Em plena tempestade, para onde sopra o vento?
É um mundo em ebulição, entre a tragédia e a esperança, perante o estertor de um gigante que tenta sobreviver à progressiva perda de hegemonia económica e política. Eis o tempo de todos os perigos.
Depois da cimeira histórica dos BRICS, no ano passado, em Joanesburgo, na África do Sul, os países que integram esta organização intergovernamental voltam a reunir-se de 22 a 24 de Outubro, em Kazan, na Rússia. Se em 2023 países como o Egipto, o Irão e os Emirados Árabes Unidos passam a fazer parte dos BRICS, ainda à espera da resposta da Arábia Saudita ao convite, o ano de 2024 promete com a possível entrada da Turquia, o maior parceiro da NATO e eterno candidato indesejado à integração na União Europeia. Outros países esperam a resposta ao pedido formal de adesão entre os quais se encontram Cuba, Venezuela, Bolívia e Nicarágua, mas também muitos países asiáticos. Igualmente, na antecâmara dos BRICS, à espera do ingresso, está o Burkina Faso, país que, com o Mali e o Níger, rompeu recentemente todos os acordos com França e se aproximou da Rússia.
Para lá da futura geografia dos BRICS, e da aspiração dos países emergentes, sobretudo do chamado Sul Global, em projectar o seu futuro numa economia mais plural e menos hegemónica, é cada vez mais claro que a arquitectura política desta organização tem como cimento o declínio do Ocidente e a vontade de romper com o actual modelo que rege os destinos do mundo.
Só assim se pode entender como puderam os maiores países do planeta em população virar as costas aos Estados Unidos e à União Europeia e recusar isolar a Rússia internacionalmente depois da intervenção militar na Ucrânia. É cada vez mais evidente que nenhum destes países está disposto a pôr as mãos no fogo em nome de alianças que, no passado, mais do que vantagens trouxeram dependências e ameaças à soberania. Mesmo algumas das contradições entre potências regionais, muitas vezes alimentadas pelo Ocidente, são agora debeladas.
O trabalho diplomático da China, neste aspecto, é um bom exemplo. Foi graças a Pequim que a Arábia Saudita e o Irão se sentaram à mesa das negociações e decidiram o fim da guerra no Iémen. Igualmente, foi graças aos esforços do gigante da Ásia Oriental que se conseguiu, pela primeira vez, em quase 20 anos, a unidade entre as forças palestinianas e um acordo para governar em conjunto a Faixa de Gaza e a Cisjordânia, uma derrota em toda a linha para a estratégia de Israel de dividir a resistência palestiniana.
É hoje bastante claro que o Ocidente não quer impor linhas vermelhas a Israel. Por detrás de condenações ou notas de preocupação tão convincentes como uma carpideira no funeral de um desconhecido, Telavive continua a receber armas de vários países.
Enquanto Cuba, Venezuela, Irão, Síria, Coreia e Bielorrússia estão sujeitos a pesadas sanções que, nalguns casos, têm consequências muito graves para as populações, Israel passeia-se pelo tapete vermelho das relações internacionais.
Essa comparação é ainda mais grotesca se atendermos à histeria política e mediática ocidental sobre a necessidade de defender a Ucrânia e os valores democráticos europeus frente à ameaça do agressor russo. Desde 7 de Outubro de 2023 que, para os mais distraídos, ficou bem evidente com o apoio a Israel que a defesa do agredido era uma farsa e que os valores europeus não são mais do que os interesses económicos e políticos do Ocidente com os Estados Unidos à cabeça.
Cerca de mais de 40 mil mortos depois, numa carnificina na Faixa de Gaza que muitos países classificam de genocídio, alguns países europeus deram o passo de reconhecer o Estado da Palestina e outros, como Portugal, preferiram fingir que esperam por um consenso dentro da União Europeia. A indiferença para com a bárbara agressão de Israel à Palestina é liderada por Washington. Já em 2021, por muito menos, o Presidente Joe Biden, conhecido pelas suas posições pró-Israel, tinha sido criticado por congressistas do seu próprio partido por não ter sido suficientemente duro com Telavive. Num texto desse mesmo ano, muito elucidativo, a reler agora que Israel estende a carnificina ao Líbano, o assessor do secretário de Defesa na administração de Ronald Reagan, Lawrence J. Korb, responsável pela gestão de 70% do orçamento de defesa durante esse mandato, recordou que o presidente republicano decidiu não vetar várias resoluções na ONU contra Israel. Por exemplo, a 7 de Junho de 1981, menos de seis meses após a tomada de posse de Reagan, Israel lançou um bombardeamento surpresa sobre o reactor nuclear iraquiano de Osirak e, ao fazê-lo, violou o espaço aéreo da Arábia Saudita e da Jordânia. Reagan não só apoiou a Resolução 487 do Conselho de Segurança da ONU, que condenava o ataque, como também criticou publicamente o raide e suspendeu a entrega de caças F-16 a Israel. Além disso, Reagan aprovou a venda de aviões de reconhecimento avançados (AWACS) à Arábia Saudita, que Israel considerava então um Estado hostil.
