Camões e a Cruzada Imperial com Horizonte Ecuménico

Luís de Camões não escreveu nenhum tratado doutrinário ou dissertação alguma sobre filosofia política. Todavia, a sua rota existencial e o discurso que estrutura a sua obra poética pressupõe certas concepções e obedece a certas opções de ordem política indissociáveis do contexto sócio-cultural e geo-estratégico em que o Reino português e o Poeta, seu rapsodo e vate, se moviam. Sem ter em devida conta esse carácter situado e experiencial do discurso camoniano não se acede à correcta equação das suas concepções e das suas opções.

Basta pensar, por exemplo, na posição camoniana perante as questões candentes da guerra e da paz: o vate lusíada nem é um apologeta do irenismo fabro-erasmiano, nem um belicista incondicional; no âmbito da sociedade internacional constituída na Europa e no Mediterrâneo, sobretudo nas relações entre Estados cristãos mas não só, Camões defende a paz e o respeito pelas soberanias nacionais, apenas admitindo a legitimidade da “guerra defensiva”; no âmbito do confronto com o expansionismo islâmico (turco, árabe, mameluco, etc.), defende a “guerra justa” que se estende do alcance daquela guerra defensiva ao direito de reconquista (nomeadamente no confronto ibérico com os mouros no Norte de África) e que se expande a outros teatros de afirmação imperial – mas como uma insólita «guerra santa» desejavelmente a caminho de uma Pax lusitana que, por seu turno, seria o advento ecuménico do reino universal da Justiça, da Beleza e do Amor (como, desde Oliveira Martins até ao insuspeito Armando de Castro, foi reconhecido).

Camões viveu e criou consentaneamente num tempo português e ocidental de mutação, de globalização afanosa e tendencialmente eufórica, mas afinal de crise multiplanar, poligenésica e descentrada que se traduzia em cisões na Igreja, alianças espúrias e guerras intestinas na Europa cristã, agressiva expansão do imperialismo islâmico, incremento do corso moderno e da pirataria ancestral, pestes e bancarrotas estatais, etc.

Decorrendo num contexto de Empire in transition (A. Hower/A. Preto-Rodas) e de Europa em crise de identidade geo-estratégica, a existência de Camões foi votada à instabilidade e à errância, quase sempre aventurosa, muitas vezes forçada e penosa – desde a primeira missão militar ao serviço do império em Ceuta até aos dezassete anos de vicissitudes pelo Oriente, militando de uma ou outra forma na Índia portuguesa, apostólica e mercantil (certeiro título de importante obra colectiva editada em Paris por 1996).

Animado de espírito de «amor fraterno e puro gosto / De dar a todo o Lusitano feito / Seu louvor» (V, 100) e operando por «amor da Pátria, não movido / de prémio vil, mas alto e quase eterno» (I, 10), o génio de Camões responde sumamente a tal apelo. Cantando o passado, intervindo no presente, orientando para o futuro, Os Lusíadas cumprem uma missão de paideia cívica e ética, aliás privilegiada nas leituras imediatas da sua «pena» e do seu «canto», como se vê em Diogo do Couto.

Nesse plano, em que se torna incontestável a importância dos impérios ibéricos para a globalização eurocêntrica e até para as condições de industrialização costumeiramente associada aos países do Norte (como recentemente mostrou Bartolomé Yun Casalilla), Camões sintoniza-se com o melhor pensamento político no Renascimento português, em especial coincidência com a Imagem da Vida Cristã de frei Heitor Pinto e com a Ropicapnefma de João de Barros.

A poesia de Camões – que se distingue pelo sentido de Comunidade, como recapitulou Luís de Sousa Rebelo, e que só pôde erguer-se ao canto épico por não a intentar em contracorrente da História, como discerniu Ezra Pound – reconhece a condição política da comunidade de origem e de sangue como colectividade dotada de governo próprio (sob a forma privilegiada da monarquia hereditária ou electiva), naquela articulação de território, população e poder que forma a base do moderno significado do Estado. O exercício do poder («governança», «governo», «império», «mando», «poder», «potência», «potestade», «regimento», «senhorio»), tem a sua origem em Deus que actua por «[…] segundas / Causas […)» (Os Lusíadas, X.85), isto é, através do povo que pode «levantar o rei» ou destituí-lo em função do bom ou mau cumprimento do seu «ofício» em atenção ao Direito, «a divina e humana lei». De qualquer forma, o ministério do poder implica a destrinça entre governantes («rei», «senhor») e governados («vassalos», «gente»), que ora se contrapõem ora se articulam harmonicamente sob o poder de um só – o Príncipe, idealizado e educado segundo compêndio de faculdades e virtudes, e depois apoiado na consulta do seu conselho – enquanto governo dirigido ao «bem púbrico» (primazia do bem comum, com matriz tomista) e visando a mais alta Justiça (princípio também tradicional), e oposto portanto à tirania ou à prepotência discricionária, e sem cedências a Maquiavel na equação política de amor e temor, nem à sua doutrina utilitarista e amoral sobre o poder.

