Entrevista a Natércia Maia

“O Salgueiro Maia era um homem de ação. Era para fazer, fazia-se. Não era eternamente adiado, como a maioria de nós.”

É assim que Natércia Maia recorda o marido, um dos heróis de Abril. Fernando Salgueiro Maia combateu em Moçambique e na Guiné, pela pátria, e foi na guerra que percebeu que a pátria precisava de levar uma volta. Na madrugada de 25 de Abril de 1974 integrou o levantamento militar para derrubar a ditadura e rumou com os seus homens de Santarém a Lisboa. Consigo trazia lenços, cigarrilhas, uma granada e a vontade indómita de acabar com o estado a que isto tinha chegado. No Terreiro do Paço, deu o peito às balas dos tanques que defendiam os últimos estertores da ditadura. À ordem de disparar, os militares do regime disseram não e foi ali, naquele momento, que o 25 de Abril se tornou a revolução dos cravos e do povo que se foi juntando aos militares que rumaram ao Carmo para a rendição de Marcello Caetano. Foi há 50 anos e nunca é de mais celebrar. A Seara Nova foi conversar com Natércia Maia, viúva de Salgueiro Maia, sobre aquele dia e os que se seguiram.

O que pensaria Salgueiro Maia, nos 50 anos do 25 de Abril do estado a que isto chegou outra vez?

Estaria, como todos nós, triste, com certeza. Ou quase todos nós. Antes das eleições, acho que já andaria bastante preocupado. Se as coisas tivessem corrido melhor e as pessoas estivessem minimamente satisfeitas, isto não teria acontecido, não é? Portanto, o que se passa é consequência de má governação. Se toda a gente vivesse com dignidade, com melhores condições na área da educação, da saúde e do trabalho, não havia a tentação de ceder a extremismos, não é?

O que é que correu mal?

Há uma questão que eu considero fundamental, que é a escola, que tem funcionado muito mal. Outro dia ouvi alguém dizer que enquanto a escola não funcionasse bem, Portugal não saía do buraco. Para mim, é mesmo assim. Está bem que as famílias também têm um papel a desempenhar, mas a escola tem de dar um apoio, transmitir determinados valores aos alunos, de cidadania, de respeito pelos outros, de disciplina, e até de trabalho, de rigor.

E de memória. Há muita gente que não faz ideia do que era Portugal antes do 25 de Abril, que não sabe sequer o que significou a revolução.

Sim, há muita ignorância. Há muita gente que já nasceu em liberdade, que não viveu o 25 de Abril e muito menos a ditadura, não faz ideia do que eram as dificuldades, a pobreza, a desigualdade, a falta de liberdade, as perseguições, a tortura, a guerra, a prisão. Uns não sabem o que foi e outros já esqueceram, só sentem os problemas do dia-a-dia e, portanto, ficam indignados e vão em discursos populistas.

E saudosistas daquilo que Salgueiro Maia ajudou a derrubar. Qual era o estado de espírito do seu marido no dia em que saiu aqui de Santarém em direção a Lisboa, na madrugada de 25 de Abril de 1974?

Ele era de poucas palavras. Aliás, nós não precisávamos de falar muito, às vezes bastava o olhar. Foi com confiança e tranquilidade, com receios também, com certeza, porque as coisas podiam correr mal, mas não era isso que transparecia. Ele tinha uma qualidade, que era poupar-me a mim e os que lhe eram próximos, era a maneira de ser dele. E por isso foi, com naturalidade. Levou cigarrilhas. Ele não fumava, senão em situações especiais, eu não fiz nenhum comentário, mas era óbvio que eram já para festejar. Não iria com 100% de certeza que ia tudo correr bem, mas ia com otimismo.

Sabia ao que ele ia, quando saiu de casa, na noite de 24 de abril?

Sim. Já há muito tempo que ele dizia em conversas, até em Minde, onde viviam os meus pais, quando lá íamos almoçar ao domingo, que alguma coisa tinha de ser feita e o país tinha de mudar. Há até aquela história, que vem aí na biografia, de que ele, em Moçambique, em 1968, conversando lá com um alferes sobre a situação no país e a necessidade de uma revolução, terá dito que devia ser bonito descer a Avenida da Liberdade até ao Terreiro do Paço. Havia a consciência de que o país tinha de mudar. E mudou. Para melhor.

Mas, quando entrou para a Academia Militar, Salgueiro Maia queria defender a pátria, não era?

