NO CENTENÁRIO DE BERNARDO SANTARENO
“Eles são os senhores e nós os escravos, eles têm tudo e nós nada”, In “O Duelo” de Bernardo Santareno
“É no homem, nas suas urgentes e sangrentas necessidades, que está a raiz da actual criação dramática. O homem de teatro necessita de público de uma maneira carnal, pois o teatro é, em si mesmo, a expressão artística mais carnal de todas.”
Foi este o grande tema do Colóquio de Abertura das Comemorações do Centenário de Bernardo Santareno, no passado dia 18 de Janeiro de 2020, na Fundação Calouste Gulbenkian.
Dentro desse espírito, a nossa querida e saudosa Fernanda Lapa, com a sua profunda generosidade, lançava o desafio a pessoas e instituições para falar de Santareno e da sua obra, para pensar e refletir esse percurso exemplar do maior dramaturgo português do século XX, que tem sido injustamente esquecido.
Obrigado, Fernanda, mulher de causas, exemplo de artista e de cidadã! Aceitámos o teu convite para a luta, desbravar caminhos. Aqui estamos a dizer de nossa justiça, no cumprimento do que nos foi proposto. Alargou-se a participação, e, apesar de todos os pesares, contraventos e marés desta pandemia que nos assola com violência, continuamos a fazer este percurso que iniciaste, lado a lado com as mais variadas instituições e pessoas deste nosso país, impelidas pelo sonho de Santareno.
Falar de Santareno é falar da luta pela liberdade, contra todas as formas de opressão, social, económica, racial, cultural, sexual, pela defesa do direito à diferença.
Falar de Santareno é falar de uma personalidade profundamente humanista e de elevada cultura, que foi sempre perseguida e punida pela censura.
Comemorar Santareno é um acto de homenagem, sim, mas é, acima de tudo, um acto de dignidade e um acto de justiça.
Comemorar o Centenário de Bernardo Santareno implica muito mais, traz-nos exigências culturais e intelectuais:
- Que as novas gerações voltem a conhecer, pelo regresso da sua obra às escolas, afastados que foram, do Plano Nacional de Leitura, “Nos Mares do Fim do Mundo” e do programa do 12º ano, “O Judeu”;
- Que os Teatros Nacionais mantenham no seu repertório as suas peças, escritas entre 1957 e 1980, ano da sua morte. É inadmissível e anti cultura que, no ano do seu Centenário, não esteja em cartaz nenhuma dessas peças, de “A Promessa” a “O Punho”;
- Que a sua obra seja reeditada.
A sua obra nasceu para o palco e é no palco que deve cumprir-se, no encontro com o público. Como sublinha Luiz Francisco Rebello, seu companheiro de muitas lutas contra a censura e pela dignificação do teatro: “Há um relativo silêncio sobre a obra do Bernardo – e o Bernardo era uma vocação irreprimível de dramaturgo, todo o teatro que fez exigia o palco. Tão original, aquilo era ele e ele exprimia-se inteiramente naquele teatro.”
São estes os grandes desígnios da comemoração deste Centenário, que, considerando o quadro de pandemia, deve continuar em 2021.
As questões colocadas na obra de Santareno mantêm toda a invulgar actualidade dos universos abordados. São questões humanas e transversais, onde o homem bebe o cálice de todas as suas ignomínias, coloca-se entre o bem e o mal, entre céu e o inferno. Elas atravessam todas as suas peças, entre as quais: “A Promessa”, de 1957, a sua estreia como dramaturgo, uma história da tensão de um jovem casal vítima de uma promessa de castidade, que naturalmente levou ao seu incumprimento, tendo nascido sob o signo de uma forte polémica; “O Crime de Aldeia Velha”, de 1959, a histórica verídica da tragédia vivida em 1936, em Soalhães/Marco de Canavezes, onde a jovem e bonita Arminda de Jesus, foi queimada; “O Pecado de João Agonia”, a homossexualidade vítima de um crime no seio familiar; “O Duelo”, a luta de classes entre os trabalhadores e os senhores da terra, ambas de 1961; “O Judeu”, de 1966, peça de viragem épica do seu discurso, peça nuclear e central na sua obra, hino de amor à liberdade, ao teatro e aos actores, que tanto amava, a história trazida para os nossos dias, como uma crítica ao regime de pensamento inquisitorial que nos dominava; “O Inferno”, de 1967, a história real da perseguição aos judeus, negros e homossexuais.
Por aqui, por estas e outras peças de Santareno passam todas as marcas, paradigmas, máscaras e fantasmas que caracterizam a sua obra e a amplificam.
“Um absoluto pioneirismo em temáticas como a marginalidade e a homossexualidade. “A grande novidade eram as problemáticas que ele introduzia: o ataque às superstições, a violência dos conflitos ideológicos, mas também sexuais” como refere Maria Helena Serôdio, investigadora do Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Quem é, afinal, Bernardo Santareno?
Bernardo Santareno nascido em 1954 é o pseudónimo de António Martinho do Rosário, seu nome de baptismo, que nasceu na cidade de Santarém, a 19 de Novembro de 1920, filho de Maria Ventura Lavareda e António Martinho do Rosário, com ligações profundas ao lugar do Espinheiro, concelho de Alcanena, terra de seu pai e avós, e cujo primeiro padroeiro foi São Bernardo.
Depois de ter frequentado os Preparatórios de Medicina, em Lisboa, concluiu o curso de médico de saúde pública, em 1950, na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Especializou-se em psicologia.
Bernardo Santareno nasceu quando António Martinho do Rosário decidiu publicar o seu 1º livro de poesia, “Morte na Raiz”, em 1954, a que se seguiram, “Romances do Mar”, em 1955, e “Os Olhos da Víbora”, em 1957.
Fez duas viagens à pesca do bacalhau, em 1957 e 1958, como médico embarcado, nos navios “David Melgueiro”, “Senhora do Mar” e no navio hospital “Gil Eannes”, por mares da Terra Nova e da Gronelândia. Dessa riquíssima experiência humana em situação limite, escreve a peça “O Lugre” e o livro de viagens, “Nos Mares do Fim do Mundo”, uma admirável originalidade na sua obra.
Professor do Conservatório Nacional, Professor de Psicologia no Trabalho, no Instituto de Orientação Profissional, onde, numa entrevista conheceu Fernanda Lapa, o início de uma amizade e uma cumplicidade para a vida. Desempenhou acção de alto mérito na Fundação Raquel e Martin Sain, na recuperação de cegos e amblíopes.
Ele próprio assim se define num poema de “Os Olhos da Víbora”:
DESENCONTRO
Jograis e trovadores,
vagabundos de todos os tempos,
são os meus parentes.
Não me peçam construções,
nem actos úteis de momento:
Eu sou um adolescente
e nunca serei adulto.
Não me peçam sobriedade,
nem gestos medidos, cinzentos:
Eu sou um arlequim
e visto-me de encarnado,
como as aves no firmamento
e como as flores na terra!
Não me exijam palavra certa,
nem honra… P’ra quê ilusões?
Nem santo, nem herói, nem mestre:
Eu sou um poeta
E só posso dar canções!
Concluo com as últimas palavras de um poema de Ary dos Santos, em “Português, escritor, 45 anos de idade”:
MUITO OBRIGADO BERNARDO
SANTARÉM DE PORTUGAL!

Vicente Batalha
(1941)
Actor, encenador, programador cultural (ex-Presidente do Instituto Bernardo Santareno)
Nº 1753 - Inverno 2020