As Conquistas da Revolução
Na sua comunicação ao povo português feita no próprio dia 25 de Abril, o Movimento das Forças Armadas, MFA, afirmava:
«… O Movimento das Forças Armadas, que acaba de cumprir com êxito a mais importante das missões cívicas dos últimos anos da nossa História, proclama à Nação a sua intenção de levar a cabo, até à sua completa realização, um programa de salvação do País e de restituição ao Povo Português das liberdades cívicas de que vem sendo privado.»
Era a liberdade tão ansiada pelo povo restaurada por um movimento militar libertador. Um movimento militar que num ato de enorme coragem e generosidade liberta um povo da opressão fascista que sobre ele se vinha abatendo há quase cinquenta anos.
Era o MFA, que no dia seguinte, no Programa apresentado ao país, diz no seu ponto 6:
«6 – O Governo Provisório lançará os fundamentos de:
- a) Uma nova política económica, posta ao serviço do Povo Português, em particular das camadas da população até agora mais desfavorecidas, tendo como preocupação imediata a luta contra a inflação e a alta excessiva do custo de vida, o que necessariamente implicará uma estratégia antimonopolista;
- b) Uma nova política social que, em todos os domínios, terá essencialmente como objectivo a defesa dos interesses das classes trabalhadoras e o aumento progressivo, mas acelerado, da qualidade da vida de todos os Portugueses.»
Era a política dos 3D (Descolonização, Democratização, Desenvolvimento).
Para além da Liberdade, da tarefa de libertar o país da ditadura, a preocupação com as condições e qualidade de vida do povo.
Citando o Sérgio Godinho:
Só há Liberdade a sério quando houver
Liberdade de mudar e decidir
Quando pertencer ao povo
O que o povo produzir
Seguiu-se a Revolução, seguiram-se as Conquistas da Revolução.
Uma revolução sem líder, sem programa ideológico, uma revolução que não partia duma classe, nem dum grupo, uma verdadeira revolução popular aonde grupos diversos da mesma classe se confrontavam e lideravam movimentos, iniciativas, ações, muitas vezes com uma enorme carga de voluntarismo, visando a resolução dos problemas mais prementes.
Em Junho de 1975, o Conselho da Revolução apresentaria um Plano de Acção Política onde, no seu ponto 3.2.5., se diz:
«O panorama que se descreve é muito grave, mas não assustador, pois corresponde, efectivamente, a uma fase sociopolítica de eliminação dos erros do capitalismo monopolista e latifundiário que caracterizava o nosso país e ainda a crise do capitalismo internacional.
No entanto, para que ele não se torne irremediável, forçoso é que o Povo Português tome, decididamente, a seu cargo a construção do novo sistema económico socialista, e que as classes trabalhadoras decidam, conscientemente, optar entre o socialismo, com os sacrifícios relativos e temporários que exige a sua construção, e o capitalismo, com toda a exploração e opressão que lhe são inerentes.»
Se o Movimento libertador trouxe ao povo português a restauração da liberdade perdida há quase cinquenta anos, a Revolução que se seguiu trouxe para além dos direitos retirados pela ditadura fascista, novos direitos mesmo em relação ao que de mais avançado existia no mundo de então. Portugal tornou-se um laboratório de estudo e aprendizagem quer para os simpatizantes do movimento popular revolucionário quer para os seus adversários e até inimigos.
Estávamos a construir um real Portugal Novo! O Portugal Revolucionário, o Portugal de Abril!
O Povo decidia! O Povo construía! Era o Povo da “Grândola”, O Povo é quem mais ordena.
