Testemunhos da História – “Mulheres do Couço – Obreiras da Liberdade”
Couço, vila pertencente ao Concelho de Coruche, confinando com os Concelhos de Mora, Montemor-o-Novo e Ponte de Sor, localizada numa zona de transição entre o Ribatejo e o Alentejo, é pólo marcante de movimentações rurais que aconteceram e fizeram história, durante o passado século, em Portugal. O período que medeia entre o término da década de 50 e início da década de 60, são para além de outros, anos densos de movimentações conflituais, que possuem como pano de fundo o acesso à posse da terra, fazendo sobressair uma cultura resistente, alicerçada na classe e geradora de condições propícias à insatisfação e à reação.
Em 1940, os latifúndios distribuíam-se por 15 proprietários unidos por laços familiares, habitando na freguesia apenas 5.
A estrutura da propriedade, a dureza das condições de vida, a grande disparidade económica provocando grandes assimetrias sociais, o emprego sazonal, são por si só – sem haver necessidade de recorrer a outros -, fatores que explicam o desencadear de movimentos rurais de luta e resistência em determinados momentos.
Nesses processos de luta há que salientar e dar relevo ao papel desempenhado pelas mulheres, detentoras de uma personalidade acrescida e perpetuadoras de uma memória perseguida que confere sentido à existência coletiva.
As mulheres do Couço na década de 50, viviam um quotidiano cheio de incertezas a todos os níveis. Pertencentes a uma classe de trabalhadores rurais que nada possuía para além da força do seu trabalho, sentiam na pele a dureza das condições de vida do seu nível social.
Era comum a escassez de necessidades prementes, como alimentos, vestuário e calçado. Não faltam histórias recordadas com amargura e tremor de voz em que uma sardinha era dividida pela família, só se experimentavam sapatos quando se era moçoila, ou ainda, as da roupa que se lavava à noite para se vestir no dia seguinte pois era a única que existia.
Desde muito cedo eram habituadas a executar tarefas domésticas e a cuidar dos irmãos mais novos.
Era-lhes vedado o acesso à instrução, pois o seu trabalho era indispensável na família. Algumas mulheres frequentavam a instrução primária, mas só até à 3ª classe.
Ilustra Maria Rosa Viseu: «Saí da Escola com dez anos, pois tive de ir fazer pelos meus irmãos e pronto, só fiz a terceira classe.»
No início dos anos 40, o Partido Comunista reorganizou-se e fortaleceu-se. Contribuiu para isso a indignação causada pelas prisões de um sem número de militantes que foram enviados para o Tarrafal e para Angra do Heroísmo.
As ideologias do Partido vieram ao encontro dos anseios de quem queria ver o seu dia-a-dia diferente. Através de uma linguagem compreensível e de uma prática coerente e determinada, calaram bem fundo no coração das assalariadas do meio Coucense e floresceram no seu seio as condições propiciadoras para o efeito.
As mulheres, remetidas ao universo doméstico e ao cuidar dos filhos, tinham como missão o propagar da palavra, o vigiar a rua, e ainda o assegurar as refeições para os funcionários do partido que chegassem, na calada da noite, para efetuarem uma reunião, para além de providenciarem a casa que nunca era a mesma, onde essa reunião se efetuaria.
Recorda Maria Rosa Viseu: «Eu guardava a imprensa que tinha de distribuir no arregaço. De manhã, íamos para o trabalho, ainda o sol não tinha nascido, mal se via, encontrávamos já alguma imprensa espalhada na beira da estrada. As mulheres apanhavam os papéis e perguntavam quem teria espalhado aqueles papéis, ninguém sabia. Eu ficava para trás, fingindo que precisava de ir urinar, abaixava-me, tirava a minha imprensa do arregaço, molhava-a nas ervas e aparecia com ela na mão ao pé das outras e perguntava-lhes: – Então, apanharam desta qualidade? Não, ninguém tinha apanhado. Guardávamos tudo para ler na hora de almoço que era às 10h, não se podia ler logo porque não se via.»
A praça de jorna era o local onde, ao Domingo, homens e mulheres se concentravam para que os manajeiros os contratassem para trabalhar.
Vendia-se a força braçal, a força do trabalho que era a única riqueza dos pobres. Mas, nos momentos de lazer, as praças de jorna também eram locais privilegiados de convívio entre jovens, de namoros, de informações que se obtinham, etc. As raparigas vestiam os seus trajes domingueiros, juntavam-se em grupos e passeavam, de braço dado, pela rua principal, entre a praça de jorna – hoje Praça da Liberdade – e o largo principal da terra – hoje Largo 25 de Abril.