Sim e mesmo quando foi para a guerra, ainda ia com essa mentalidade de defesa da pátria e da nação. Mas a guerra e o contacto com a realidade no terreno, que era diferente da teoria da academia, revoltou-o. Como o revoltou, na Guiné, quando estavam para regressar, o general Spínola tê-lo mandado para Guidage, que era das zonas mais difíceis. Lembro-me de o ouvir contar que lhe disse “com que cara, meu general, é que vou dizer isso aos meus homens?”. Por outro lado, depois, quando voltou da guerra, o contacto, na Escola Prática de Cavalaria, com gente mais politizada, como os estudantes de Coimbra que participaram na crise de 1969 e foram enviados de castigo para lá, abriu-lhe os horizontes e deu-lhe outra consciência política. Isso levou-o a ver que realmente alguma coisa tinha de ser feita para mudar o país. A maneira como as pessoas viviam, a pobreza, a falta de oportunidades, era insuportável. O objetivo dele era o mesmo que o meu, que fosse dada oportunidade a que todas as pessoas vivessem com dignidade. Por exemplo, eu tive aqui uma senhora, que é quase minha vizinha, que vinha aqui à minha casa, e quando ela contava a vida dela, nem sapatos tinha, andava descalça… É analfabeta, mas está muito grata ao 25 de Abril e até se indigna quando ouve algumas coisas em contrário, porque não se esquece da vida que tinha antes e da vida que, apesar de ser analfabeta, tem hoje.

Voltando ao dia 25 de Abril de 1974, como é que a Natércia viveu aquele dia?

Há tempos perguntaram a um primo meu, que estava comigo naquele dia, como é que eu o tinha vivido e ele respondeu que eu tinha chorado baba e ranho e eu disse-lhe: mas tu és parvo? É que não chorei de todo. As pessoas criam assim uns filmes, mas eu não sou de chorar e não chorei mesmo. Até passei pelas brasas. Não sei se é defesa minha, mas em situações assim, mantenho uma atitude calma e tranquila.

Passou pelas brasas?

É preciso ter lata, não é? No dia 23, estávamos já deitados, ele recebeu um telefonema e disse: se calhar é hoje. Não foi. No dia 24, disse-me para estar atenta à rádio, às músicas, e saiu, levou um saquinho de plástico com uns lenços, que ele tinha muita sinusite (lá no Carmo até lhe deram mais lenços, que ainda andam por aí), e as cigarrilhas. É aquilo de que me lembro. Um beijinho, com certeza, mas nada de cenas. Só me lembro que fui ao carro por qualquer motivo e encontrei uma amiga e convidei-a para subir e ela subiu e mais tarde disse-me que achou o meu comportamento muito estranho, porque tocava o telefone e eu não atendia – ela até pensou “se calhar o marido não a deixa atender o telefone” – e depois andava da cozinha para a sala e da sala para a cozinha, que era onde tinha o rádio.

À espera das tais músicas.

Sim, e ouvi as duas músicas, as duas senhas, a primeira era que podiam preparar as coisas e a segunda era que podiam sair. Pronto. O ridículo é que espreitei a passagem da coluna pelos buracos dos estores, para não fazer barulho, quando os carros fazem tanto barulho. Não sei qual foi a ideia de espreitar pelos buracos dos estores, mas com a história de haver um pide sempre ali na rua, deve ter sido por isso. Depois esperei e foi nessa altura que passei pelas brasas, até acordar com o primeiro comunicado do MFA naquela parte em que pediam aos médicos para acorrerem aos hospitais. Aí assustei-me. Pensei: está a correr mal. Mas depois percebi que era uma medida preventiva.

Deve ter sido um dia de nervos.

Durante o dia, o que é que eu fiz? Ele tinha dito para eu fazer a minha vida normal. Disse-me para ir à Caixa Geral de Depósitos. Depois do almoço, fui para o liceu. O senhor reitor já estava na rua a dizer às senhoras – eram só senhoras – que tinha recebido ordens para fechar a escola. Não havia aulas. E, pronto, fui para casa, como se não soubesse de nada. Sentei-me à frente da televisão, à espera de notícias e aí foram momentos de ansiedade e preocupação. Houve aquele período em que era só aquela música que ficou conhecida pelo hino do MFA, muito tempo a dar aquilo, e, entretanto, aparecem imagens do Fernando com o megafone no Carmo. E eu lembro-me de ter dito assim: “Tinha de ser”. No dia a seguir fui a Lisboa. Encontrei-me com ele junto à Cavalaria 7, na Ajuda, mas na rua. Demos um abraço, um beijinho. E só me lembro de um homem a passar num camião. E o homem também muito feliz. Achei que o homem estava a partilhar da nossa alegria. E foi assim. A vida é muito simples.

Acha que, se alguma coisa corresse mal, Salgueiro Mais estaria disposto a dar a vida pela revolução?

Ele levava uma granada, para o caso de correr mal. Ele não me disse no dia, disse-me depois, que levava a granada, e que usaria, se alguma coisa corresse mal. Haveria vítimas e quando há vítimas, há uma motivação para que os outros continuem a luta. Portanto, sim, estava disposto, foi tudo pensado ao pormenor. Mas ele também dizia que estava confiante que não disparassem, porque os carros de combate têm uma lente que aumenta muito e, portanto, era preciso muita coragem para matar um indivíduo, ainda por cima…

…um camarada de armas. Nos anos que se seguiram à Revolução, Fernando Salgueiro Maia nunca se envolveu na política ativa, nunca teve nenhum cargo político, voltou à vida militar. Porquê é que isso aconteceu?

