Conquistas no Trabalho e nos Direitos Socias – Avanços e recuos, na construção do Estado Social de Direito Democrático
Uma revolução propicia conquistas imediatas quando as respetivas reivindicações já estavam maduras: o que está feito antes é determinante. Isso foi evidente no processo revolucionário nascido do 25 de Abril de 1974. A resistência ao fascismo gerou bons programas e preparou excelentes atores nos planos político, social e humano, económico e cultural. Isso contribuiu para boas respostas ao que era premente e garantiu que a força transformadora da revolução, sustentada na participação do povo, se projetasse com vitalidade no tempo.
As conquistas de Abril na área do trabalho e dos direitos sociais foram imensas na caminhada dos 50 anos de democracia. De onde partimos? Como foram feitas essas conquistas e em que contextos? Que influência teve a luta laboral e sindical? Que recuos se observaram? Onde estamos e para onde vamos? Neste texto enunciarei alguns tópicos que podem contribuir para as respostas (muito parcelares) a estas interrogações.
Portugal era um país atrasado, ainda em 1974. Tínhamos começado a registar pequenos passos de mudança na década de 60: alguma industrialização – Portugal entrou na EFTA em 1963 e instalaram-se algumas multinacionais a aproveitar os nossos baixos salários; a terciarização da economia dava os primeiros sinais; acentuou-se o processo migratório interno; sentiu-se um impacto social e político forte, vindo da emigração e da guerra colonial e cresceu a entrada das mulheres no “mercado de trabalho”. Neste quadro, intensificou-se a luta operária e sindical. Em 73/74, centenas de milhares de trabalhadores participaram em lutas laborais.
Trabalhadores antifascistas e anticorporativos, de sensibilidades políticas diversas, foram-se organizando em várias regiões e setores, para conquistar as direções dos sindicatos corporativos (estratégia assumida pelo Partido Comunista Português e movimentos católicos progressistas). Na segunda metade da década começaram a somar vitórias criando uma dinâmica laboral e social nova e transformadora. É nesse contexto que, aproveitando alguma descompressão inicial provocada pela substituição de Salazar, surgem as Reuniões Intersindicais – a 1ª convocada a 01 de outubro de 1970 e realizada no dia 11 – que rapidamente se consubstanciaram, na prática, em Central Sindical, a Intersindical. A Pide/DGS rapidamente considerou estar ali um “embrião de Central Sindical”. No início de 1974 eram cerca de 50 os sindicatos participantes.
Com esse avanço organizacional veio uma importante agenda laboral e social, com matérias fulcrais, designadamente: i) a contratação coletiva com conteúdos inovadores; ii) a redução do horário de trabalho, desde logo, a exigência da “semana inglesa”; iii) a segurança social com excelentes teses; iv) as liberdades em geral, e a de reunião em particular; v) propostas para o Salário Mínimo Nacional (SMN); vi) a reclamação do dia 1º de Maio como feriado. Apesar da repressão, os sindicatos conseguiram um sindicalismo com luta nos locais de trabalho e grandes assembleias.
Este sindicalismo vai ser relevante contributo no desenvolvimento da nossa Democracia. Primeiro, contribuiu para que o Golpe Militar dos Capitães – com um programa político progressista – se transformasse em Revolução. Foi bem aproveitado o espaço temporal entre o 25 de Abril e o 1º de Maio, Dia do Trabalhador, assinalado em liberdade (Dec.-Lei 175/74, de 27 de Abril) por todo o povo.
