SEBASTIÃO DA GAMA: UM POETA SUBVERSIVO
A existência de Sebastião da Gama, nascido a 10 de Abril de 1924, foi muito curta. Ainda assim, deixou marca indelével na cultura do nosso país. Entre a adolescência e o dia da sua morte, ocorrida a 7 de Fevereiro de 1952, soube cativar aqueles que o rodearam, legando ao futuro uma entretecida memória que vale a pena descobrir e compreender. A sua poesia, a sua pedagogia, a sua exigência, a sua simplicidade, a sua espiritualidade e a sua ética souberam atrair um número crescente de admiradores. Prova desse reconhecimento público foram as duas homenagens póstumas que a Presidência da República Portuguesa resolveu prestar-lhe, em nome de todos nós. Em 1993, Mário Soares atribuiu-lhe a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique. Neste ano de 2024, em que se comemora o centenário do seu nascimento, Marcelo Rebelo de Sousa concedeu-lhe a Grã-Cruz da Ordem da Instrução Pública.
Apesar dos muitos estudos que têm sido dedicados a Sebastião da Gama, a personalidade e a escrita deste jovem escritor continuam a surpreender-nos, à medida que os documentos vão permitindo preencher o friso da sua vida breve. Ainda há pouco, ao lermos o excelente livro de Albérico Afonso Costa sobre a história do Círculo Cultural de Setúbal (1969–1998), animado pelo poeta e cantor José Afonso (1929–1987)[1], ficámos a saber que Sebastião da Gama, numa data que não conseguimos precisar, foi preso pela polícia política do Estado Novo. Não fosse uma nota, quase displicente, deixada por um agente da PIDE no seu relatório de vigilância da supracitada instituição cívica sadina, não passaria tal acontecimento pela mente de qualquer dos investigadores do percurso do autor de Serra-Mãe. Dele ficou, não obstante, um rasto documental. O seu encarceramento, ocorrido na cidade de Setúbal, não consta entre as páginas do seu processo policial, no qual até se atesta uma postura inofensiva. Não terá passado, quanto a nós, de um sucesso local sem consequências de maior, certamente destinado a domesticar os ímpetos do poeta nascido na rua principal de Vila Nogueira de Azeitão.
Bem gostaríamos de saber que ousadia terá levado ao aperto que lhe terão dado. Terá sido a sua pedagogia moderna e quase experimental? O seu civismo comprometido e desassombrado, na defesa dos valores em que acreditava? A sua poesia despida de galões e reverências, tantas vezes frontal? Tudo junto? Não sabemos, mas podemos recorrer a métodos indiciários. Podem ter sido as mesmas razões que levaram os membros do Círculo Cultural de Setúbal a admirar e defender o seu legado poético e cívico, usando-o como voz expressiva e correia de transmissão das suas inquietações. As palavras do chefe de brigada e chefe de posto da PIDE setubalense são inequívocas:
No dia 6/12/1969, homenagem a um falecido poeta, que quando vivo esteve preso nesta Polícia por actividades subversivas, de nome SEBASTIÃO DA GAMA, por MATILDE ROSA ARAÚJO, e apresentação do DR. MANUEL FERNANDO DA CUNHA CARDOSO.
Bastaria que algum fiel do regime salazarista reparasse, à rebours, que Sebastião da Gama “em muitos dos seus poemas deixa de olhar para si, para as suas lutas interiores, e dirige-se com o mais vivo interesse para os «outros», para os que à sua volta lutam e sofrem”. Sendo embora um jovem (que jovem morreria), tal postura, atestada em vários poemas, seria vista como ameaçadora, ainda que fosse apenas no acanhado ambiente das ruas estreitas de Setúbal. Tal como confessa o historiador Albérico Afonso Costa no livro supracitado, o poeta “refutaria o […] exclusivismo” de tais afirmações, “mas não […] rejeitaria nem […] menosprezaria” a vinculação de uma parte da sua obra a uma postura empática em relação aos dramas mais pungentes da humanidade, mesmo que não houvesse militância política.
