A Arte Intemporal de um Artista Singular | No Centenário de Joly Braga Santos

José Manuel Joly Braga Santos (14 de maio de 1924 – 18 de julho de 1988), de quem este ano celebramos o centenário do nascimento, é considerado – podemo-lo seguramente afirmar – como um dos mais destacados compositores portugueses do século XX.

Com uma precocidade musical surpreendente, mesmo quando a comparando com a do seu mestre Luís de Freitas Branco, não conseguimos deixar de admirar o feito de Joly Braga Santos ter composto entre os 22 e os 26 anos e estreado, nomeadamente no Teatro de São Carlos e pelo nosso mais destacado maestro da época, Pedro de Freitas Branco, as suas primeiras quatro sinfonias. Este género musical é considerado a par com a ópera como um dos mais “nobres” e definitivos, pelo qual um compositor pode ambicionar ser reconhecido. No seu caso, podemos mesmo dizer que, desde o início, o compositor encontrou no grande dispositivo orquestral o meio ideal de comunicar.

A estas impressivas primeiras quatro sinfonias de grande complexidade e qualidade musical, num compositor cujo opus 1 data dos seus dezoito anos, Nocturno para Violino e Piano, seguido de Cinco Canções sobre Poemas de Fernando Pessoa, teremos de acrescentar – só na primeira década criativa – as três aberturas sinfónicas (1946, 1947 e 1954), o primeiro quarteto de cordas (1945), a cantata A Conquista de Lisboa (1947), a Elegia a Vianna da Motta (1948), as Variações sobre um Tema Alentejano e o Concerto em Ré para Cordas (ambas de 1951), e a primeira ópera, Viver ou Morrer (1952). Nesta plêiade de obras, cobrindo diversos géneros musicais, o então jovem compositor revelava já uma linguagem musical própria, um fulgor e mesmo uma maturidade surpreendente.

O compositor Sérgio Azevedo, num longo e estimulante ensaio intitulado “Joly Braga Santos: criar música como as árvores dão frutos”, afirma “a música do compositor não mostra sinais nem de dúvidas nem de grandes hesitações estéticas. Ela é apenas aquilo que tem de ser: genuína, direta e verdadeira. Como uma árvore dá frutos, Joly escreve sinfonias e concertos uns atrás dos outros, sempre inspirado, e revela nessas obras um talento melódico extraordinário, que atingirá o seu pico no hino final da 4ª Sinfonia, um dos finais mais belos e empolgantes de toda a música ocidental (pesei bem a hipérbole), um final que só não é pertença de toda a humanidade porque, e aqui tocamos no ponto sensível de todos os compositores portugueses, a nossa música nunca logrou internacionalizar-se”[i].

Há uma certa tendência para delimitar a produção musical de Joly Braga Santos em duas fases. Uma primeira, ainda sob a influência de Luís de Freitas Branco, mais tradicional, lírica e modal, que terá culminado por volta de 1950 com a composição da Quarta Sinfonia. Sobre esta relação entre professor e aluno, Alexandre Delgado, também ele compositor e aluno dileto de Joly Braga Santos, destaca não só o facto de estarmos perante uma “verdadeira passagem de testemunho”, como de o primeiro ter sido um “pai espiritual que o acolheu [a Joly Braga Santos] e ensinou com generosidade, ciente do talento invulgar do aluno”[ii].

A admiração recíproca entre mestre e discípulo revelou-se também em momentos pungentes. Quando Luís de Freitas Branco foi afastado do Conservatório Nacional, Joly Braga Santos apoiou-o publicamente e como consequência foi ele próprio expulso do Conservatório.

Mais tarde, no início da década de sessenta, as obras de Joly Braga Santos, com a utilização de um maior cromatismo e com um certo afastamento da sua marca de água, a melodia, e mesmo de um certo lirismo inato, tornam-se mais densas e complexas.