Segundo, a sua agenda municiou decisões dos governos provisórios para resposta à explosão de direitos de que os trabalhadores se sentiam credores. Relevo alguns Decretos-Lei aprovados antes da entrada em vigor da Constituição da República (CR), a 2 de Abril de 1976: o 217/74, de 27 de Maio, fixou o SMN em 3.300 escudos (beneficiou mais de 55% dos trabalhadores) e enunciou disposições face a prementes aspirações dos trabalhadores e para dinamizar a economia; o 268/74, de 21 de Junho, normalizou a sua aplicação ao “funcionalismo” público; o 392/74 de 27 de Agosto, regulou o exercício do direito à greve e «lock-out»; o 406/74, de 29 de Agosto, estabeleceu o direito de reunião; o 505/74 de 1 de Outubro, fixou medidas para o horário de trabalho; os 215-A/75, 215-B/75, 215-C/75, de 30 de Abril estabeleceram, a Intersindical Nacional como “Confederação Geral dos Sindicatos Portugueses”, a regulamentação da liberdade sindical, o direito das entidades patronais constituírem associações. Outra legislação sobre acidentes de trabalho e doenças profissionais, licença de maternidade, crédito à habitação, processo da Reforma Agrária, foi publicada.
Terceiro, a dignidade que os constituintes deram aos direitos/deveres dos trabalhadores na CR, constituiu uma extraordinária conquista, que continua de enorme valor, apesar de golpes dados em revisões constitucionais (que aqui não vou analisar), ou em leis. Os direitos fundamentais do trabalho são Direitos Humanos e a CR acolheu-os como tal.
Quarto, a maturidade, o prestígio e solidariedade desse sindicalismo motivou confiança nos setores que não tinham sindicatos, desde toda a Administração Pública (AP) ao setor agrícola, passando pelas pescas e outros. A rápida criação destes sindicatos com orientações democráticas, e a unidade na ação entre todos, tornaram os sindicatos construtores de pilares fundamentais do Estado Social de Direito Democrático.
Quinto, foi (e é) muito importante o apego dos trabalhadores à valorização e defesa da CR, para proteção dos seus interesses e para o confronto com os inimigos do Regime Democrático. Essa opção surgiu marcante no Congresso de Todos os Sindicatos (2º da Intersindical), em janeiro de 1977.
Entre 1976 e 1986, houve refluxos no poder sindical e nos direitos dos trabalhadores. A criação da União Geral de Trabalhadores (UGT), em 1978, trouxe fragilizações (não tratadas neste texto). As crises económicas de 1978 e 1983 deram entrada ao FMI e seu receituário. Surgiu a praga dos salários em atraso e os contratos a prazo iniciaram a precarização do emprego. A preparação para a entrada na CEE (hoje União Europeia) permitiu estratégias empresariais de desativação de subsetores de atividade e empresas que eram bastiões na efetivação de direitos no trabalho. Contudo observou-se uma luta laboral com resultados na contratação coletiva. A Greve Geral, de fevereiro de 1982 (convocação da CGTP-IN) foi vitoriosa contra a tentativa de revisão da legislação laboral.
A condição de Portugal na CEE induziu leituras novas sobre ganhos e perdas, suas causas e consequências. Na fase inicial, um ataque a tudo o que cheirasse a heranças da revolução, na área do trabalho, emprego e proteção social, como noutras.
Em 1984, foi criado o Concelho Permanente de Concertação Social que virá, em 1992, a dar lugar ao Conselho Económico e Social (CES), passando a estrutura inicial a integrá-lo como Comissão Permanente de Concertação Social. Desde a origem, este Órgão Institucional de Consulta e Concertação, carrega enviesamentos na composição e funcionamento, que propiciam a sua governamentalização, e colocam o movimento sindical em posição frágil. A publicação do CES, evocativa dos seus 30 anos, de autoria de Pedro Tadeu a convite do presidente Francisco Assis, permite uma boa identificação da atividade e influência que tem nas políticas do trabalho, emprego e proteção social.
Na segunda metade da década de 80, Cavaco Silva forçou a aprovação de um “pacote laboral” de retrocesso em várias matérias, mas deparou-se com uma forte resistência dos trabalhadores e com uma greve geral (em convergência CGTP-IN/ UGT) de grande efeito. Importante legislação favorável aos trabalhadores resistiu até à aplicação do Código de Trabalho, em 2003.