Um ano mais tarde, em Agosto de 1982, quando Israel invadiu o Líbano e bombardeou as bases da Organização de Libertação da Palestina, liderada por Yasser Arafat, Reagan interveio directamente quando Telavive ameaçou atacar o Hotel Commodore, em Beirute, onde se concentravam mais de 100 jornalistas ocidentais, algo que contrasta com a reacção dos Estados ao assédio de redacções e assassinato de profissionais da comunicação social.
Como recorda Lawrence J. Korb, além de permitir a aprovação das resoluções da ONU e de suspender a entrega dos F-16, Reagan também restringiu a ajuda e a assistência militar a Israel para ajudar a forçar a retirada das tropas de Beirute e do centro do Líbano.
Num processo negocial em que se tem acusado o Hamas de recusar o cessar-fogo e de não querer entregar os reféns, Israel não aceitou sequer assinar a proposta que tinha o apoio dos Estados Unidos e da resistência palestiniana. Ao mesmo tempo que fingia querer negociar e acusava o Hamas de entorpecer a negociação, Telavive assassinou, no Irão, Ismail Haniye, o líder da organização palestiniana.
Enquanto as forças israelitas arrasam a Faixa de Gaza, matando milhares de crianças, idosos, crianças e também reféns, o Ocidente fecha os olhos e permite aquilo que não permitiria a qualquer outro país que não fosse um aliado fundamental numa região cheia de recursos.
O ataque em massa com recurso a pagers e walkie talkies armadilhados, que matou 32 libaneses e deixou 3.500 feridos, entre os quais crianças, foi considerado pelo ex-director da CIA e secretário de Defesa de Barack Obama, Leon Panetta, em entrevista à CBS, uma “forma de terrorismo” que pode ter repercussões no futuro. Sem linhas vermelhas, em apenas um ano, para além da Palestina, Israel foi responsável por ataques ao Líbano, Síria, Iémen e Irão.
Ucrânia em luta contra o tempo
Independentemente da leitura que se faça da intervenção russa na Ucrânia, o facto é que a História ganhou velocidade e não espanta que haja poucas citações tão usadas ultimamente como a de Lénine: “Há décadas em que nada acontece, mas há semanas em que décadas acontecem”. Embora com algumas linhas vermelhas, a verdade é que o Ocidente tem permitido a elasticidade. Veremos se vai esticar até partir. Desde a sabotagem aos gasoductos Nordstream aos assassinatos selectivos em solo russo, já muita água passou debaixo da ponte. À espera de armas de longo alcance para tentar virar a guerra pela enésima vez, a Ucrânia desespera com o fracasso da incursão militar em Kursk. Se em 2023 a ofensiva ucraniana bateu contra a muralha defensiva russa, este ano a expectativa era alta. O factor surpresa e a falta de linhas de defesa de Moscovo na região de Kursk permitiu a Kiev avançar em campo aberto sem grande oposição. A acção foi mais espectacular do que efectiva. Em primeiro lugar porque não conseguiu fazer desviar tropas russas do Donbass e, em segundo, porque pretendia usar o território conquistado como possível moeda de troca numa negociação com a Rússia. A Ucrânia já perdeu uma parte do território conquistado à Rússia e arrisca-se a perder o resto.
No Donbass, a situação é cada vez mais complicada para Kiev e Zelensky já fala em negociações com Moscovo. A chamada Cimeira da Paz realizada em Junho na Suíça foi uma coreografia política que não serviu para qualquer outro propósito senão propagandístico. A guerra terminará com a capitulação de uma das partes ou com uma negociação em que tanto a Ucrânia como a Rússia terão de estar presentes. Não seria inédito. Há quem queira fazer esquecer que logo no princípio da intervenção militar russa representantes dos dois lados estiveram sentados para negociar o fim das hostilidades. Foi a pressão ocidental que tirou a Ucrânia da mesa das negociações. Antes disso, em 2014, em plena guerra civil, um acordo tinha sido alcançado naquilo que ficou conhecido como Minsk 1 e, posteriormente, Minsk 2. Kiev comprometia-se a dar autonomia às regiões ucranianas e respeitar assim as características próprias das populações, sobretudo do Donbass. Esse ponto dos acordos nunca foi cumprido e, mais tarde, tanto Angela Merkel como François Hollande admitiram que a Ucrânia apenas tinha assinado para ganhar tempo e preparar-se militarmente. O facto é que a Ucrânia podia ter escolhido um modelo confederal como a Suíça ou de comunidades autónomas como Espanha. Esse tempo passou. Com as eleições norte-americanas como pano de fundo, veremos que tipo de mudanças pode haver no futuro próximo consoante o próximo inquilino da Casa Branca.
Nº 1768 - Outono 2024
