes do exército mais poderoso do mundo, nas bombásticas campanhas de instalação global, pela força, da “democracia” e, claro, dos “direitos humanos”. A história de Assange é a história da luta pela liberdade de informar, pelo direito dos povos à verdade, mas quem leu o que dele se disse nos média ocidentais na última década, pode ter ficado a pensar outras, e bem diferentes, coisas. Pode ter ficado a pensar que os segredos que Assange revelou, punham em risco a segurança de países inteiros, esquecendo-se quem assim pensou que a segurança de países inteiros é sempre posta em causa, muito mais, pela mentira e pela manipulação das opiniões públicas, do que pela verdade. Pode ter ficado a pensar que Assange andou mesmo a conspirar contra o sacrossanto império americano, quando está mais do que demonstrado, desde logo nas revelações do próprio Assange, que as bo(mb)as acções que o sacrossanto império americano tem vindo a espalhar pelo mundo distante da América, após a II Guerra Mundial, dispensam até os mais criativos teóricos da conspiração, porque constituem, em si, exemplos acabados do que é conspirar contra a segurança global. Basta lermos o trabalho insuspeito de jornalistas (da classe dos verdadeiros, alguns, infelizmente, já desaparecidos) como Robert Fisk, John Pilger, Robert Parry, Udo Ulfkötte, Seymour Hersh, Chris Hedges, Glenn Greenwald, Vincent Bevins, Diana Johnstone, Aaron Maté, Max Blumenthal, Alan MacLeod e uns tantos outros exemplos de coragem e entrega à causa maior da verdade.
A intolerável sombra a que foi sujeito Julian Assange, metido pelos média na cela de alta segurança da sua irredimível condenação à invisibilidade – da qual apenas saiu no dia em que escrevo estas linhas -, devia fazer-nos questionar tudo o que mitificámos como relação entre o jornalismo e a democracia. Temos vivido, de facto, de acordo com o mito de que no jornalismo palpita o coração da democracia. Assumindo o aforismo como verdade, então, não precisaremos de muito para perceber o quanto um jornalismo perdido em parte incerta é sinal indelével de que o coração democrático está doente, está falho, está fraco. A questão é o quanto a história mal contada de Julian Assange nos assalta como prova inequívoca de que a deriva do jornalismo para um subproduto fajuto, eufemisticamente portador da mesma designação, não está a ser apenas conduzida por forças que lhe são exteriores. O coração da democracia está fraco, pré-comatoso, também, porque a única coisa que se fortaleceu, nas últimas décadas, foi a infame ligação entre as elites e as estruturas delegadas de comando das redacções, enfraquecendo quaisquer esforços que os raros jornalistas ainda portadores de uma ideia de missão de serviço público pudessem fazer para produzir informação honesta, relevante e independente.
Entrei no jornalismo no início dos anos 1990. Observei, então, nesses meus verdes anos, as consequências da normalização das redacções portuguesas. Digo, normalização, porque a situo, com o auxílio do extraordinário livro que o já desaparecido Ribeiro Cardoso nos deixou sobre os média portugueses e o 25 de Novembro de 1975, no momento em que o bloco central se formou de facto, nessa altura, para comandar as redacções – muito antes de emergir como inevitabilidade política empírica ditada pela primeira troika do FMI, em 1983.
Apesar de as assessorias de imprensa serem ainda mercado de trabalho relativamente imberbe, a verdade é que já se sentiam, no início dessa década de 1990, os efeitos da predominância de um jornalismo de agenda feito pelas fontes oficiais, prenunciando o jornalismo de secretária (ou secretariado?) que se lhe seguiu. Os jornalistas de política e de economia começavam a ganhar protagonismo, era o tempo dos fundos estruturais e da instalação de um linguajar tecnocrático que se dizia, para nosso bem, sempre para o nosso bem, neutralizador das ideologias. É certo que alguma palpitação no panorama dos média, com o aparecimento de títulos como o Público ou as televisões privadas, era portadora da já clássica promessa de renovação do pluralismo. Nada de novo debaixo do sol, no entanto.
