O Poder Local – Espaço de Cidadania Activa

O poder local democrático é uma das mais perenes conquistas da Revolução de Abril, uma realidade que importa realçar, no contexto da celebração dos 50 anos da revolução. Apesar da usura do tempo e ação nefasta de diversos governos e do exercício do poder local por vezes “se desviar” do serviço às populações para servir interesses particulares, apesar de tudo, o Poder Local tem resistido bem, aos ataques de que as conquistas de 25 de Abril têm sido objecto.

Convém, a propósito, salientar que o Poder Local, se constitui como esteio de valores democráticos de participação política e que incorpora e projeta esses valores na plena realização da democracia, política, económica e social.

Sem dúvida, a institucionalização do poder local, a par de outros elementos estruturantes do Estado Democrático (a legalização dos partidos políticos e das organizações sindicais, a emancipação do poder judicial e do poder legislativo) é peça essencial do regime político instituído pela Revolução de 25 de Abril. Sobretudo, pelo seu reconhecimento como subsistema vocacionado à realização das necessidades coletivas e à democratização da sociedade pela participação dos cidadãos.

A participação dos cidadãos, presente desde o início do processo revolucionário, que se concretizou numa multiplicidade de realizações que deram expressão às mais genuínas aspirações populares, desde a nomeação das “comissões administrativas” nos Municípios e Freguesias, passando pela intervenção directa, das pessoas, com o seu trabalho voluntário na realização de necessidades coletivas básicas (como sejam, saneamento, eletrificação, estradas e caminhos, escolas, creches, etc. etc. Não é por acaso que então se dizia, com propriedade, que o exercício do poder local e a participação dos cidadãos na realização dos seus interesses concretos, “tirava o fascismo da cabeça das pessoas”.

Desde os alvores da democracia, portanto, o poder local “antecipou”, por iniciativa dos próprios cidadãos, o seu estatuto e a sua vocação de “lugar institucional” privilegiado de interação com as populações, permitindo, como em nenhuma outra instância, alimentar e estimular o funcionamento do sistema político.

Quer dizer, o poder local, pela sua situação particular no conjunto do sistema de poder, tende a constituir-se esfera privilegiada de realização democrática, onde assume o fulgor inaugural da ordem normativa, estabelecida pelo 25 de Abril, alargando e aprofundando os limites da democracia representativa.

Uma cidadania assumida, portanto, fecundada pela intervenção consciente dos cidadãos na preservação e afirmação dos direitos cívicos e políticos, mas também na efetivação dos direitos económicos e sociais, como condição essencial à realização dos primeiros e expressão de um espaço privilegiado de resolução de problemas do quotidiano das populações.

Ao longo dos anos, têm sido introduzidas distorções nas competências e funcionamento das autarquias, que desfiguram a matriz democrática do poder local, acentuando a “presidencialização” dos órgãos executivos e introduzindo tiques de “parlamentarismo” no funcionamento das assembleias municipais, na lógica de mera contraposição governo/oposição.

A verdade, porém, é que o sistema do poder local instituído pela ordem constitucional do 25 de Abril, mais que conflito, é consenso activo, mais que vocação unipolar de poder, é pluralidade e participação. E, porque não se podem fundar consensos “numa multidão de passividades”, mas pelo contrário, os consensos se estabelecem pela “alteridade das propostas”, se compreende a importância da intervenção das populações na esfera do poder local.

A dimensão democrática da participação é, assim, factor de reforço da consciência social e política de cada pessoa perante o poder e de exigência dos seus direitos e da consequente recusa de sentimentos de dependência face a esse mesmo poder. Em síntese, o exercício do Poder Local Democrático constitui-se, em si mesmo, como espaço de cidadania activa.

Importa ainda referir uma outra dimensão do poder local, nem sempre considerada, embora conexa com a caracterização que se procurou fazer nas linhas anteriores, relevando a componente participativa.