Durante a década de 40, organizaram-se comissões de praça que tinham como missão manter os trabalhadores em bloco, impondo um salário comum. Ficavam fora desta união os trabalhadores de fora da povoação e as mulheres.
Como nos diz Maria Galveias: «Na praça de jorna juntavam-se homens e mulheres separados por grupos, mulheres para um lado e homens para outro. As mulheres iam mondar arroz. Os homens iam para a cortiça. A nossa luta começava pela solidariedade para com as mulheres mais velhas. Os manajeiros só queriam levar os ranchos com gente nova, mas nós não deixávamos, cada rancho tinha de levar algumas mulheres mais velhas. Se não fosse assim, elas nunca tinham trabalho.»
Na década de 50 surgiram as primeiras comissões femininas de praça. Estas comissões exigiram aumentos salariais para as mulheres, pois estas trabalhavam por metade do salário masculino.
Maria Rosa Viseu invoca o passado: «Durante o Inverno não havia trabalho. Às vezes as mulheres iam arrancar mato, mas não em todos os anos. Apanhavam a verga e vendiam-na. Iam ao rabisco da cortiça. Ficavam longos períodos sem trabalhar, sem ganharem qualquer vencimento. Em 1958, as mulheres abriam as valas do canal de irrigação do Vale do Sorraia, valas de 1,50 m por 70 cm de largo para pôr manilhas, com uma enxada e uma pá, de empreitada. Ceifavam, mondavam, cavavam, plantavam o arroz. Fevereiro e Março, trabalhavam nas covas a fazer os combros do arroz, Abril era a rebaixa, a enxordar a água dos canteiros do arroz. Maio, em meados, faziam-se as primeiras mondas, o primeiro gramião [erva daninha]. Plantar arroz é um trabalho muito custoso pois é feito de arrecuo. Custa tanto, ái custa tanto, atascadas até aos joelhos!»
Os anos 40 ficaram marcados na vida das populações rurais essenciais no sul, pelas carências de abastecimento de géneros alimentares. São recordados hoje como Anos de grande fome.
As mulheres iam para as bichas para apanhar alimentos, durante a 2ª guerra mundial.
Relembra Maria Rosa Viseu: «Eu também ia para a bicha, sobretudo nas férias do Verão, a minha mãe já estava muito carregada, estava grávida, não conseguia estar muito tempo de pé. Uma vez, estava na bicha do pão e consegui um pão. Fui para casa toda contente, mas como a fome era muita e o caminho era longe, fui comendo bocadinhos de pão; cheguei a casa só com metade do pão, apanhei uma sova da minha mãe, mas ela disse-me: – O pão é para o pai, o pai anda a trabalhar.»
Em 1958 travam-se grandes lutas reivindicativas por melhores condições de vida. Essas lutas fazem-se através de exposições, dirigidas à Junta Central das Casas do Povo, a deputados, aos Presidentes de Câmara, assinadas por trabalhadores (homens e mulheres) assalariados.
Em 1959, por iniciativa do P.C.P., são recolhidas, no Couço, 200 assinaturas a exigirem a demissão de Salazar, que foram enviadas para o Governo Civil de Santarém.
Eram reivindicados:
- jornas de 60$00 para os homens
- jornas de 40$00 para as mulheres
- acabar com as empreitadas
- 8 horas de trabalho
- Estabelecimento de contratos de trabalho
- Direito a assistência médica
- Trabalho efetivo
Maria Rosa conta o seguinte: «Fomos muitos, centenas, homens e mulheres até à Casa do Povo, entregar ao Sr. Leitão, as nossas reivindicações, sempre com a G.N.R. a seguir-nos.»
