TESTEMUNHOS DE ABRIL – “25 Abril no Exilio”

A expressão 25 de Abril é daquelas que significa muito mais do que o seu sentido literal. Designa um ano, 1974; um lugar, Portugal; o dia “inteiro e limpo” de Sophia, “o dia dos prodígios” de Lídia Jorge, a libertação para os presos políticos, o anúncio do regresso para os exilados, o dia desencadeador de todos os possíveis para quase todos…

No dia 25 de Abril de 1974, eu estava em Genebra a acompanhar o exílio de José Medeiros Ferreira desde 1968. Em sentido estrito não posso dizer que fosse exilada: podia, queria e devia vir a Portugal sempre que possível, visitar o meu irmão mais velho, Fernando Brederode Santos, a cumprir prisão no forte de Peniche e a apoiar os meus pais que, de súbito, se viam sem os três filhos: o Fernando, preso; o Nuno a cumprir o serviço militar em África; e eu no estrangeiro. Situação bem ilustrativa do beco em que a ditadura metera Portugal e dos dilemas colocados aos então designados por “mancebos”. No caso da pequena minoria estudantil que então frequentava a Universidade, os rapazes, quando terminavam o curso ou, mais cedo, como punição de maus resultados académicos, de envolvimento em atividades políticas clandestinas ou ainda de certas formas de participação no movimento associativo, eram chamados a apresentarem-se à recruta para serem depois enviados para a guerra colonial. Como dizia o José, não havia boa resposta. Todas as soluções eram irreversíveis e más: ou iam combater numa guerra que consideravam injusta, ou iam presos, ou passavam à clandestinidade no interior (solução mais defendida pelo Partido Comunista Português) ou se exilavam partindo “a salto” para o estrangeiro, um estrangeiro de incerteza quanto ao modo de vida e à data de regresso a Portugal.

José Medeiros Ferreira relata, nas suas “Memórias Anotadas”, como enfrentou essa difícil decisão. Tinha sido dirigente estudantil na crise de 62, preso em Novembro de 1962, “por atividades subversivas contra a segurança do Estado” (na realidade por ter sido eleito Secretário-Geral da RIA/Reunião Inter-Associações para 62-63), no Aljube (onde fez amigos para a vida como Nikias Skapinakis e Joaquim Pinto de Andrade que seria o primeiro a telefonar-lhe no dia 25 Abril de 1974!), candidato nas listas da Oposição Democrática na campanha eleitoral de 1965 e, ainda em 65, expulso por três anos de todas as universidades do país.

Enquanto candidato da Oposição Democrática, assina um Manifesto ao País em que se defende que o problema ultramarino não pode ter a solução militar em curso e sim “uma solução política com base no princípio da autodeterminação…”.

É nesse ano de 65, depois da expulsão de todas as Universidades do país, que lhe terá surgido pela primeira vez a ideia do exílio. Percebe que, como era uso naquele tempo, enquanto “politicamente marcado”, a carreira docente, liceal ou universitária, ser-lhe-ia vedada e dificultadas outras saídas profissionais. Por outro lado, diz, sentia-se “organicamente, um representante dessa geração estudantil sublevada que se pretendia insubmissa na Universidade, na tropa, na entrada da vida profissional (…) e queria dar testemunho por ela (…) e assumir, por isso, especiais responsabilidades” Sintetiza assim a sua opção: “uma situação clara para a minha consciência, mas não menos dilemática politicamente”. (pp. 116 – 122) “A decisão da ida para o exílio foi um momento dramático e até dilemático que me marcou naquele transe.” (p. 127). As razões políticas desta opção foram expostas numa “Carta Aberta ao Povo Português”, distribuída por amigos em Portugal. Essa carta encontra-se publicada nas já referidas Memórias Anotadas, assim como a descrição da saída “a salto”, graças à ajuda de amigos de diversas tendências políticas, e a chegada a Paris, as primeiras aflições, o reencontro com antifascistas portugueses aqui exilados, a ida para Genebra a convite da Berta e do Eurico Figueiredo, a decisão inédita, entre os portugueses exilados na Suíça, de pedir o estatuto de refugiado político para “consagrar a existência de um regime político em Portugal que perseguia e reprimia fisicamente os seus adversários.” (p. 138). Contrariamente às expetativas, em outubro de 1968, depois de quase três meses de espera, recebe resposta positiva das autoridades helvéticas e as medidas subsequentes para uma melhor integração na sociedade e na Universidade onde retomaria os seus estudos, agora em História e depois como professor assistente.

