Em louvor e defesa da Constituição da República
- Em muito se distingue a nossa Constituição.
Desde logo na sua génese. Não nasceu no segredo dos gabinetes, elaborada por sapientes juristas, sob regência de um pretenso salvador da pátria, sustentado na força das armas, como aconteceu com a Constituição de 1933. Viria depois a ser aprovada em plebiscito, onde as abstenções contaram como votos favoráveis, e assim seria instituído o Estado Novo, designação eufemística da ditadura fascista.
A Constituição actual nasceu de um firme compromisso inscrito no Programa do MFA (Movimento das Forças Armadas), o de eleger uma Assembleia Constituinte no prazo de um ano, e assim aconteceu. A eleição realizou-se em 25 de Abril de 1975, com o sufrágio universal, livre, directo, igual dos portugueses. Onde antes o voto era restrito e condicionado, o recenseamento voluntário, as fraudes prática comum, a censura um instrumento eficaz, desta vez formaram-se longas filas para votar e a eleição teve a mais alta participação de sempre, 92%, com quase 7% de votos em branco.
A Constituição nasceu da Revolução de Abril, com o povo em movimento. Num período, curto mas fértil e criativo, foi o povo sujeito da História.
Tal era a sua força, fundada na razão e na justiça, numa resistência, tantas vezes heróica, enfrentando a ditadura ao longo de 48 anos, que muitas das leis determinadas pelos Governos Provisórios tiveram consagração constitucional. Lembremos o Salário Mínimo Nacional, a Reforma Agrária, os direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores, os direitos e deveres económicos, sociais e culturais, ou a criação do Provedor de Justiça.
Certamente por isso, numa prodigiosa singularidade, enquanto nas ruas decorriam multitudinárias manifestações de sinal contrário, com grande carga de dramatismo e por vezes de violência, os artigos da Constituição iam sendo aprovados na Assembleia de forma unânime ou por expressiva maioria.
- A direita, como expressão política e doutrinária das classes dominantes, previa os riscos da eleição prioritária de uma Assembleia Constituinte, como acto fundador e legitimador do novo Regime. Tentou por isso, por duas vezes de forma declarada, adiar as eleições constituintes, procurando antecedê-las pela eleição directa do Presidente da República, que seria, presumivelmente, o General António Spínola, a exercer então tais funções. Primeira com o mal sucedido Golpe Palma Carlos, logo vencido em Conselho de Ministros e depois no Conselho de Estado, a segunda com o falhado golpe militar de 11 de Março, como constava do Manifesto que Spínola não teve tempo de ler ao País, por se ter posto em fuga para Espanha.
A História não se repete mas, vendo bem, a direita apoiada pelos interesses económicos dominantes procurou consolidar o seu poder através do caudilhismo, a escolha de um homem forte para exercer o poder. Promovia a desordem com uma das mãos e com a outra, de asas brancas e espada justiceira, aparecia a exigir e a repor a ordem. Desacreditava a política e os políticos em geral, para incensar alguns e depois escolher um deles como homem providencial.
Assim aconteceu em Portugal com Sidónio Pais, saído de um golpe militar, em Dezembro de 1917, com a sua eleição directa em Abril de 1918, e com Carmona, afastados Mendes Cabeçadas e Gomes da Costa, chefes do golpe de 28 de Maio, com a sua eleição directa em Março de 1928. Carmona era um chefe apenas aparente, mas útil, pois agia, de facto, como instrumento de Salazar. Eleições directas, mas sem opositores, convocadas para apagar a origem golpista e deste modo se legitimarem.
Assim aconteceria com o General Spínola que, nos meses seguintes ao 25 de Abril, percorria o país entre comícios e paradas militares com o discurso do “caos”, da “terra queimada”, dos “falsos portugueses” e da urgente reposição da ordem e salvação da Pátria. Não lhe foi possível consumar o seu projecto, e dos conspiradores que o rodeavam, pois teve de enfrentar o movimento popular e a unidade das forças democráticas, onde surgiam os primeiros traços de fractura, e os militares do MFA, então ainda coesos em torno da sua Comissão Coordenadora.
O caudilhismo era uma solução serôdia. Foi útil, na Europa dos anos 20 e 30, para credibilizar os regimes autoritários em ascensão. Lembremos os marechais Pilsudsky, na Polónia, Antonescu, na Roménia, Mannerheim, na Finlândia, Pétain, em França, o Almirante Horty, na Hungria, os generais Metaxas, na Grécia ou Franco, em Espanha, para só citar alguns. Mas os tempos eram outros. O caudilhismo estava condenado ao fracasso, a democracia e a paz eram aspirações profundas do povo português.