De olhar vago, perdido no tempo, recorda Maria Rosa Viseu: «Trabalhávamos de sol a sol. Saíamos de casa de noite, entrávamos em casa de noite. Éramos bichos da noite! Outras vezes trabalhávamos de empreitada. Chegávamos ao trabalho, os manajeiros talhavam as empreitadas, quando as acabávamos íamos para casa. O patrão para quem nós trabalhávamos, não deixava o manajeiro talhar as empreitadas, era ele que as talhava. Talhava-as muito grandes que nós quase nunca as acabávamos. Era ele que ia sempre despegar-nos do trabalho. Começámos a ver que o patrão nos queria enganar. Nenhuma de nós tinha relógio. Começámos a guiar-nos pela camioneta da carreira, que passava sempre às 5h da tarde, era branca, toda branca, então para ninguém saber, baptizámos a camioneta de “noiva”. Um dia, pensámos que não podíamos trabalhar mais tempo. Uma das mulheres sobe ao cabeço, vê passar a camioneta e diz para as companheiras: – A “noiva” já lá vai. Uma delas, mais idosa, pergunta ao manajeiro: -Então não nos despega? Olhe que já são horas! – Não tenho ordens para a despegar! – Ah, não? Pois então despegamo-“se” a gente. Ela salta de dentro do canteiro do arroz para o “combro” [parede de suporte de terreno em socalco] e 70 mulheres fizeram o mesmo e viemos para casa. No outro dia, ao nascer do sol, lá estava o patrão e nós negociámos com ele. Se não nos viesse despegar a horas, não trabalhávamos mais. O arroz estava cravadinho de erva. O patrão, como precisava da gente, concordou. Foi sempre assim, tínhamos de lutar por tudo, até para ter a cozinha à sombra. O patrão queria que a cozinha ficasse mais perto do trabalho, para não perdermos tempo no caminho. Não se importava que comêssemos ao sol ou à sombra. Sofremos muito!»
A Luta daria os seus frutos em Maio de 1962, quando se alcançaram as 8h de trabalho.
Vivendo o dia a dia sob égide de um regime político perseguidor e coercivo, era sem dúvida uma temeridade constituir listas que se opusessem ao poder instituído. Se, por um lado, era dar a conhecer ao regime nomes e factos, por outro, era uma oportunidade única de se propagarem ideias à luz da legalidade.
Nas eleições de 1958 deveriam estar inscritas nos cadernos eleitorais apenas as mulheres com mais de 21 anos mas que tivessem o curso dos Liceus, do Magistério, de Belas Artes, do Conservatório ou dos Institutos e Comerciais – quaisquer outras habilitações não apareciam referenciadas nos placards informadores das condições exigidas para se votar ou para se recensear.
As viúvas, solteiras ou divorciadas judicialmente, que fossem autónomas financeiramente e soubessem ler e escrever ou, caso fossem iletradas, pagassem contribuições no valor de 100$00, também poderiam aceder ao voto.
Em relação às casadas, só poderiam recensear-se e votar aquelas que soubessem ler e escrever e ainda pagassem uma contribuição predial não inferior a 200$00.
No Couço, a população conseguiu a proeza de organizar uma sessão pública de esclarecimento. O candidato oposicionista era Arlindo Vicente, que posteriormente desistiu da candidatura a favor de Humberto Delgado.
Aqui como noutras iniciativas, as mulheres tiveram um papel fundamental. O transmitir da mensagem, o apoiar logisticamente toda esta conjuntura, não seria possível sem elas; ultrapassados os pormenores burocráticos – que foram muitos -, a sessão pública de propaganda da candidatura do General Humberto Delgado ficou marcada para o último dia da campanha eleitoral, 6 de Junho de 1958, sexta-feira.
Os oradores eram cinco: – Lília da Fonseca, Dr. Orlando Gonçalves, Carlos Augusto Pinhão Correia, José Faustino Rodrigues Pinhão e Helder Machoqueiro.
Com um brilho de entusiasmo a bailar nos olhos diz Mª Rosa: «Eu estava lá, bem no meio, para ver e ouvir tudo, lembro-me bem da Lília da Fonseca, por ser mulher. Falaram de muitas coisas, da vida dura dos camponeses, que devíamos pedir mais salário, melhores condições de trabalho, que devíamos lutar por um governo que olhasse mais para os trabalhadores…».
Chegou o dia da votação, que ficou marcado na memória de muita gente: as mulheres compraram vestidos novos ou vestiram o seu fato domingueiro como se fossem para a festa mais importante das suas vidas.
A comissão eleitoral de apoio à candidatura do General Humberto Delgado exigira também estar presente na contagem dos votos. No Couço, os votos foram contados de porta aberta, pois as mulheres e restante população não saíram da rua.
As eleições ganharam-se no Couço a favor de Delgado. A nível nacional Humberto Delgado teve uma votação de 23%.
Após a divulgação dos resultados eleitorais a favor de Humberto Delgado, o Couço, junto às mesas de voto, rejubilou de forma ímpar; porém, a desilusão viria com a vitória, a nível nacional, do candidato do regime, o almirante Américo Tomás.
Instaurou-se no espírito dos Coucenses a convicção de que as eleições tinham sido uma fraude. De imediato surgiram de boca em boca outras formas de luta: A gente devia fazer uma greve! Uma greve… Uma greve de protesto!