Entretanto eu própria conseguira terminar a licenciatura em Portugal mesmo a tempo de acompanhar o exílio do José nas condições que já atrás expliquei e de conseguir uma bolsa da Fundação C. Gulbenkian que me permitiu estudar Ciências da Educação no Institut de Psychologie et des Sciences de l’Éducation da Universidade de Genebra onde fui depois também contratada como assistente de Psychopédagogie e de Psychopédagogie de la Langue Maternelle. Estávamos, pois, a integrar-nos bem na sociedade genebrina e decidimos mesmo, em 1973, casar e ter um filho que, nascido em Janeiro de 1974, foi como que um anunciador de todos os prodígios que aí vinham…

Apesar desse processo de integração, tínhamos de facto a cabeça e o coração em Portugal. Sentíamos que nos estávamos a preparar para o dia em que pudéssemos contribuir para a construção de uma sociedade nova no nosso país.

Esse sentimento como que de tempo suspenso é muito intenso no exílio. Recordo-me de um amigo, exilado em França, contar que, ao saber do 25 de Abril, sem sequer ir buscar uma muda de roupa nem se despedir de ninguém, cavalgou a sua motorizada até Portugal apenas com as pausas necessárias a alimentação e manutenção do homem e da máquina.

Não foi o nosso caso. Tínhamos responsabilidades profissionais e sobretudo familiares! Se o 25 de Abril foi uma surpresa quando ocorreu, esperávamo-lo a qualquer momento. O José tinha-se preparado cuidadosamente, estudando o que considerava os grandes problemas que Portugal enfrentaria, designadamente o fim da guerra e a descolonização – e para isso estudara os processos de descolonização anteriores; o fim do isolamento internacional e a adesão ao quadro jurídico dos Direitos Humanos e à União Europeia; a democratização política, económica e social, a tudo transversal e única forma de legitimar quer o golpe quer aquelas opções. Redigira mesmo um Plano para a Nação cujas linhas de força sintetizara (“Descolonizar, Socializar, Desenvolver e Democratizar”) numa tese intitulada “Da necessidade de um Plano para a Nação” que enviara ao III Congresso de Aveiro de 1973, onde me desloquei pessoalmente para o apresentar. Nessa tese, José Medeiros Ferreira antecipava que seria de dentro das Forças Armadas que partiria o derrube do regime ditatorial.

Não foi, pois, inesperado o 25 de Abril de 1974 mas foi uma surpresa exaltante!

As dúvidas que podiam existir sobre a orientação política do movimento e das quais a imprensa estrangeira começou por fazer bastante eco, habituada que estava aos golpes militares de direita, foram rapidamente ultrapassadas, embora, como se sabe, a situação levasse algum tempo a clarificar-se. O José veio a Portugal em Maio numa sortida rápida para falar com os amigos e inteirar-se ao vivo da situação. Eu só vim no final do ano letivo quando pude deixar os meus alunos e a equipa onde tanto gostara de trabalhar. A alegria com que vinha desapareceu rapidamente por razões pessoais. A saúde do meu filho obrigou a um internamento hospitalar e não há festa que resista a isso nem um hospital será o melhor ambiente para se viver uma revolução…

Aos poucos fomos todos podendo contribuir para a construção de um país novo e que também era nosso. O José fez questão de se apresentar e terminar o seu serviço militar obrigatório, antes de ser eleito e participar na Constituinte e na feitura da nossa nova Constituição.