Na União Europeia, o Tratado de Amesterdão facilitou o caminho para políticas de emprego neoliberais. Posteriormente, a criação do euro e a forma ligeira como Portugal analisou os ganhos e perdas que iria provocar, consolidou o baixo perfil de especialização da nossa economia, com impactos negativos na qualidade do emprego.
No final dos anos 80 e nos anos 90 houve relevantes alterações no trabalho, no emprego e na proteção social. Influência dos Planos de Desenvolvimento Regional, do estratégico combate ao trabalho infantil, da conquista do 14º mês para os reformados. A extraordinária luta pelas 40 horas de trabalho semanal, terminou vitoriosa no início de 1998.
Em 1995 o debate em torno do Livro Branco da Segurança Social foi decisivo para a defesa do sistema público, universal e solidário, e contribuiu para o estabelecimento (em 2001, com o governo do PS) de reformas que, no fundamental, tiveram o apoio de todo o movimento sindical. Todavia, em 2003, Durão Barroso e Bagão Félix impuseram uma alteração à Lei de Bases, com o objetivo de avançar para o “plafonamento”. Mas, não conseguiram concretizar tal objetivo.
O Código de Trabalho, em 2003, deu uma machadada na contratação coletiva (porque estava “velha”) e reforçaram-se conceções “flexibilizadoras” e individualistas. O conceito “flexigurança” foi-se concretizando, sempre com a parte segurança esquecida, para alimentar a precariedade. Realizou-se muita luta laboral, incluindo uma Greve Geral convocada pela CGTP-IN em 2002, mas não foi possível travar o seu avanço. Setores democráticos – do PS em particular, mas não só – puseram-se do lado da “bondade do Código”. Nasceu aí um impulso para uma estratégia de desvalorização salarial como variável de ajustamento da economia, opção que os PEC (Programas de Estabilidade e Crescimento) I, II, III e IV vão agravar, apesar de forte luta laboral e social, inclusive 4 greves gerais entre 2007 e 2012, uma das quais em 2010, convocada por CGTP-IN e UGT (muito participada), as outras apenas pela CGTP-IN.
A institucionalização da “crise”, a ideia de que “os portugueses andavam a viver acima das suas possibilidades” e que os jovens tinham de “sair da sua zona de conforto” e emigrar, as reclamações dos banqueiros contra “a banca rota iminente” (eles, os primeiros culpados) foram armas eficazes na subjugação e aumento da exploração dos trabalhadores e do povo. Como se perspetivava e se confirmou a “austeridade” foi injusta e criminosa, no entanto, a UGT entrou no jogo da “atenuação de perdas”. Entre 2009 e 2012, foi forte a luta social desenvolvida pelos sindicatos e outros movimentos (com alguma articulação). Realça-se a importante derrota da tentativa de alterações à Taxa Social Única (TSU), ensaiada pelo governo PSD/CDS.
Foi brutal o ataque feito aos trabalhadores e reformados, em 2012, nomeadamente: i) cortes salariais – subsídios de Natal e de férias; ii) fragilização da negociação coletiva; iii) multiplicação dos bancos de horas; iv) expansão do desemprego, forçando a descida salarial em nome da competitividade externa; v) corte de 4 feriados, e 3 dias de férias; vi) congelamento de salários no sector público (dando sinais para o privado); vii) congelamento de progressões nas carreiras da AP e limitação de admissões; viii) corte em pensões e apoios sociais; ix) redução do investimento público. Significou que, a partir de 2012, em cada ano, ficaram do lado do fator capital, mais de 3 mil milhões de euros, que até aí pertenciam aos trabalhadores.
A partir de 2015, a “Geringonça” restituiu algumas (importantes) daquelas perdas. Mas o lastro continuou pesado para os trabalhadores e pensionistas. Hoje, PS e PSD afirmam que respeitarão a lei da atualização das pensões, mas podem surgir novas invocações de crises. E, a estratégia de desvalorização salarial está viva. A pandemia Covid 19, a guerra na Ucrânia e o agravamento da inflação serviram para a retomar.