No jornal O Camponês pode ler-se o seguinte: «As mulheres em grupos, cheias de fome, com os filhos nos braços iam de rancho e de herdade a pedir aos trabalhadores que se declarassem em greve e no caso de hesitações tiravam-lhes as ferramentas das mãos… No posto, homens e mulheres são duramente espancados pelo crime de não se quererem deixar matar à fome.» (Junho de 1958)
Logo nessa noite começaram as prisões.
Olímpia Brás recorda essa época tremenda: «Não podiam juntar-se três mulheres na rua, no Couço. Se estávamos na rua, já estavam pessoas a vigiar a gente. Parece mentira mas é verdade. Levávamos um cesto na mão, o cesto era revistado antes de chegarmos a casa, pois já tinham comunicado com a Guarda. Não podíamos fazer uma pescaria em conjunto numa ribeira, era como se fosse uma prisão, o Couço. Vigiavam a gente de dia e de noite. De noite, estava deitada, batiam-me à porta para ver se estava em casa.
Nessa altura o meu marido estava preso, eu ainda não tinha sido presa. Era um verdadeiro inferno, no Couço, com as mulheres, principalmente com as mulheres. Naquela fase de 58 foi horrível.»
As Mulheres do Couço, operárias agrícolas sempre na primeira linha de todas as lutas, inconformadas com as injustiças com que se deparavam diariamente, ombreavam com os homens.
A vida era dura, mas mais dura era para as mulheres.
Trabalhavam de sol a sol, castigando o corpo nos trabalhos agrícolas, tinham a seu cargo as tarefas domésticas e o cuidar dos filhos.
Quando os maridos eram presos, tomavam elas o seu lugar na luta, desempenhando as tarefas por eles executadas. Ficavam sozinhas, anos a fio, criando os filhos, desempenhando os papéis de pai e mãe em simultâneo.
De entre muitas, 5 delas se destacaram por serem as primeiras a conhecer a tortura, moral e física tal como os homens, facto que não era comum e que se generalizou. Foram elas:
Maria da Conceição Figueiredo, padeira, cujo marido foi preso na mesma data, sofreu 66 horas de tortura do sono, saiu da prisão em 6 de setembro de 1962.
Maria Custódia Chibante, comerciante, presa em 27 de Abril de 1962, torturada durante 98h, com tortura de sono durante 75h. Libertada em 11 de Outubro do mesmo ano.
Maria Galveias, operária agrícola, tinha o marido preso desde 1960. Sujeita a 11 dias e 11 noites de espancamentos, tortura de sono sem direito a qualquer tipo de higiene pessoal. Libertada em 6 de setembro 1962.
Maria Madalena Henrique Castanhas, operária agrícola. O marido estava preso desde 1960, não o podendo visitar pois não eram casados. Casam-se na prisão de Caxias. Sofreu a tortura da privação do sono e espancamentos durante 66 horas.
Olímpia Brás, peixeira, foi presa em 27 de Abril de 1962, onde esteve durante seis meses, sendo sujeita a todas as formas de tortura que lhe arruinaram a saúde enquanto viveu.
Maria Rosa Viseu, operária agrícola, presa em 19 de Janeiro de 1961, foi alvo de torturas diversas durante os 6 meses de prisão.
Tive o privilégio de conhecê-las a todas pessoalmente, estabelecendo uma proximidade e amizade com Maria Rosa Viseu, Maria Galveias e Olímpia Brás, cujos testemunhos ouvi e que estão patentes neste breve texto.
Após o 25 de Abril de 1974, com a chegada da Liberdade e das múltiplas conquistas que este Abril nos trouxe, as Mulheres do Couço estiveram na vanguarda de uma das mais importantes conquistas de Abril para os trabalhadores agrícolas: A Reforma Agrária.
Com a Reforma Agrária, propiciadora de trabalho permanente ao longo de todo o ano, foi possível a concretização de dois sonhos fundamentais que eram a aquisição de casa própria e o acesso ao ensino Superior para os seus filhos, de modo a conseguirem uma vida diferente da que elas tinham tido.
Hoje, o que anseiam, neste mundo conturbado, após 50 Anos de Abril de 1974, é que as novas gerações nunca vivam em regimes ditatoriais.
Cabe-nos a nós a passagem do testemunho destas vivências para que estas memórias se mantenham vivas.
O Futuro tem de manter, preservar o vento da LIBERDADE!
Nº 1768 - Outono 2024