Entre estas destacam-se a ópera Mérope (1959) ou o Concerto para Viola e Orquestra (1960), com a experimentação de novas técnicas de composição, com um maior cromatismo, a utilização de clusters e outras técnicas, mesmo orquestrais, já claramente no âmbito de uma linguagem musical mais de vanguarda, com uma aproximação ao cânon contemporâneo da então escola de Darmstadt de Bruno Maderna, Luigi Nono, Pierre Boulez ou Karlheinz Stockhausen, revelando um compositor que procura ir ao encontro da linguagem do seu tempo.

Esta recorrente dicotomia, entre um neoclassicismo, em certa medida próximo ao de alguns escritores portugueses seus contemporâneos neorrealistas, herdado em grande parte de Luís de Freitas Branco, mas também, natural a Joly Braga Santos, e a exploração do vanguardismo musical a partir da década de sessenta do século passado, é contrariada por alguns investigadores e músicos, como o já referido Alexandre Delgado, que afirma: “a obra mais importante que Joly Braga Santos escreveu a seguir à 5ª Sinfonia foi a ópera Trilogia das Barcas, baseada em Gil Vicente e estreada em 1970. Essas duas criações radicalmente diferentes, escritas tão próximo uma da outra, mostram como é inexata a divisão estanque da produção de Joly em duas fases, uma primeira modal e uma segunda de livre cromatismo. A versão operática dos autos vicentinos, escrita em plena fase «atonal», é de um modalismo radioso, retoma o diatonismo das quatro primeiras sinfonias de uma forma que nada tem que ver com a vanguardista explosão cromática da 5ª Sinfonia”[iii].

É certo que a biografia de Joly Braga Santos ainda se encontra em certos domínios por fazer. Sabemos sim que foi um trabalhador incansável. Fez crítica musical em publicações como a Arte Musical, no Diário da Manhã, Diário de Notícias ou no Boletim da Juventude Musical Portuguesa, instituição de que foi um dos cofundadores a par com Humberto d’Ávila, Maria Elvira Barroso, Nuno Barreiros, Filipe de Sousa, João de Freitas Branco, Luís de Freitas Branco e Pedro de Freitas Branco.

Cedo iniciou a sua atividade enquanto professor de composição. Entre os primeiros alunos particulares contam-se João Paes, António Victorino d’Almeida ou José Atalaya. Mais tarde, em diferentes períodos e por último, até falecer, foi professor do Conservatório Nacional de Música de Lisboa.

No entanto, foi enquanto compositor que mais se destacou. Trabalhando sobretudo e grande parte da vida para a então Emissora Nacional, nomeadamente para o Gabinete de Estudos Musicais, para onde entrou em 1948, até à extinção do mesmo em 1954, e onde teve como função a composição de obras orquestrais. Posteriormente, seria maestro assistente e de captação da sua Orquestra Sinfónica.

Em 1949, como bolseiro, deslocou-se pela primeira vez ao estrangeiro com o intuito de frequentar um curso de direção de orquestra em Veneza, sob a direção do maestro Hermann Scherchen. Curso que se revelou de grande importância pois, no regresso a Portugal, seria convidado por Ino Savini para maestro assistente da Orquestra Sinfónica do Conservatório de Música do Porto.

Refira-se que uma década mais tarde, Joly Braga Santos, com uma nova bolsa do Instituto de Alta Cultura estudou no Conservatório de Roma com Giulio Mortari e Godofredo Petrassi, tendo ainda estudado direção de orquestra com Antonino Votto no estúdio experimental de Gravesano e com Hermann Scherchen, em Lugano, na Suíça.

Embora amigos próximos fossem reconhecidos opositores ao Estado Novo, Joly Braga Santos não se interessava particularmente por política. O que não o impediu de se ver envolvido em situações politicamente espinhosas, como, quando foi obrigado, correndo o risco de perder o emprego na então Emissora Nacional, a compor o que veio a ser a sua Quinta Sinfonia para as comemorações do quadragésimo aniversário do golpe de Estado de 28 de Maio de 1926. A partir desse momento, como aconteceu a muitos intelectuais e artistas, o compositor que, em certa medida, já era persona non grata perante o regime português, passou-o a ser também perante uma certa oposição a esse mesmo regime. Por sinal, e porque em arte nada é linear, pensemos apenas em Dmitri Shostakovich ou Fernando Lopes-Graça, a Quinta Sinfonia acabou por ser uma obra reconhecida pela sua qualidade, premiada pela UNESCO, que acaba por estar nos antípodas da própria estética vaticinada pelo regime português de então e que acabou por alavancar a internacionalização do próprio compositor.

