Para uma política de salário digno em Portugal

A adopção do Pilar Europeu dos Direitos Sociais (PEDS) na Cimeira de Gotemburgo em 2017, documento fundador da actual agenda da Política Social da União Europeia, veio colocar na agenda política o direito a um rendimento salarial adequado que permita uma vida com dignidade. Num dos seus princípios, é afirmado o direito a um salário justo e a um salário mínimo adequado, isto é, que garanta condições de vida digna aos trabalhadores e às suas famílias, à luz das condições económicas e sociais nacionais (evitando a pobreza no trabalho) e assegurar que os salários sejam fixados de forma transparente e previsível, respeitando a autonomia dos parceiros sociais.

Esta é uma área crítica em Portugal, onde a pobreza no trabalho é elevada e em que a elevada e persistente incidência da pobreza monetária entre os agregados familiares está fortemente associada aos baixos salários, quer directamente (é nos agregados familiares mais pobres que se concentram os trabalhadores de baixos salários), quer indirectamente (pelo efeito que tem nas baixas pensões de reforma, num sistema de protecção social fortemente bismarkiano). Qualquer estratégia nacional de erradicação da pobreza deve, portanto, localizar o seu foco de actuação política no trabalho, nas condições de trabalho e nos níveis de remuneração, isto é, garantindo trabalho decente, de que assegurar salário digno (mínimos adequados) e salário justo (distribuição equitativa do rendimento salarial) são condições necessárias para esse objectivo. Esses são princípios presentes no Pilar Europeu dos Direitos Sociais (PEDS).

A temática do salário digno, tradução que faço do conceito anglosaxónico de living wage, é muito antiga no pensamento filosófico, na literatura da economia política e nos movimentos sociais na Inglaterra desde o final do séc. XIX, no sentido de se considerar que o salário deve poder garantir dignidade de vida aos trabalhadores e suas famílias. O movimento em defesa do living wage, e de adesão voluntária das empresas a esta prática salarial, tem actualmente ampla expressão no Living Wage Foundation do Reino Unido, que se tem difundido por todo o mundo, sendo acompanhado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), como é demonstrado pela recente reunião de peritos sobre políticas salariais da OIT, realizada em Fevereiro deste ano (2024), onde foi proposta a seguinte definição de living wage: “Um nível salarial, pago em troca de trabalho prestado durante as horas normais de trabalho, que seja suficiente para assegurar um nível de vida decente para os trabalhadores e suas famílias, da forma como tal é entendido no seu tempo e no seu país”.

O tema do living wage ganhou importância na União Europeia a partir da primeira década deste século. Vários factores contribuiram para tal, sendo de destacar a Grande Recessão e o alargamento da UE aos países da Europa Central e de Leste, com níveis salariais bastante inferiores aos mais antigos países da União Europeia, tendo colocado na agenda política a necessidade de assegurar rendimentos salariais mínimos que garantam condições de vida adequadas e atenuar as diferenças salariais dentro da União. Isso justifica o teor do princípio relativo aos salários no Pilar Europeu dos Direitos Sociais. No cumprimento deste princípio, em Outubro de 2020 a Comissão apresentou uma proposta de Directiva [COM(2020)682 final] relativa a salários mínimos adequados. Na sequência de um longo e controverso processo legislativo, foi adoptada a Directiva (UE) 2022/2041 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de Outubro de 2022, relativa a salários mínimos adequados na União Europeia, sendo dados aos países dois anos para a sua transposição para a legislação nacional.

Segundo esta Directiva, os países que tenham políticas de salário mínimo devem seguir procedimentos de fixação e atualização que respeitem critérios que contribuam para a sua adequação, com o objetivo de alcançar um nível de vida digno e diminuir a pobreza no trabalho, utilizando, como referência para os salários mínimos adequados, valores indicativos habitualmente utilizados a nível internacional, tais como 60% do salário mediano bruto e 50% do salário médio bruto, e/ou valores de referência indicativos utilizados a nível nacional.

Esta Directiva merece-nos alguns comentários quanto ao seu âmbito e quanto à sua eficácia. Em primeiro lugar, afasta-se do objectivo de alcançar valores de salário digno, no sentido de living wage, por ser focado na pobreza do trabalho (assegurar vida digna para os trabalhadores) e não para a pobreza dos agregados familiares (a lógica do living wage, presente no principio relativo aos salários no Pilar Europeu dos Direitos Sociais, que é assegurar vida digna para os trabalhadores e suas famílias). Em segundo lugar, esta Directiva não obriga os países a terem uma política de salário mínimo. Sabemos que são 22 (em 27) os Estados-Membros que têm políticas de salário mínimo. A Alemanha criou esta política apenas em 2015. Mas a Dinamarca, a Itália, a Áustria, a Finlândia e a Suécia continuam a não ter salários mínimos fixados por lei, sendo os valores salariais mínimos fixados por contratação colectiva. Embora a Directiva tenha tido uma boa aceitação pela generalidade dos países, quer dos governos quer dos parceiros sociais, tal não aconteceu com a Suécia e com a Dinamarca. A Suécia manifestou forte oposição a esta Directiva. Trata-se de um país com uma elevada cobertura de negociação colectiva (cerca de 90%) e com uma elevada densidade sindical (cerca de 70% dos trabalhadores estão sindicalizados), pelo que, não tendo este país legislação sobre salário mínimo, esta Directiva não se lhe aplica mas, por outro lado, o objectivo da Directiva (alcançar salários mínimos adequados) tem condições para ser conseguido pela via da contratação colectiva. Por isso, é de admitir que esta Directiva produza poucos efeitos nos países onde não exista legislação de salário mínimo nacional. Em terceiro lugar, em países como Portugal, um país cujo salário mínimo cumpre o valor do índice de Kaitz recomendado (salário mínimo nacional como 50% do salário médio bruto, ou 60% do salário mediano bruto), estará dependente do poder político uma orientação no sentido de utilizar valores de referência nacional que permitam garantir, aos trabalhadores, um padrão de vida digna, estabelecidos numa base consensual na sociedade. Em quarto lugar, há espaço político para ir além do âmbito desta Directiva e respeitar o princípio dos salários do Pilar Europeu dos Direitos Sociais, direccionando a política no sentido de assegurar dignidade de vida aos trabalhadores e suas famílias. Esta é a lógica das políticas de salário digno (living wage), tal como vem sendo discutida recentemente pela OIT, que vem sendo experimentada em vários países (europeus e fora da Europa), e ser verdadeiramente o espírito do Pilar Europeu dos Direitos Sociais.