Devíamos saber ao que vínhamos, os jovens jornalistas desse tempo, se tivéssemos lido como premonição certa o livro Os Novos Cães de Guarda, que o jornalista francês Serge Halimi escreveu, ia a década de 1990 a meio. A tradução para português da obra não necessita, hoje, de mais do que umas simples trocas de nomes para trocarmos logo a realidade francesa de então pelo pobre destino dos nossos média. Tal como na França de há trinta anos, hoje, em Portugal, quem manda nos média são as elites, nacionais e internacionais – hoje, mais estas, na verdade, é notório o servicinho que as elites nacionais fazem aos grandes interesses geopolíticos e geoestratégicos ocidentais, que estão prontas a servir a troco de uns lugares simpaticamente remunerados, nem que para tal tenham de rastejar como capachos. Fazem-no nos média, claro, por delegação de poderes numa meia dúzia de diligentes portadores de carteira profissional de jornalista que se tem vindo a constituir, ao longo do tempo, como um selecto clube de directores por inerência, competentes, certamente, na arte de bem dirigir os meios de propaganda em que transformaram os órgãos de informação. O jornalismo, quando neles acontece, é celebrado como raridade que é. Na verdade, esse jornalismo raro é, hoje, apenas, esporadicamente tolerado, ao jeito da panela de pressão que precisa, de quando em vez, de ser estrategicamente aliviada.
Ao contrário do que sucedia na generalidade das redacções que conheci no início dos anos 1990, o poder, nas redacções actuais, já não pede qualquer licença aos jornalistas. Os conselhos de redacção, órgãos de escrutínio interno, eleitos pelos pares para vigiar criticamente a acção dos directores e das chefias editoriais, estão, em regra, transformados em meros verbos de encher, isto, quando ainda enchem. O normal é não encherem nem preencherem nada.
O poder dos jornalistas é, hoje, um imenso vazio. A fase derradeira da normalização que visou, inicialmente, proscrever as ideologias para as substituir pela desideologia do mercado, não foi mais do que a entronização do poder das elites por delegação no clube selecto dos directores, a que só acedem os que aceitam fazer o jogo das administrações – porque, claramente, não é o jogo do jornalismo que lhes interessa.
É, assim, escusado procurarmos elaborar grandes teorias sobre as crises do jornalismo, porque estas mais não são do que episódios da história da sua captura. Veja-se, hoje, os directores que já rodaram e rodam por vários órgãos de informação portugueses, uma espécie de circulação circular, em que há sempre alguém que é reciclado, como se detivesse um qualquer poder divino a que os jornalistas terráqueos só poderão aceder depois de iniciados na confraria dos conformes. Veja-se como a entronização destes selectos directores é feita pela sua constante transformação em oráculos da verdade, autoritativamente legitimados como comentadores de televisão ao mesmo tempo que dirigem escolhas editoriais nos meios sob seu comando. Veja-se, igualmente, o modo como a memória crítica foi estrategicamente tornada excedentária nas redacções. A substituição do jornalismo pela propaganda assim o exige. Esta só funciona pela desmemória.
E os jornalistas? Não surpreende que passem a vida a dizer-se precários. De facto, a sua condição não é outra, mesmo a daqueles que, devidamente assalariados de acordo com as leis do trabalho, procuram ainda lutar pelo mito da sua independência. Alguns, poucos, dar-se-ão ao luxo de ter chatices. A esmagadora maioria, no entanto, não está para aí virada. São muitos os que definem esse estado de coisas no jornalismo a partir da ideia de que se instalou um regime de autocensura generalizada, que bloqueia a liberdade, o risco e o assombro. Pelos motivos que aqui tento expor, penso que se trata, contudo, de uma censura cuja natureza é mais grave, porque não vincula apenas as decisões individuais dos jornalistas, que podem ser sempre individualmente questionadas e individualmente revolvidas. Num capítulo que escrevi há poucos meses para o livro Activismos, Redes e Práticas Comunicacionais, organizado por Isabel Babo, argumentava que, nas redacções contemporâneas, o que se instalou, de facto, foi uma censura endógena, um sistema pernicioso, de tipo cancerígeno, que se metastiza sobre os jornalistas e a sua liberdade, um sistema intrínseco à instituição jornalística que não precisa de ser dito, apenas pressentido, sendo, desse modo, terrivelmente eficaz, ou como o recentemente desaparecido John Pilger escreveu na introdução da sua obra Tell Me No Lies, “uma censura por omissão, que é a sua mais virulenta forma”.
Quase todos os jornalistas sabiam o que Julian Assange teve de passar nos mais de cinco anos da sua infame reclusão, como preso político das chamadas democracias. Não me parecem restar grandes dúvidas de que foi a censura endógena que os calou, tornando invisível a luta que Assange travou pela verdade.
E por nós.
Nº 1767 - Verão 2024
