Na América Latina: onde a esquerda medra, a extrema-direita radicaliza-se

A maior reserva de lítio do mundo está na Bolívia e a corrida a esse mineral essencial à transição energética, nomeadamente, no fabrico de baterias, coloca o país no centro de disputas geopolíticas e entre poderosas multinacionais. Não por acaso, foi em referência à Bolívia que, em 2020, o bilionário Elon Musk, dono dos carros eléctricos da Tesla, disse na rede social X (ex-Twitter) que “daria um golpe de Estado em quem quiser”, pondo assim a nu os riscos que a América Latina constantemente atravessa, quando maiorias democraticamente eleitas não correspondem aos interesses dos que têm as suas riquezas e território na mira do saque e da exploração.

Como estado plurinacional, progressista e soberano sobre os seus recursos, a Bolívia, também rica em petróleo e gás natural, sofreu dois golpes nos últimos cinco anos. O de 2019 afastou o líder do Movimiento al Socialismo (MAS), Evo Morales, acabado de vencer as presidenciais para um terceiro mandato, acusando-o de fraude eleitoral num processo de lawfare (guerra jurídica), que se tornou modus operandi de inúmeras golpadas na última década na América Latina.

Após 14 anos na liderança de um processo que colocou pela primeira vez à frente do país um presidente indígena, oriundo das lutas sociais e sindicais dos produtores de coca, a Bolívia nacionalizou as suas fontes de hidrocarbonetos (detidas pelas multinacionais Enron, Shell e Repsol), privatizadas nos anos 90 por imposição do Banco Mundial (BM) e do Fundo Monetário Internacional (FMI).

A retenção de capitais soberanos permitiu a Morales desenhar a reconstrução social e económica do país que (quase) eliminou o analfabetismo, reduziu a mortalidade infantil, aumentou a esperança média de vida, reduziu o índice de pobreza, e garantiu o acesso a electricidade e saneamento básico à maioria da população (dados do Banco Mundial).

Não surpreende que Morales refira na sua autobiografia que esse foi o “ciclo de maior prosperidade económica e social que o país conheceu, em duzentos anos de história”.1

É, no mínimo, interessante que Morales coloque a tónica nos “duzentos anos de história”. Porque muito do que se tem passado nas últimas décadas no continente advém ainda de uma organização política e social herdeira de turbulentos processos de democratização, liberais ou revolucionários, da América Latina pós-colonial – e das consequentes ondas de violências provocadas (com auxílio de agentes externos) como resposta ou ricochete a maiorias sociais transformadoras. Do México, a norte, ao Chile, no extremo sul, com maiores ou menores diferenças, em função dos tipos de recursos naturais, das suas composições sociais ou políticas (e da sua força, poder ou organização), a verdade é que a América Latina continua refém da velha doutrina Monroe do século XIX, quando os Estados Unidos dela decidiram fazer “o seu quintal”.

Aos movimentos obreiristas, sindicais e comunistas dos anos 20 e 30 do século passado (no México, em Cuba, no Brasil) seguiram-se longas ditaduras militares. Aos movimentos revolucionários e guerrilheiristas dos anos 60 e 70 (na Colômbia, Peru, Nicarágua ou Guatemala) a resposta escalou para uma repressão alargada, perseguição, criminalização e eliminação de forças progressistas de esquerda, socialistas e comunistas, resultando em sangrentas guerras civis (mais de 200 mil indígenas e camponeses assassinados na Guatemala) ou ditaduras militares (Chile, Argentina, Brasil). Aos ajustamentos patrocinados pelo FMI e pelo Banco Mundial dos anos 80 e 90 que desregularam mercados, privatizaram recursos, neo-liberalizaram os frágeis estados sociais, a resposta atingiu uma escala continental, a que se chamou onda rosa, em que, no início deste século, países como Venezuela (com Hugo Chávez), Brasil (Lula da Silva), Bolívia (Evo Morales), Uruguai (Pepe Mujica), Chile (Michele Bachelet) e Argentina (Néstor Kirchner) assistiram à reversão de décadas de políticas neo-liberais, nacionalizando recursos naturais nas mãos de multinacionais estrangeiras para investir em habitação social, educação básica e superior, em saúde, em modernização urbana e mobilidade, e em parcerias internacionais económicas de benefício mútuo, como a ALBA (Alianza Bolivariana para los Pueblos de Nuestra America), impulsionada pela revolução cubana e o processo “chavista” na Venezuela.