Vejamos. A democracia representativa (racional-normativo), oriunda da Revolução Francesa tende a fazer coincidir legalidade e a comunidade política com a totalidade da população. Porém, realidade política não se confunde com a realidade legal. O processo político e a própria realidade empírica demonstram que os cidadãos não participantes, os abstencionistas, crescem a ponto, de em muitos casos, constituírem uma maioria silenciosa.

Reconhecidamente, o alheamento dos cidadãos da vida política, constitui sintoma de uma doença profunda da chamada democracia representativa. Por outro lado, o desfasamento entre a racionalidade normativa e a realidade política não é unívoco, quer dizer, tem significações diversas, conforme as camadas sociais que o medeiam e de quem a ordem normativa serve (ou não serve).

A pulsão de rejeição poderá assim revelar uma atitude de passividade por parte da população, cujos interesses estão plasmados e garantidos na ordem normativa instituída e, portanto, neste caso, o impulso da participação política é desguarnecido; mas, a rejeição da ordem legal vigente, poderá decorrer da mobilização de camadas de população, que o sistema não integra, tendo em vista substituir o quadro da racionalidade normativa em vigor.

É de referir que a distância entre a realidade legal e a realidade política concreta é alimentada pelo próprio funcionamento do sistema e pela lógica da “captura do poder de sufrágio”. Ou seja, a coberto do conceito de soberania popular, os cidadãos, através do voto, transferem para os órgãos de soberania o poder originário que neles reside. Simplesmente do ponto de vista político as coisas passam-se de maneira diferente. Do que na realidade se trata é de uma verdadeira luta pelo poder Estado, e para “capturar” o poder eleitoral, valendo tudo nesse desígnio, desde o caciquismo, ao voto de cabresto, o voto dos mortos, o compadrio, etc.

Entretanto, estes métodos refinaram: no financiamento dos partidos, na sofisticação do marketing, na osmose entre a política e os interesses económicos, nos custos financeiros das campanhas eleitorais, etc. etc.; que reforçam o paradigma da “captura do poder de sufrágio”, porventura, ainda mais vivo e actuante que nos alvores da democracia representativa.

Em suma, pode dizer-se que a vocação de “racionalidade normativa” da democracia representativa e a sua “bondade” integradora do conjunto da realidade político-social é claramente postergada a diversos níveis:

  1. a) Na existência de largas margens de abstencionistas, que em regra não participam na política e constituem as chamadas maiorias silenciosas;
  2. b) Na existência de um cada vez maior número de extractos de população que, de facto, são excluídos do sistema, por falta de condições materiais do exercício da cidadania;
  3. c) Na emergência de (novas) questões sociais que convivem mal com os valores tradicionais da democracia representativa, porquanto não foi “pensada” para os resolver (ambiente, consumo, as chamadas questões “fracturantes”, os novos direitos de cidadania);
  4. d) Na “captura do poder de sufrágio” (cujas mazelas estão longe de terem sido extirpadas), bem como nas práticas de alguns agentes políticos, que por vezes são factores de descrédito e de abstenção política e que constituem pretexto para pulsões antidemocráticas.

No contexto do tema que nos propusemos, importa referir outra questão, tendo em vista melhor compreensão das potencialidades e possibilidades das instituições do poder local no conjunto do sistema político. Numa perspetiva sistémica, o poder de Estado interage permanentemente com o sistema social, no seu conjunto e, na parte que nos interessa, interage, em especial, com as estruturas do poder local.

Assim, importa considerar que a concepção sistémica do poder tem como objecto específico a sociedade global, quer dizer, a coletividade de pessoas que, em determinado momento, por corresponder às necessidades históricas, se assumiu politicamente como Estado. O sistema social global, porém, desdobra-se em diversos subsistemas, uma espécie de divisão de tarefas, que tem como função garantir a adaptação, o funcionamento, a integração e a realização dos objectivos políticos de uma dada sociedade.

A realização dos objectivos do sistema social global é tarefa confiada ao subsistema político, que procede à definição das finalidades do sistema e dos meios humanos e materiais disponíveis, e diligencia a sua concretização. O modelo sistémico do poder é tributário dos estudos sobre a cibernética e o reconhecimento da importância do conceito operacional de informação.