Em 1947, foi publicado o seu segundo livro, Cabo da Boa Esperança. Entre as suas páginas, encontramos um poema que ainda hoje nos espicaça: “Meu País Desgraçado”. Nasceu na Arrábida, a 20 de Outubro de 1946. Nos seus versos e entre os seus versos, é apresentada uma visão de Portugal, dos portugueses e do seu percurso em nada coincidente com a imagem triunfalista que a propaganda estado-novista apresentava e desejava difundir entre portas e fora de portas. Os leitores do poema teriam ainda na sua memória visual as imagens da grande Exposição do Mundo Português, apresentada entre Junho e Dezembro de 1940. O texto inquietaria quem o lesse, fosse em que sentido fosse. É evidente a objecção:
Meu país desgraçado!…
Por que fatal engano?
Que malévolos crimes
teus direitos de berço violaram?[2]
Este poema não foi, todavia, um ponto saliente isolado, ainda que possa, por si só, ter chamado a atenção vigilante dos sectários do regime (e, anos mais tarde, dos oposicionistas de Setúbal, insuflados por José Afonso, ao ponto de se terem apropriado das suas frases). Existem outros textos no mesmo sentido e no mesmo livro. “Pão Nosso de Cada Dia”, por exemplo.
À maneira de Job (a mais angustiada das personagens do Antigo Testamento), o sujeito poético dirige-se a Deus e interpela-O com a maior afoiteza. Afirma:
Ah!, é preciso acabar com isto.
Erguer as mãos (mas de protesto, não de súplica) p’ra Deus
e gritar: «Queremos a Vida, queremos a Felicidade.
Queremos o pão nosso de cada dia.
Nós que trabalhamos, que desejamos,
nós que merecemos, Senhor, nós que merecemos,
queremos a Vida, queremos a Felicidade».
Incompreendendo a divindade, que escolhe como interlocutora ao deparar-se com as injustiças nascidas no “barulho do Mundo”, e aceitando essa incompreensão, não deixa de registar:
[…] minha incompreensão grandiosa,
minha aceitação grandiosa,
num instante se abatem. Simplesmente
porque um menino magro, lá em baixo no Mundo, pediu-me pão.
Triste pediu-me pão,
como se o pão não devera ser gratuito como o Sol…
Não soubéssemos da admiração de Sebastião da Gama por nomes tão importantes quanto Teixeira de Pascoaes (1877–1952) e José Régio (1901–1969), defensores acérrimos da independência do criador poético – contestados pelas hostes do neo-realismo vinculado à poesia de intervenção social e militância política – e suspeitaríamos da sua adesão sub-reptícia a tal movimento. Assim não sucedeu, contudo. Bastará lermos com atenção toda a sua obra. Bastará conhecermos a sua ligação a algumas das mais importantes revistas de meados do século XX, que prolongaram e apuraram o legado da presença (1927–1940), entre as quais se destacaram Távola Redonda (1950–1954) e Árvore (1951–1953).
O apreço pela liberdade de pensamento e de expressão era algo que fazia parte da personalidade de Sebastião da Gama e da sua exigência de vida. Estamos em crer que terá aprendido a cultivar esse amor ao contactar assiduamente com a poesia e com a memória do seu irmão Frei Agostinho da Cruz (1540–1619), frade arrábido que disse claramente num dos seus textos não existir “maior manjar que liberdade”. (Estou em crer: a mesma razão terá atraído ao franciscano o libertário Zeca Afonso que, numa conversa com o cantor Francisco Fanhais, lhe confessou, usando do seu consabido humor: “Se os meus amigos marxistas soubessem que ando a ler o Frei Agostinho da Cruz…”). Não fala de outro assunto o poema “Mordaça”, escrito na Arrábida em Junho de 1944, mas publicado apenas em 1967, num livro póstumo intitulado Itinerário Paralelo:
Puseram-lhe na boca uma mordaça…
Mas o Poeta era Poeta
e tinha que falar.
Fez um esforço enorme,
puxou a voz como quem golfa sangue,
e a mordaça saltou-se-lhe da boca.
Porém, não era já mordaça:
– Agora,
era um poema a queimar
os ouvidos das turbas inimigas
que, na praça,
o tinham querido calar.
Num outro poema escrito em Setúbal no ano de 1948 – editado também postumamente, em Estevas (2004) –, criticaria a abulia dos seus compatriotas:
Os Portugueses, dantes,
eram tipos de linha.
Hoje dormem nos portos
sem alma e sem vergonha.