Camões rege-se por lúcida compreensão da situação geoestratégica da Cristandade europeia e particularmente do Império português como condição de vida superior do Reino católico em movimento. É nessa conformidade que Camões procura salvaguardar o princípio da igualdade das nações, como se vê no episódio do rei de Melinde, e adaptar a esse movimento de expansão nacional os grandes princípios que defende para a sociedade internacional no Ocidente cristão, com a inegável componente de modernidade na afirmação da igualdade dos poderes temporais, na defesa dos meios pacíficos de negociação como modo normal de regular os interesses em presença, na liberdade de comércio, etc. Assim sintetiza magistralmente Martim de Albuquerque aqueles princípios: intangibilidade da independência nacional, garantida pela justiça como condição de toda a guerra (Os Lusíadas, IV.44); humanidade nas relações entre os povos, abarcando o direito de asilo e o «gasalhado seguro» (I.43 e II.74); aplicabilidade dos regimentos locais nas armadas, não se lhes sobrepondo a lei local (II.84-87); tratamento das nações em pé de igualdade (VII.13 e I.48); direito de comerciar (VIII.92 e X.10); Justiça como lei divina entre os povos, independentemente do credo religioso (IV.44); o ideal de paz recíproca entre os povos cristãos e a diplomacia como forma normal e pacífica de relacionamento e de prevenção ou resolução de conflitos (II.77-78 e II.58), bem como o sancionamento, através de represálias, da ruptura ilícita das negociações (IX.9 e 12-13).

Nesse sentido, Os Lusíadas e os poemas líricos dedicados a construtores do império ou tecidos no louvor do espírito de gesta inconclusa – v. g. os poemas consagrados na Índia a D. Henrique de Meneses, malogrado Governador que tão alto soubera suceder a Vasco da Gama (soneto «Esforço grande, igual ao pensamento»), ao Vice-Rei D. Constantino de Bragança (epístola poética «Como nos vossos ombros tão constantes») e ao Conde/Vice-Rei D. Francisco Coutinho (soneto «Dos ilustres antigos que deixaram»), ou, já após o regresso a Lisboa, a D. Luís de Ataíde (soneto «Que vençais no Oriente tantos Reis») e a D. Leonis Pereira (soneto «Vós Ninfas da Gangética espessura»), culminando em 1575 nas oitavas de grandiloquente profetismo católico-imperial do poema «Mui alto Rei, a quem os Céus em sorte» que celebra a distinção do jovem rei português com relíquia enviada pelo Papa, numa militância que Camões prolonga, prestes a morrer, pelo soneto «Os reinos e os impérios poderosos», enaltecendo alusivamente aquele D. Teodósio de Bragança que com dez anos combatera em Alcácer-Quibir, fora ferido e aprisionado, depois resgatado e retido em Espanha, e finalmente recebido jubilosamente em Portugal a 15 de Março de 1580 – constituem-se num contextualizado «manifesto» político do Estado nacional, que conjuga incomparavelmente a fidelidade ao projecto imperial lusíada com o realismo (próximo, aliás, de obras como O Soldado Prático de Diogo do Couto) na percepção e na denúncia das tensões e perversões que começavam a minar a eficácia, a grandeza e a legitimação do domínio português nos mares índicos.

Contudo, isso implica o reconhecimento desse poderio nacional e dos meios valiosos e eficientes com que ele fora conquistado – pela clarividência estratégica em espaço de soberanias pulverizadas e de forças fragmentadas, pela teia diplomática de «pactos e lianças» políticos e económicos (VII, 62) do “Senhor da conquista, da navegação e do comércio”, pelas chefias experimentadas e valorosas agindo com «soldados a tudo obedientes» (X, 46) no pressuposto da «lealdade de ânimo e nobreza» (V, 90) ao «regimento, em tudo obedecido, / De seu Rei» (II, 83), pela clara definição dos inimigos principais («mouros» e venezianos, turcos e mamelucos do Egipto), pela agressividade da táctica e dos combatentes, pela superioridade dos velozes navios e da poderosa artilharia, pela rede de fortalezas costeiras, pelo princípio de renúncia à violência cruenta entre compatriotas.