Nesta perspectiva, a informação processa-se através dos inputs que são recolhidos do meio ambiente e nos outputs que são devolvidos depois da informação tratada, numa dinâmica permanente de retroação de cada um dos subsistemas com os sistemas mais amplos, em que se inserem e justificam o funcionamento do sistema global e o sistema político será um conjunto de interações dentro da sociedade considerada, que se materializa permanentemente na luta pela aquisição, manutenção e uso do poder de Estado, por parte dos diversos interesses sociais em presença.

A revolução do 25 de Abril, como sabemos, rompeu com a ordem normativa vigente e, na intensidade da luta política que se lhe seguiu, uma nova ordem normativo-constitucional e um novo sistema de poder foram fundados. Pode dizer-se que a revolução de 25 de Abril fundou um novo sistema político, no qual a restruturação e a democratização do Estado foram, ao mesmo tempo, instrumentos privilegiados e objectivos declarados.

Sem dúvida que a institucionalização do poder local foi peça essencial desse projecto fundador de um novo regime político. Desde logo, na dignidade constitucional que ao poder local foi conferida e, sobretudo, na modelação do poder local como sub-sistema essencial na realização das grandes finalidades e objectivos gerais do sistema político, ou seja, a satisfação das necessidades colectivas e a democratização da sociedade pela participação dos cidadãos na vida colectiva.

Por outras palavras, o poder local, enquanto sub-sistema “terminal”, constitui o ambiente privilegiado de realização dos inputs sociais e dos outputs políticos, pois a permanente interacção com os cidadãos, permite, como em nenhuma outra instância, alimentar e estimular o funcionamento do sistema político global.

Na realidade, o poder local, no plano político, implica assim a ideia de que os assuntos da coletividade dizem não apenas respeito a todos os cidadãos, mas que estes têm o direito de participar permanentemente na sua definição e no controlo de execução das políticas estabelecidas.

E, por outro lado, no plano jurídico, o exercício do poder local é instância particularmente vocacionada para a realização dos chamados novos direitos de cidadania (direito de petição, direito de participação, direito de informação, direito de audiência prévia, reconhecimento dos interesses difusos, etc.), dando expressão prática, ao nível das conexões individuais com o sistema, ao conteúdo democrático do seu exercício.

Quer dizer, o poder local, pela sua situação particular no conjunto do sistema de poder, tende a constituir-se esfera privilegiada, onde “a dialéctica da ordem e do movimento” (que constitui a dinâmica da política) assume o fulgor inaugural da ordem racional-normativa, a que todo o sistema político aspira, alargando e aprofundando os limites da democracia representativa.

Assim, deve referir-se que, nos termos constitucionais a organização democrática do Estado, compreende as autarquias locais, na qual se incluem as Regiões Administrativas, para além das freguesias e dos municípios. Falta cumprir um pilar importante da institucionalização do poder local, o que significa que existe um déficit na organização democrática do Estado, com consequências nefastas no funcionamento de todo o sistema de poder.

Dir-se-á, por outras palavras, que o sistema integrado do poder funciona sem uma das suas componentes essenciais, pelo que não podem realizar-se, sem constrangimentos, as diversas interacções políticas e administrativas. A “anarquia” de serviços públicos espalhados pelo País e o desastroso processo de descentralização administrativa, são demonstração cabal e visível da distorção do sistema de poder local, por falta das Regiões Administrativas.

A verdade, porém, é que o sistema do poder local introduzido pela ordem constitucional do 25 de Abril, mais que conflito, é consenso activo, mais que vocação unipolar de poder, é pluralidade de participação. E, porque “não se pode todavia fundar consenso numa multidão de passividades, pois a ordem estabelecida não é apenas aceite por aquilo que é, mas também em virtude daquilo que constitui promessa”, se compreende e justifica a importância da intervenção das populações na esfera do poder local, com o reconhecimento, na matriz constitucional, das organizações populares de base como sujeitos de poder político no diálogo com os órgãos locais.