Se a adesão – tanto por parte do público como dos intérpretes – à produção musical de Joly Braga Santos foi sempre assinalável, nomeadamente em obras como as primeiras quatro sinfonias, o Concerto em Ré ou as Variações sobre um Tema Alentejano, urge na atualidade investigar, tocar e dar a conhecer a Portugal e ao mundo a sua Obra Musical, que possui uma enorme riqueza, refletindo um mundo próprio, com uma linguagem única, quase encantatória, de enorme originalidade, inspiração e emoção.

Sabemos que a divulgação, audição e o reconhecimento dos nossos compositores é uma pecha persistente e, tal como acontece com outros nomes cimeiros da música erudita em Portugal, não tem permitido que Joly Braga Santos (já) tenha alcançado o reconhecimento que lhe é devido na música erudita do século XX. Efemérides como esta, do centenário do nascimento, têm a importante função de fazer “prova de vida” e de alertar para o facto de que nós, enquanto sociedade, temos o “dever” ético e cívico de dar a conhecer ao público a nossa melhor música.

Mesmo assim, de uma forma lenta, no caso de Joly Braga Santos, o reconhecimento tem sido alcançado fruto de um conjunto de ações que devemos assinalar, nomeadamente, o labor incansável e incontornável do maestro Álvaro Cassuto, quer revendo, editando e gravando parte considerável da produção orquestral do compositor para as editoras discográficas Marco Polo e Naxos, quer coordenando Joly Braga Santos, Uma Vida e Uma Obra, livro-síntese publicado em 2018 pela Editorial Caminho.

Referir também, no âmbito da edição da obra musical, a ação da editora AvA – Edições Musicais, que tem vindo a editar parte considerável da produção musical de Joly Braga Santos, bem como dos projetos discográficos de Elsa Saque e Nuno Vieira de Almeida no âmbito das canções de câmara, ou a edição completa da produção para música de câmara, em três volumes, editada pela Toccata Classics, com a participação de músicos de referência como Irene Lima, Olga Prats, António Saiote, Leonor Braga Santos (filha do compositor), Catherine Strynckx ou o Quarteto Lopes-Graça.

É desta ação conjunta que tem começado também a surgir o reconhecimento internacional da Obra Musical do compositor, nomeadamente pelas críticas muito positivas que muitas das gravações acima mencionadas têm obtido em publicações internacionais de referência.

Por último, neste ano de centenário, aplaudir a programação desenvolvida por algumas das principais instituições musicais portuguesas, como o Teatro Nacional de São Carlos, a Orquestra Metropolitana de Lisboa, o Centro Cultural de Belém ou a Casa da Música, que têm vindo a incluir de forma destacada na sua programação obras de Joly Braga Santos. Só editando as partituras, gravando as obras, divulgando-as e publicando – principalmente – fazendo ouvir a sua Obra Musical nas salas de concerto, será possível desenvolver um verdadeiro circuito virtuoso de proximidade entre o público e um Artista tão singular.

Notas:
[i] Azevedo, Sérgio, “Joly Braga Santos: criar música como as árvores dão frutos” in Glosas, Nº3, Maio de 2011, p.13.
[ii] Delgado, Alexandre, A Sinfonia em Portugal, Caminho, 2002, 2ª edição, p.181.
[iii] Delgado, Alexandre, in Op. cit., p.241.

Bruno Caseirão

(1975)
Doutorando em Educação Artística no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa e investigador do CESEM na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Investigador, docente no Conservatório de Música da Metropolitana. Colaborador da RDP – Antena 2, do Teatro Nacional de São Carlos e do Jornal de Letras.

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