Isso implica, por seu turno, mais uma binomia significativa em sede de história global: Camões e seus heróis lusíadas querem seguir o modelo da Antiguidade, especialmente dos conquistadores-colonizadores romanos, como homens do Renascimento ilustres nas Armas e nas Letras; mas sentem-se em aventuroso serviço de Cruzada, retomando o ideal e o imaginário da Cavalaria medieval que a Europa fora esquecendo e cuja voga em Portugal se reflecte no surto de novelística cavaleiresca do século XVI.

Por outro lado, Camões, tal como o seu amigo Diogo do Couto de O Soldado Prático, não ignora as sombras e as degradações que se abatem sobre o reino imperial, nem omite as brechas que o vão dilacerando às mãos de inimigos islâmicos, gentios orientais e concorrentes europeus. Camões não se exime, pois, a pesarosas denúncias ético-sociais, que no entanto não se devem confundir com o conselho político-cultural que para o vate decorrem de um humanismo cívico de cunho nacional.

Em contrapartida, a prolepse de Tétis no canto X d’Os Lusíadas presta alentador tributo aos feitos que ao longo do século XVI sustentam o poder luso no Oriente, ao mesmo tempo que destina a insólita abertura do envoi à apologia do aprofundamento da frente norte-africana do império; e, se contingências várias e razões estruturais do poema terão ditado que a evocação galvanizante se estenda só até ao vice-reinado de D. João de Castro e pouco contemple a colonização do Brasil (VII, 14, X, 63, e X, 139-140), várias composições líricas vêm ocupar-se pro tempore dessas matérias.

Como ratifica o lúcido scholar Clive Willis, Camões regressara do Oriente e de África «disillusioned about the conduct of colonial administration, though still enthusiastic about the imperial enterprise as a whole» – lembrete oportuno para aqueles que teimam em extrapolar as críticas e censuras de certos passos poéticos, não respeitando as exigências globais do círculo hermenêutico e as injunções especificadoras da dominante no funcionamento sistémico da obra camoniana.

Mas até o lema nobilitante da excelência nas “Armas e Letras” era assumido como «disciplina militar prestante» na gesta imperial portuguesa – por Camões e pelas suas fontes cronísticas, cujos autores (Castanheda, Diogo do Couto, etc.) eram maioritariamente participantes nos acontecimentos como embarcadiços, soldados e funcionários administrativos. Era com conhecimento de causa e com autoridade moral que Camões e todos eles reivindicavam as «puras verdades» das suas narrativas, em que enalteciam um modelo lusíada de herói que era indissociavelmente miles gloriosus e miles Christi.

Na sua coerência orgânica, sob a dominante estrutural do seu Argumento (desde o ritual introdutório de Proposição e Dedicatória até à peroração do Exórdio), o canto de Camões surgia equaciona-se com os sinais ideológico-políticos que nos anos ‘70 vinham confortar a ideia de que o pronunciamento do Velho do Restelo (e da corrente de opinião por ele representada) em favor da cruzada no Norte de África não era antitético do novo investimento imperial no Oriente e no Brasil. Em verdade, ambos se deveriam cumprir pela integração superadora na peculiar missão lusíada de encaminhar a Humanidade para o domínio universal das «leis melhores» (II, 46) que a Providência divina anuncia e garante em seu mitográfico transfert para a voz de Júpiter.

Nem o reconhecimento generalizado do desajuste entre a amplitude e a lonjura transcontinentais da expansão imperial e as limitações demográficas do Reino europeu podia arrastar Camões e os seus heróis, ou D. Sebastião, para a denegação do projecto lusíada: este não se regia pelo regime do senso comum e do pragmatismo imediatista (suspeito de esconder, por detrás do ideal clássico de aurea mediocritas, a acomodação do homem mediano à existência trivial).

Enfrentando as iminências de crise com a ética da superação, o projecto lusíada cumpria-se no risco e na abnegação de quem pensava a equação entre Império e meios (humanos e materiais) com espírito visionário e cavaleiresco, situando o destino de Portugal em horizonte de valor universal e intemporal e de inscrição da História humana no horizonte de Eternidade.

José Carlos Seabra Pereira

(1949)
Professor e ensaísta

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