Lawfare: guerras jurídicas para destruir maiorias sociais

A cada movimento mais ou menos progressista, que se atreva a controlar recursos (minérios ou terra) ou a distribuir riqueza, tem-se visto a resposta musculada das velhas oligarquias, apoiadas pelos interesses dos Estados Unidos e de multinacionais na região.

Os “velhos” golpe de Estado e assassinatos sumários, a que assistimos ao longo do século XX, têm vindo a ser substituídos por processos de lawfare – de que são exemplos o impeachment de Dilma Roussef no Brasil (2016), a prisão de Lula da Silva (2017), as acusações de corrupção a Cristina Kirchner na Argentina (2019 e 2022), na destituição de Pedro Castillo no Peru (2022), as eleições no Equador (2021) e, mais recentemente, na acusação de corrupção a Daniel Jadue, autarca do Partido Comunista do Chile (2024).

O que têm estes casos em comum? Todos os visados pela justiça são políticos que se afirmam à esquerda democraticamente eleitos, acusados de corrupção ou tráfico de influências, mas cujo envolvimento não consegue ser demonstrado nem provado. Pelo meio, os processos estendem-se morosamente na justiça e como escândalo nos media, pondo em causa as instituições, desacreditando a democracia e o Estado, lançando lama sobre os visados – quase todos foram ilibados a posteriori.

Segundo o Governo argentino, “embora o objectivo imediato do lawfare seja atacar certos líderes políticos, o seu efeito a médio e longo prazo é a criação de condições propícias à imposição de políticas económicas, sociais e laborais regressivas que prejudicam as grandes maiorias sociais. O lawfare não é um fenómeno espontâneo ou desorganizado, mas responde a interesses específicos de sectores do poder que permanecem, em maior ou menor grau, escondidos da opinião pública.”2

Esquerda resiste, extrema-direita cresce

Apesar de muito diferentes entre si, a eleição de Andrés Manuel López Obrador no México (2018), de Gabriel Boric no Chile (2021) e de Gustavo Petro na Colômbia (2022), todos em processos de coligação/aliança de forças progressistas de esquerda, envolvendo movimentos sociais alargados, de trabalhadores e sindicatos, em disputa com uma direita próxima do reaccionarismo oligarca (Colômbia) e a extrema-direita pinochetista (Chile), foram, no seu momento, resultados de um entusiasmo.

Na Colômbia, pela primeira vez, um ex-guerrilheiro chegou à Casa de Nariño, simbolicamente emergindo do longo processo de paz entre o Estado e as FARC, que dividiu a nação. Os casos de lawfare não se fizeram esperar, e Petro viu-se desde 2022 envolvido em escândalo atrás de escândalo, apesar das suas políticas avançarem na frente laboral, na reparação pós-guerra, no processo de paz com o ELN, e com populações historicamente privadas de direitos (à vida, à terra e ao trabalho), como indígenas e afro-colombianos.

No Chile, um processo de revisão constitucional dava esperança a um país ainda amarrado à Constituição herdeira da ditadura de Pinochet que, pela primeira vez, tinha a oportunidade de reverter danosos processos de neo-liberalização do Estado e ressarcir também populações indígenas ou vítimas de violência política histórica. Boric anunciava na sua tomada de posse que “se o Chile foi o berço do neo-liberalismo na América Latina, também há-de ser o seu túmulo”, mas as suas permanentes concessões (internas) à direita no travão às reformas de progressistas que o país ansiava conduziram ao falhanço da nova Constituição e ao abandono de muitos dos seus aliados. O alinhamento sistemático de Boric com a narrativa dos Estados Unidos e da UE, contra outras vozes e maiorias que se afirmam à esquerda na América Latina (Lula, Petro, López Obrador, Nicolás Maduro e Díaz-Canel), em particular no que diz respeito à responsabilidade da NATO na guerra da Ucrânia, tem-se traduzido numa enorme perda de popularidade.