Eu acho que foi porque eles tinham combinado que voltavam aos quartéis. Ele fez o que devia ter feito, era o que ele dizia, e depois voltou à sua vida. Mas nunca se alheou, sempre se preocupou e manteve-se atento e interventivo. Lembro-me, por exemplo, quando o Spínola se demitiu, ele sentado num tamborete, em frente à televisão, a dizer: “o homem está doido”. O ano pior, tirando o da doença, foi 1975. Reuniões constantes do MFA e ele preocupadíssimo. Lembro-me de ele contar que andavam todos a ver qual era o mais revolucionário. Eu perguntava-lhe: “mas porque é que tu não falas? Fala”. E ele: “quem é que me ouve?” Ainda me lembro de ele dizer que ainda quem escapava ali era o Vasco Gonçalves.

Mas o que é que o preocupava?

Ele era uma pessoa com bom senso e pensava que era necessário manter o equilíbrio. A vida quer-se no equilíbrio. E, portanto, aqueles exageros preocupavam-no.

Há uma citação de Salgueiro Maia que por estes dias tem sido muito partilhada, em que ele dizia: “não se preocupem com o local onde sepultar o meu corpo, preocupem-se é com aqueles que querem sepultar o que ajudei a construir”. Ele achava que Abril podia não ser cumprido como ele desejou quando saiu daqui para Lisboa?

Ele preocupava-se e queria que as coisas corressem da melhor forma, de acordo com a perspetiva dele. E, portanto, estava triste com a evolução de algumas coisas.

Por isso, às vezes aproveitava para mandar recados. Uma vez, já ele estava doente, veio cá o Dr. Mário Soares, que andava em campanha, e desde que ele entrou até que saiu, o meu marido esteve sempre a mandar recados, “pisca à esquerda e vira à direita”, dizia-lhe ele, de tal maneira que o diretor da campanha, a determinada altura, disse, já chega de tareia, são horas de almoço. Mas também o desiludiu a forma como foi tratado. Mandado para os Açores, depois para o Presídio Militar. Uma vez disse: “tratam-me como se eu fosse um traidor à pátria. Então que me julguem”.

E porque é que isso aconteceu?

Não sei, pelo protagonismo que teve no 25 de Abril, não sei. Ele tentou fazer sempre o melhor possível. E tanto se dava bem com oficiais como com sargentos e praças, e os superiores não gostavam muito disso. Sabe, as pessoas, a seguir ao 25 de Abril, recorriam muito à Escola Prática de Cavalaria a pedir ajuda, para fazer um campo de futebol, para fazer fontes, sei lá, para uma série de coisas, e, normalmente, pediam para falar com quem? Com o capitão Maia, que era o único nome que conheciam. E isso incomodava algumas pessoas, mas ele nunca quis protagonismo, não era nada do feitio dele.

Como era então Fernando Salgueiro Maia? Que pessoa era ele?

O Fernando era uma pessoa que se interessava por muitas coisas. E quando foi colocado nos Açores, dizia que tinha uma secretária muito grande e pouco trabalho e então foi tirar o curso de Ciências Sociais e Políticas e depois de Antropologia. Gostava muito de ler sobre as etnias da Guiné e era um entusiasta por tudo que tivesse que ver com História. Eu achava graça que ele lia um livro num instante. Fazia parte da Associação dos Amigos dos Castelos, do Cineclube e esteve envolvido na rádio, que viria a estar na origem da TSF. Era muito alegre, divertido, gostava de juntar os amigos e tinha uma qualidade, que eu acho que hoje faz muita falta, que é ir ao encontro do outro. Ele não ficava à espera que lhe pedissem, se sentisse que podia ajudar, dar um parecer ou fazer determinada coisa, ia e fazia. Com qualidades e defeitos, era especial, era uma pessoa de ação. Não era como nós, que eu costumo dizer que somos eternamente adiados. Amanhã faz-se. Ele não, era para fazer, era para fazer. Não se pode fazer tão bem, faz-se menos bem, mas faz-se. Não era perfeccionista de maneira nenhuma e liderava naturalmente. Era uma pessoa muito próxima, que não suportava injustiças. Tinha uma voz forte, mas acolhedora, e, por outro lado, era muito doce. Muito humano.

Essa capacidade de decisão e ao mesmo tempo essa humanidade foram fundamentais no dia 25 de Abril de 1974.

Sim e também a sensatez. As pessoas que o conhecem bem, reconhecem isso. Com outra pessoa, se calhar, não teria corrido tão bem como correu. Também pesou o facto de ser ele que estava ali, os camaradas tinham boa impressão dele e ele tinha aquela capacidade de cativar as pessoas, era um líder natural. E aquele momento no Terreiro do Paço foi decisivo para o sucesso do 25 de Abril. Se o alferes Sottomayor e depois o cabo têm obedecido à ordem do Brigadeiro Junqueira Reis e disparado era o fim, era uma guerra civil, uma mortandade. Por isso, outro dia estive no Terreiro do Paço e acho que aquele lugar é quase um lugar sagrado e devia haver ali alguma coisa a assinalar, porque foi ali que se decidiu quase tudo. E passa ali tanta gente, era uma maneira de dar a conhecer às pessoas, para não esquecer. Devia haver ali um marco, um memorial.

Catarina Pires

(1974)
Jornalista

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(194)
Professora de Matemática aposentada

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