A valorização do Salário Mínimo Nacional (SMN), é conquista relevante, mas continuando frágil a contratação coletiva, teremos cada vez mais trabalhadores com o SMN e o salário médio não crescerá. O aumento do emprego – melhora as receitas da Segurança Social – tem acontecido no quadro de um baixo perfil na especialização da economia. É ainda imberbe a mudança qualitativa da estrutura económica, e tarda a melhoria qualitativa e quantitativa no emprego na AP.
A revisão da legislação laboral, feita em 2023 debaixo do chapéu da Agenda do Trabalho Digno, não foi de retrocesso, mas não deu os passos para desbloquear a negociação coletiva. As respostas à “plataformização” e a situações novas vindas da utilização do digital e de outros instrumentos tecnológicos correm atrás do prejuízo, em vez de afirmarem forte o Direito do Trabalho.
Para onde caminhamos?
Na sociedade atual podemos arrumar os imensos problemas e desafios com que deparamos em oito grandes conjuntos,: i) as questões relativas ao avanço do conhecimento científico e tecnológico, nomeadamente, no digital, na robotização e na inteligência artificial; ii) os sistemas económicos financeirizados e as reformulações das cadeias de produção e distribuição; iii) as (des)igualdades e a distribuição da riqueza; iv) os problemas climáticos e ambientais; v) o aumento da esperança de vida e a necessidade de o dignificar; vi) o problema demográfico no global, que em Portugal está a exigir novas respostas, designadamente sociais; vii) o papel da Escola, do seu funcionamento e dos instrumentos para aprender que propicia aos jovens; viii) as políticas públicas necessárias num Estado Social de Direito Democrático.
Tudo isto se evidencia numa sociedade em que as mudanças geopolíticas e geoestratégicas são profundas e influenciam quase tudo. Num quadro de perda de credibilidade da Democracia e de afirmação do belicismo. E, quando a União Europeia parece estar a preparar uma economia de guerra que, a confirmar-se, atingirá brutalmente o Estado Social.
Quando discutimos aqueles conjuntos de questões vemos profundas conexões entre eles e nenhuns determinismos. A busca de soluções depende das opções na utilização da riqueza. O trabalho e o emprego surgem sempre no centro. O direito do trabalho tem de se afirmar, nomeadamente para o equilíbrio entre o individual e o coletivo. Observa-se uma profunda relação entre trabalho, emprego e proteção social. Os instrumentos de trabalho são uma coisa, as formas da sua organização e prestação outras distintas.
A nossa juventude tem hoje um bom nível médio de formação escolar que não está a ser aproveitado para melhorar as qualificações profissionais: falta emprego de qualidade, imperam os conceitos “colaborador” e “empreendedor”, que nos desviam da valorização das profissões e das qualificações. Parte da imigração é utilizada para eternizar os baixos salários.
Seremos cada vez mais uma sociedade multicultural e multiétnica, que tem de evoluir no modo como vivemos em conjunto. As soluções a encontrar para a Segurança Social, o SNS, a Escola, a Habitação, a Justiça, têm de ser feitas considerando essa realidade.
Uma enorme questão social surge de novo no centro dos grandes problemas da Humanidade. Como no passado, o capitalismo (na sua génese de sistema económico, social e político) não respeita, a não ser forçado, os direitos do trabalho, nem a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que até fez de conta ser uma Carta com que se identificava. Todavia, dispensa facilmente a Democracia.
No difícil tempo que vamos viver, o sindicalismo será indispensável. Todas as forças da Esquerda e progressistas lhe devem dar boa atenção.

Manuel Carvalho da Silva
(1948)
Ex-Secretário Geral da CGTP-IN e Coordenador do CoLABOR
Nº 1766 - Primavera 2024