O pensamento independente de Sebastião da Gama e a sua franqueza cívica não se ficaram, todavia, pelos versos éditos ou inéditos. Memorável é ainda hoje o seu papel na luta pela preservação da integridade natural e paisagística da Serra da Arrábida, que levaria à criação da Liga para a Protecção da Natureza. Menos conhecida é, todavia, a solidariedade prestada a alguns cidadãos perseguidos pela ditadura vigente. Recorde-se, por exemplo, o modo como se indignou quando viu a sua antiga professora, Andrée Crabbé Rocha (1917–2003), esposa do poeta Miguel Torga (1907–2005), ser demitida das suas funções como docente da Faculdade de Letras de Lisboa por ordem de António de Oliveira Salazar. O autor de Serra-Mãe não se coibiu de escrever uma carta de desagravo àquela que fora uma das suas mestras. Não nos admiraria que essa carta tivesse sido lida por alguém na Rua António Maria Cardoso… desencadeando o tal aperto policial.
À urticária sentida pelos bufos e denunciantes do Estado Novo e pelos agentes da PIDE setubalense não faltariam, portanto, causas.
*
Convenhamos, ainda assim: Sebastião Artur Cardoso da Gama não foi apenas um poeta sem papas na língua. Homem e artista poliédrico, teve várias faces inseparáveis, consequentes entre si. Todas juntas fizeram e fazem a sua grandeza, ainda hoje admirável. Tal como tivemos oportunidade de diagnosticar num ensaio nosso de 2017, agora reeditado[3], uma leitura profunda da sua obra necessita de ultrapassar alguns obstáculos: a simpatia que foi gerando; o mito da sua espontaneidade; a leitura desatenta da sua linguagem, aparentemente chã; o confinamento tópico dos seus referentes, centrado na Arrábida, mais símbolo do que realidade; e a recepção “adolescente” da sua poesia.
Tendo várias faces muito distintas, mas concatenadas entre si, a sua obra pode considerar-se “uma epopeia de exaltação à vida”, nascida como consequência da “aprendizagem mística da morte”, segundo afirmou David Mourão-Ferreira. É dominada por um simbolismo místico, ao acreditar no “poder gnósico da arte” (Fernando Guimarães). Sublima a lição de Paul Verlaine e entrelaça-a com alguma doutrina estética defendida pelos autores de Marános e Poemas de Deus e do Diabo, com destaque para a defesa de uma poesia viva, sincera e imperfeita (e, por isso, tantas vezes coloquial).
O mais importante não deve ser, todavia, esquecido. Segundo Sebastião da Gama, o “mistério” da Poesia tem sido apagado pelos homens, com nefastas consequências. Assim o disse na sua tese de licenciatura sobre “a poesia social no século XIX”:
[…] Voluntariamente nos esquecemos de que ao princípio era ela e de que os homens podiam não ter nascido que nem por isso ela seria menos viva.
O poema, sendo imperfeito, é considerado uma “chave falsa” que abre as “portas verdadeiras”. É a abertura dessas portas e a ultrapassagem do limiar dessa entrada que permite ao ser a sua liberdade. Ocorre uma conversão que permite o reconhecimento da verdade poética. Daí decorreu, defendemos, todo o empenho, todo o entusiasmo e todo o desassombro que caracterizaram Sebastião da Gama e a sua obra.
Notas: [1] Albérico Afonso Costa (2024), Círculo Cultural de Setúbal. De ninho oposicionista a quartel-general da revolução. Um redondo vocábulo, pela mão de José Afonso, Setúbal, Câmara Municipal de Setúbal. [2] Este e outros poemas no artigo estão reproduzidos na antologia Por Mim Fora, editada em 2024 pela Officium Lectionis (Porto) e organizada pelo autor destas linhas. Ainda neste ano do centenário de Sebastião da Gama será editada uma reunião da sua poesia pela editora Assírio & Alvim, organizada por João Reis Ribeiro. [3] “Uma arqueologia da poesia de Sebastião da Gama”, editado pela primeira vez no livro A Chave de Sebastião da Gama (Évora, Licorne / Associação Cultural Sebastião da Gama, 2017) e reeditado como posfácio da antologia Por Mim Fora, supracitada.

Ruy Ventura
(1973)
Poeta, escritor e historiador de arte. Colaborador do Centro de História da Sociedade e da Cultura (Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra).
Nº 1767 - Verão 2024