- A direita enfeudada aos grandes interesses privados não se conformou com a nova Constituição, com o seu conteúdo emancipador e progressista, visível nos artigos que iam sendo aprovados. Esperançada nos ventos favoráveis resultantes do 25 de Novembro, tentou ainda reverter o rumo dos acontecimentos e evitar que a nova Constituição, em fase final de elaboração, entrasse em vigor. A Direcção do então PPD, embora sem consulta ao Grupo Parlamentar, segundo o Professor Jorge Miranda, propôs a realização de um Referendo e que, em caso de rejeição, “continuassem em vigor as leis constitucionais actualmente vigentes, tendo o Parlamento a eleger até 25 de Abril de 1976 poderes constituintes”.
Terá sido o quadro político instável e movediço que levou o Presidente da República, General Francisco da Costa Gomes, a decidir promulgar a Constituição no momento seguinte à sua aprovação, e para isso se deslocou à Assembleia Constituinte. A votação foi concludente: dos 250 deputados, 234 votaram a favor (do PS, PPD, PCP, MDP, UDP e o deputado de Macau) e apenas 16, todos do CDS, votaram contra.
Tal não impediu que, nos anos seguintes, o PPD e os outros partidos da AD reclamassem uma revisão antecipada da Constituição por via referendária.
Não conseguiram, e a primeira revisão, agora com o necessário acordo do PS, ocorreu em 1982, quando, entre outras medidas, operou o que foi designado como “limpeza semântica”.
- A nossa Constituição não se limita a definir princípios gerais, direitos, liberdades e garantias pessoais e o funcionamento e competências dos órgãos de soberania. Identifica e determina direitos e deveres económicos, sociais, culturais. Não estabelece um Estado minimalista, com os seus poderes coercivos, como a direita mais retrógrada prefere, mas um Estado com funções sociais de que é garante. Constituição “programática”, criticava tal direita. Mas nasceu do povo em luta, da acção dos Governos Provisórios respondendo a justas aspirações e reivindicações, num clamor que se erguia das ruas e chegava a todas as instituições. E corresponde a uma evolução histórica, desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, da Revolução Francesa, à Declaração dos Direitos Humanos, de 1948, após a vitória sobre o nazi-fascismo. Da esfera individual dominante se passou para a dimensão social.
A nossa Constituição define um modelo de regime democrático, em que ao Estado cumpre a responsabilidade de garantir o princípio da igualdade, inscrito no art.º 13: “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”.
5– Antes de prosseguirmos, apenas um breve apontamento. Há uma escalada em curso que não pode ser subestimada.
Quando uma bancada parlamentar situada na extrema-direita aparece, numa sessão comemorativa do 25 de Abril, de cravo negro ao peito e reclama a fundação da 4ª República, isto tem um alcance e um significado. O alcance é o de pretender abolir o regime democrático, de que a nossa Constituição é a lei matricial. O significado é o de considerar como República a Ditadura que oprimiu o povo português durante 48 anos, que, de republicanos, só tinha a bandeira, o hino e a designação das instituições. Vivemos hoje, sim, na 2ª República.
Outro ponto requer a clarificação de um conceito: os partidos não esgotam a democracia, é certo, e por isso a Constituição dedica um capítulo inteiro aos direitos, liberdades e garantias de participação política. Mas não há democracia sem partidos ou, muito menos, contra os partidos.
Representa, por isso, um passo na escalada anti-democrática em curso as manifestações convocadas recentemente contra um partido, no caso o PS, em Lisboa e no Porto, aquando do seu 50º aniversário. Não está em causa a avaliação, para muitos negativa, da política seguida por este partido no Governo e pouco importa que manifestações anunciadas como de dezenas de milhares, como aqui no Porto, depois não tenham passado de uma centena de pessoas. O que importa é a carga de ódio que ressumam, os direitos que ofendem e os limites que ultrapassam.
Já depois do 25 de Abril, recorde-se o boicote do Congresso do CDS no Palácio de Cristal, em Janeiro de 75, operação provocatória organizada por partidos de verbo revolucionário, a maioria dos quais se evaporou passados poucos anos. Foi muito útil para desacreditar a jovem democracia, que dava os primeiros passos.
Recordem-se, no chamado “verão quente”, os assaltos e destruições de mais de uma centena de centros de trabalho de partidos de esquerda, com destaque para os do PCP, e de sedes dos sindicatos e uniões sindicais. Na época houve quem considerasse, procurando justificar tais violências, tratar-se de um autêntico levantamento popular. O que revelam em livros e entrevistas, publicados alguns anos depois, alguns dos autores morais e mesmo materiais de tais crimes, para se gabarem dos seus feitos, é que tais actos foram cometidos por organizações da rede terrorista da extrema-direita, ELP, MDLP ou Projecto Maria da Fonte e outras, com comando em Madrid, sob protecção da ditadura de Franco. Diziam que era para “salvar a liberdade” supostamente em perigo e “repor a pureza do 25 de Abril”. Foram muito úteis para intimidar e travar o processo de democratização na sua integridade, e para quebrar a aliança Povo-MFA.