Outros, como o nosso amigo Sérgio Palma Brito, que recentemente publicou “Memórias de um Desertor – de Aljustrel a Bruxelas via Penamacor” (Lisboa, Ed. Colibri, 2020) beneficiaram do “Decreto-lei que honra quem recusa fazer a guerra colonial: O Decreto-lei 656/75 de novembro insere disposições relativas a pôr fim a situações militares irregulares em que muitos portugueses se constituíram por razões ideológicas e outras.” (p. 255).

Eu e outros “estrangeirados” fomos chamados para o Instituto de Tecnologia Educativa pelo Dr. Rui Grácio, então Secretário de Estado da Orientação Pedagógica de vários governos provisórios, para a formação pedagógica à distância de professores que, então, como hoje faltavam e pouca formação pedagógica existia então em Portugal.

O balanço que hoje fazemos destes 50 anos do 25 de Abril, sobretudo se comparados com os quase 50 anos de ditadura, só nos pode impressionar e orgulhar, apesar das insuficiências e insatisfações com que hoje encaramos as “conquistas de Abril”. A verdade é que os progressos conseguidos para todos nos Direitos das Mulheres, no SNS com o acesso de todos à saúde, na Educação, nos direitos sociais, na internacionalização e na paz são incontestáveis. Muito se fez – mesmo que muito haja para fazer. Para a Educação permito-me remeter o leitor para o meu artigo “A Educação em Portugal entre pandemias”, Seara Nova, número especial do centenário, 2021 (pp. 72-81) ou para o mais recente “O direito à Educação: Todos, todos, todos” no Jornal de Letras, Artes e Ideias /JL nº 1389 de 27 de dezembro de 2023 a 9 de janeiro de 2024.

A revista “O Referencial”, da Associação 25 de Abril, dirigida por Aniceto Afonso, publicou no seu nº 151 de outubro-dezembro 2023, uma interessante troca de correspondência entre avós Capitães de Abril e seus netos sobre o que estes pensam e sentem sobre o 25 de Abril. Num comentário à carta de Teresa Lima, Jorge Golias escreve: “O que mudou então com o 25 de Abril? Tudo ou quase tudo: o fim da Guerra, a Liberdade (de expressão, de associação, de imprensa), os direitos dos trabalhadores, das mulheres, das crianças e dos velhos. O SNS com o acesso de todos à saúde. A democratização do ensino (…) A chegada do Poder Local (…) As primeiras eleições livres para a Assembleia da República e o ganho de uma Constituição Republicana. (…) E, finalmente, o fim do isolamento internacional com a entrada na CEE. O fim dos exilados e desertores e a abertura ao mundo da ciência, da cultura e da informação…” Um outro neto, Vasco Rato, analisa uma canção infantil de Barata Moura para nela identificar os ideias que o norteiam: “acredito no direito à educação, saúde, habitação, numa economia planeada democraticamente (…) ideais que só começaram a ser abertamente falados e discutidos graças ao 25 de Abril.” Mas o jovem autor vai mais longe: na tal canção “o gato não vai preso, não é excluído, em vez disso é integrado no trabalho com os ratos. Para mim isso reflete outra parte do 25 de Abril: compaixão. O 25 de Abril não é uma revolução que quer criar guerras, antes pelo contrário, é uma revolução para acabar com uma guerra. Que valoriza a vida e a liberdade de cada um. E é uma revolução sem mortes. A mensagem que esta música (…) é: “vamos unir-nos e criar um mundo novo, um mundo para todos”. Eu acho esse aspeto do 25 de Abril incrivelmente bonito.” Eu também!

Maria Emília Brederode dos Santos

(1942)
Presidente do Conselho Nacional de Educação (2017-2022)

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