E foram as Assembleias Populares, as Comissões de Moradores, as Comissões de Trabalhadores, os Movimentos de ocupação das terras abandonadas, a entrega das terras a quem as trabalhasse, as Cooperativas de Produção, as Cooperativas de Habitação, as Cooperativas de Consumo, o assumir pelas mulheres dos seus direitos em pé de igualdade com os homens. A Saúde para todos, a Educação para todos, a Cultura para todos, numa palavra a Dignidade para todos. Com a Revolução conquistava-se um Portugal Novo, com a Revolução conquistava-se uma nova esperança, uma quase certeza de que iríamos ser capazes de construir o País dos nossos sonhos. O País a que tínhamos direito. O País democrático, desenvolvido e justo por que tantos com enorme sacrifício lutaram, inclusive o da própria vida.
Foram as conquistas de Abril. Algumas de curta duração como a Reforma Agrária e o Poder Económico (as Empresas Públicas, o Setor Empresarial do Estado). Mas outras, dada a força da sua justeza, e apesar dos ferozes ataques que têm recaído sobre elas, perpetrados pelos sucessivos Governos Constitucionais, continuam a resistir. É o SNS, é a Escola Pública, é a Segurança Social, é a Cultura, nomeadamente as Artes. Resistem porque o Espírito de Abril, o espírito de justiça e de solidariedade, está bem vivo no coração do Povo.
50 anos!
50 anos perdidos? Se do conquistado com a Revolução muito se perdeu, também muito se aprendeu. Aprendeu-se que não basta ter boas ideias, ter as melhores ideias. Tão importante como as ideias é a “arte” de as tornar realidade, de encontrar as formas, os meios, os métodos necessários para as tornar mobilizadoras. Depois é a dedicação, a coragem para erguer uma via de luta eficaz assente numa bem estruturada organização capaz de a todo o momento apreciar de forma crítica os fatores que enformam a realidade com que nos confrontamos e que pretendemos transformar tendo sempre presente a lição de Bento de Jesus Caraça: «Se não temo o erro, é porque estou sempre disposto a corrigi-lo.»
E por falar em Bento de Jesus Caraça, ocorre-nos outra grande figura da luta pelos ideais democráticos em Portugal, António Sérgio que, em Conferência em Coimbra em 1926, afirmava:
«Assim, pode dizer-se resumidamente, no ponto de vista intelectual, que a história do país no Seiscentismo é o espetáculo do estiolamento da mentalidade portuguesa; e que a sua história no século XVIII, e que a sua história no século XIX, é a das goradas tentativas para nos reparamos desse grande mal. Depois dos dias do Quinhentismo, o que se chama espírito moderno nunca mais vigorou na nossa terra, – se bem que brilhasse, por vezes, em alguns portugueses excecionais, que se cultivaram no estrangeiro, que se não entenderam com os seus patrícios, e que combateram sem resultado a mentalidade do seu país. Para Ribeiro Sanches, no século XVIII, Portugal é o «Reino Cadaveroso»; e um satírico inteligente chama-nos «O Reino da Estupidez».
E agora? Agora, no século XX? Agora, estamos na mesma. Relativamente no mesmo estado. Não nos iluda a existência de portugueses excecionais, que se educaram nos laboratórios e nas leituras dos estrangeiros. A cultura autêntica, a cultura crítica, não impera ainda em Portugal. Somos o «Reino Cadaveroso»; somos o «Reino da Estupidez».
Não digo isto para desanimar: bem ao contrário: pois nesta mesma cidade em que estou falando, e nos próprios campos onde aloura o trigo, se pressente já um arrebol. Portugal, por enquanto, é ainda o Reino da Estupidez: mas espero para breve (e para muito breve) a aurora do dia em que o não será.»
Em 25 de Abril sentimos o arrebol. Cinquenta anos depois o arrebol parece ter esmorecido, mas Abril continua bem vivo no coração do Povo português que, cremo-lo convictamente, continuará a inspirar as suas lutas, os seus combates, por uma vida melhor.
A vida, aquela vida, tão ansiada e desejada pelo nosso martirizado povo, a que Abril abriu as portas, «as portas que Abril abriu nunca mais ninguém as cerra» como o nosso Ary cantou.
Nº 1766 - Primavera 2024