Nenhum político de esquerda na América Latina nas últimas décadas resistiu a acusações sobre a possível “venezualização” do seu país. O “espantalho” da Venezuela (e, com menos extensão, Cuba) continua a marcar a retórica da direita contra qualquer movimento de distribuição de combate à desigualdade. Esta tem sido uma poderosa arma de manipulação mediática que resume e esvazia, cada vez mais, a gestão democrática de qualquer governo como “populista”, “corrupta”, “incompetente” ou “comunista”.

Foi muito com base numa retórica deste tipo que políticos como Jair Bolsonaro no Brasil ou Javier Milei na Argentina foram eleitos, apoiados pelas suas elites, mas também por uma massa popular ressentida, quer quanto ao carácter limitado dos avanços (face às expectativas, face à recorrente ausência de universalidade dos mesmos), quer quanto à suspeita de que essa limitação reside na vontade de não propor nem acolher rupturas estruturais no modelo económico e de produção, ressentimentos esses exponenciados por “exércitos” de bots de manipulação de algoritmos nas redes sociais e máquinas de fake news, em processos análogos à eleição de Donald Trump nos EUA.

A cada vitória pírrica da esquerda, a direita responde com maior violência e hostilização. Muitos cientistas políticos chamam a este fenómeno “polarização”. Na verdade, Milei ou Bolsonaro emergiram na direita mais extremada e radicalizada, alicerçados num discurso virulento visando sobretudo conquistas sociais de “minorias”, e contra o Estado, agora “falido”, enquanto garante das mesmas.

Como explica o militante marxista Alvaro García Linera, destituído da vice-presidência da Bolívia no golpe de 2019, “o centro-direita, que governou o continente e o mundo por 30 ou 40 anos, já não tem respostas para as evidentes falhas económicas da globalização neoliberal e, diante das dúvidas e angústias das pessoas, surge uma extrema-direita que continua a defender o capital, mas acredita que (…) agora é preciso impor as regras do mercado pela força. Isso implica domesticar as pessoas, se necessário com violência, para retornar a um livre mercado puro e pristino, sem concessões ou ambiguidades, porque, segundo eles, isso foi a causa do fracasso. Portanto, essa extrema-direita tende a se consolidar e a ganhar mais adeptos falando de ‘autoridade’, ‘choque de livre mercado’ e ‘redução do Estado’”.3

A esquerda não pode, contudo, “queixar-se” apenas do lawfare e da articulação coordenada entre a direita, a emergente extrema-direita, oligopólios dos grandes media, proprietários de recursos naturais, e o conservadorismo das igrejas evangélicas. O seu enfraquecimento permanente, golpe após golpe, é também resultado da sua crescente “neo-liberalização”, na conciliação entre classes sociais com interesses antagónicos, que têm gerado ressentimentos nos movimentos sociais, e de governança sem envolvimento de maiorias sociais.

A função da esquerda, diz García Linera, “não pode ser a de implementar um neoliberalismo com ‘rosto humano’, ‘verde’ ou ‘progressista’ (…). [À] medida que essas esquerdas ou progressismos se comportam de maneira medrosa, hesitante e ambígua na resolução dos principais problemas da sociedade, as direitas extremas crescem mais, e o progressismo fica isolado na impotência da decepção. Portanto, nestes tempos, as extremas direitas são derrotadas com mais democracia e maior distribuição de riqueza; não com moderação ou conciliação.”

Notas:
1 Evo Morales, Volveremos y seremos millones: El golpe de Estado, el exilio y la lucha para que Bolivia vuelva a gobernarse (Buenos Aires: Ariel, 2020).
2 Secretaría de Derechos Humanos de la Nación, Lawfare: democracia en peligro (Buenos Aires: Ministerio de Justicia y Derechos Humanos, 2023), p. 7.
3 Álvaro García Linera, “Para derrotar a extrema-direita as esquerdas devem se radicalizar”. Revista Jacobin Brasil, Janeiro 2024. Disponível em: https://jacobin.com.br/2024/01/para-derrotar-a-extrema-direita-as-esquerdas-devem-se-radicalizar/

Raquel Ribeiro

(1980)
Jornalista, investigadora no Instituto de História Contemporânea, FCSH/NOVA

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