Nota de Leitura – “Crónicas de um insubmisso”

Publicado no passado mês de Março, Crónicas de um insubmisso é um livro de Manuel Duran Clemente, coronel e capitão de Abril, com prefácio de Carlos Matos Gomes e posfácio de Maria Dulce Simões que também coordenou a edição.

“Para que a memória e o Sonho de Abril não se perca”, eis a dedicatória do autor aos seus filhos e netos e que expressa bem o propósito deste livro. O sonho da liberdade, da igualdade e da fraternidade, ontem, hoje e amanhã. Sonho que também é acção, como escreveu o poeta José Gomes Ferreira.

Todavia, para o autor, a acção não se fica pelo sonho, mas transforma-se em projeto, com valores e princípios, com avanços e recuos, com a esperança, aquela que não fica à espera, de “um país melhor e mais justo, a ser construído pela acção colectiva e pela inteligência, trabalho e luta dos portugueses.”

Neste sonho e nesta acção, a memória tem um lugar imprescindível, porque a leitura do passado pode ajudar a servir o presente e futuro, ou como diz o autor “as lutas pela memória serão sempre lutas pelo futuro”.

Crónicas de um insubmisso é um livro de memórias que demonstra a importância das  circunstâncias, vivências e convivências e do seu efeito ressonante no pensamento e ação do autor e, naturalmente, na sua escrita ou, como diria a poetisa Sophia de Mello Breyner, que o faz ser no estar e o faz estar no ser.

Neste livro, as crónicas vão desde as vivências da infância e juventude que forjaram a personalidade do autor, com “escudos de temperança e de bonança”, até à inquietação sobre os tempos atuais, passando, naturalmente, pelo processo que desencadeou o 25 de abril e os meses seguintes, onde o autor foi um protagonista ativo.

Além do preâmbulo e de anexos documentais, o autor apresenta um conjunto de textos, uns novos, outros versões atualizadas de textos anteriores, arrumados em cinco capítulos.

  1. Memórias e percursos, dos lugares onde o autor se fez, com relevo para a sua Almada natal, a vila de Penamacor, onde iniciou a construção dos seus “alicerces” e o Instituto dos Pupilos do Exército, marca importante na sua formação humana.
  2. Caminhos de Abril, em que analisa a origem e evolução do Movimento dos Capitães, na Guiné, embrião do Movimento das Forças Armadas, bem como do papel da guerra colonial, das lutas operárias e estudantis e da resistência antifascista na consciencialização dos militares envolvidos.
  3. Da Revolução à Contra-Revolução, onde desmonta, com factos e documentos, a trama urdida por civis e militares, contra “os 500 dias do período revolucionário” e que culminou com os acontecimentos político-militares de 25 de Novembro de 1975. Destaque para o tributo aos militares “injustiçados” que foram alvo de calúnias e de perseguições, nomeadamente a Costa Martins e a Varela Gomes.
  4. Tempos de “normalização democrática, com uma sentida homenagem a Vasco Gonçalves, o “Companheiro Vasco”, primeiro-ministro nos II, III, IV e V Governos Provisórios, entre Setembro de 1974 e Agosto de 1975. Destaque, ainda, para a experiência do Poder Local Democrático, onde o autor foi parte interveniente, e para a criação e actividade de diversas associações, “instrumentos colectivos ou institucionais para dignificar e preservar a memória e a história da Revolução e da resistência antifascista”.
  5. Na sociedade do espectáculo, em que o autor se debruça sobre os tempos atuais. Tempos de inquietação pela ascensão e branqueamento do fascismo. Tempos de manipulação, normatividade e submissão a crenças baseadas no pensamento dominante neoliberal. Mas, também, tempos de insubmissão e resistência, com a penalização e o ostracismo dos que assim pensam e agem. Tendo como referência o III Congresso da Oposição Democrática, de Aveiro, em 1973, o autor conclui o seu livro com um apelo à unidade dos democratas e antifascistas.

Crónicas de um insubmisso, um livro que reflecte o posicionamento consciente e ativo de Manuel Duran Clemente sobre a sociedade em que vivemos e os caminhos percorridos e a percorrer coletivamente. Um livro em que a poesia tem uma presença destacada, como epígrafe da maioria dos textos, pois para o autor, a poesia “é a fala do sentimento vulgo do coração”, que sempre tem acompanhado a sua escrita. Nesse sentido, rematamos esta nota de leitura com o poema Consciência, de Mário Dionísio, um poeta também insubmisso.

Cada minuto uma questão

Mil fronteiras que venço ou que não venço

Mas nenhuma de mais dura e duradoura combustão: ser o que penso.

José Alberto Pitacas

(1958)
Economista; Dirigente do CIRIEC Internacional e do CIRIEC Portugal

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