Estas considerações têm duas implicações importantes para o desenho das políticas públicas em Portugal. Por um lado, a necessidade de identificar o significado político do conceito de “nível de vida decente” (ou nível de vida que assegure a dignidade humana), e a quantificação do seu valor (neste país e neste tempo), numa base amplamente transparente e consensual na sociedade. Para além de trabalhos de índole académica (Pereirinha, 2020), não se conhecem iniciativas dos decisores políticos de fazer estudos desta natureza. Por outro lado, tem de se encarar esta política de salário digno com um âmbito que ultrapasse a mera política salarial, devendo ser combinada com a tributação directa e as transferências familiares, compensadoras de despesas familiares acrescidas pela dimensão (essencialmente o número de filhos) (Pereirinha, 2022). Consistiria, antes, em centrar a política de salário digno no trabalhador assalariado, mas encarando este trabalhador numa tripla dimensão: enquanto trabalhador por conta de outrém (ligado à empresa que lhe paga um valor do salário fixado como mínimo), enquanto membro do agregado familiar (cujo nível de rendimento deve assegurar um valor que assegure um nível de vida digna a todos os membros desse agregado), e como cidadão, com obrigações fiscais (imposto sobre o rendimento) e como potencial titular de direito a transferências sociais (monetárias, como transferências familiares, ou em género, como creches/infantários, lares/centros de dia, escolaridade, serviços de saúde, etc).

Numa análise feita recentemente sobre a necessidade e viabilidade de uma política de salário digno em Portugal (Pereirinha & Pereira, 2023), foi estimado o valor do rendimento adequado que permita a um agregado familiar ter uma vida digna em Portugal, considerando várias configurações familiares, tendo sido usada uma abordagem que combina o método consensual de construção de orçamentos familiares (reflectindo, através de grupos de discussão, o que a população pensa sobre as necessidades familiares) com a abordagem normativa de peritos (que reflecte o que a ciência nos diz sobre as necessidades familiares). Isto permite calcular o grau de adequação do salário mínimo nacional (SMN) relacionando o valor do rendimento salarial recebido no agregado familiar (que, por hipótese, se encontra ao nível do SMN) e o valor do rendimento adequado para esse agregado, considerando várias configurações familiares. Para um individuo vivendo só, o grau de adequação é 79%, mas para um casal sem filhos é 95%, portanto perto do adequado, e o grau de adequação do SMN, para um casal, vai diminuindo com o número de filhos: é de 70% para um casal com um filho e 62% para um casal com dois filhos. No caso de uma família monoparental com um filho, o grau de adequação é de apenas 48%. Estas diferenças justificam a nossa atenção sobre o papel que a política fiscal (impostos directos e transferências familiares) poderão ter, combinados com a política salarial, para se ter uma política de salário digno que respeite os diretos consagrados no Pilar Europeu dos Direitos Sociais.

Finalmente, há que realçar o importante papel da negociação salarial, feita em contexto de contratação colectiva, que deve ser fortalecido. Num país como Portugal, deve ser no contexto da negociação colectiva que desejavelmente devem ser discutidas tabelas salariais que reflitam posições concertadas entre os parceiros sociais relativamente a distribuições salariais justas. A proximidade do salário mínimo nacional do salário médio e mediano dá relevância especial a esta negociação salarial.

Referências:
- Pereirinha, J. (coord.) (2020) Rendimento Adequado em Portugal: um estudo sobre o rendimento suficiente para viver com dignidade em Portugal. Coimbra: Almedina. ISBN: 978-972-40-8371-1.
- Pereirinha, J. A. (2022). Nota sobre o Salário Digno: uma reflexão sobre a sociedade portuguesa. In Rodrigues, C.F.R. et al. (coord.) (2022). O Legado de Manuela Silva. Coimbra: Almedina, pp. 517-539.
- Pereirinha, J. A. & Pereira, E. (2023). Living Wages in Portugal: in search of dignity in a polarised labour market. Social Policy and Administration. DOI: 10.1111/spol. 12887.

José António Pereirinha

(1951)
Professor Catedrático Aposentado do ISEG, Universidade de Lisboa

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