Os ataques direccionados contra os partidos, na forma de manifestações agressivas e cercos físicos, mesmo que frustrados, são um sinal inquietante em qualquer democracia.
6– A nossa Constituição teve sete revisões que, em parte, a descaracterizaram, e amputaram, tanto nos planos político, económico e social, como no plano da soberania. Poucas melhorias e muitas regressões. Mas é ainda a Constituição de Abril.
Constituição de Abril nos princípios das Relações Internacionais, fundados na defesa da paz, no reconhecimento da independência e igualdade dos Estados e nos direitos humanos (art.º 7º), no princípio da igualdade (art.º 13º), no direito de resistência (art.º 21º), nos direitos, liberdades e garantias constantes do Título II, pessoais, de participação política e dos trabalhadores. Repare-se nas tentativas, ao longo de anos para desvirtuar ou neutralizar o art.º 53º (Segurança no emprego), que determina: ”É garantida aos trabalhadores a segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos”.
Constituição de Abril nos direitos e deveres económicos, sociais e culturais estabelecidos no Título III, ou nos Princípios Gerais da Organização Económica, da Parte II, onde avulta o art.º 80º, alínea a), que determina a “subordinação do poder económico ao poder político democrático”. Esta é a nossa Constituição, uma das “portas que Abril abriu”.
As sucessivas revisões, a par de aperfeiçoamentos e actualizações, introduziram linhas de tensão no ordenamento jurídico e no quadro político e social.
A primeira contende com a soberania nacional, ao abdicar do primado da Constituição Portuguesa sobre o Direito Comunitário, patente em diversas disposições que foram acrescentadas de forma directa e explícita, ou indirectamente, como no caso da eliminação do exclusivo da emissão de moeda pelo Banco de Portugal. Não apenas no plano legislativo mas em actos de gestão corrente, passou a ser obrigatório o parecer favorável da Comissão Europeia ou do Banco Central Europeu, e a conformidade com as suas orientações e determinações. Como tais organismos, centros de decisão dotados de enormes poderes, funcionam longe do sufrágio directo da população dos Estados membros, poderá dizer-se que está em causa não apenas o exercício pleno dos direitos soberanos mas, também, um défice democrático que não cessa de crescer e vai desacreditando as instituições.
A segunda contende com as responsabilidades sociais do Estado. Depois de eliminado o princípio da irreversibilidade das nacionalizações, a privatização e a externalização do sector financeiro e das empresas do sector estratégico da economia, onde o lucro e o mercado (por vezes abusivamente invocado) são critérios determinantes, criou uma nova realidade, mais conforme ao modelo em vigor na União Europeia. Formou-se um conglomerado de gestores e administradores que seguem os ditames do neoliberalismo, com um imenso poder, sem controlo público eficaz, ávidos de obter resultados e, para isso, de instrumentalizar o Estado. Protegem-se mutuamente com uma espécie de código de honra, que lhes garante a impunidade e chorudas indemnizações. A sua preocupação não é o bem público mas o sucesso dos seus negócios. Ora, o mercado faz parte da economia mas a economia não se resume ao mercado. Há funções sociais que ao Estado cabe garantir, como a saúde, a educação, a justiça, a habitação, a segurança social, sem interferência dos interesses mercantilistas. É por isso tão determinante, na fase que atravessamos, o princípio constitucional inscrito no já citado art.º 80º, alínea a), a “subordinação do poder económico ao poder político democrático”.
O que parece claro é que na raiz dos grandes problemas que hoje defrontamos não está o cumprimento mas o incumprimento da Constituição, não está o respeito mas o desrespeito da Constituição.
A democracia não é obra intemporal e acabada, é uma construção, com o rumo do socialismo, que os deputados constituintes apontaram, e perdura ainda hoje, 48 anos depois, no Preâmbulo da Constituição.
É urgente, e é momento crucial, para agir e convocar todos os democratas para defender e fazer cumprir a Constituição da República, para que seja a lei de todas as leis e não se torne um corpo estranho na sociedade em que vivemos. Em tempos incertos e inquietantes, importa reafirmar os valores da liberdade, da paz, da igualdade de direitos, da dignidade do trabalho.
Nº 1766 - Primavera 2024
