Brasil, contexto político atual

Saí do Rio um homem de direita e voltei um homem de esquerda.

Vinícius de Moraes

As recentes eleições para o Parlamento Europeu mostraram uma guinada da Europa em direção à direita, até à extrema direita, perigosa.

Na América Latina, embora não sejam poucos os presidentes de direita e extrema direita, como em El Salvador, Equador e Argentina, a tendência majoritária não parece ser a mesma do Velho Continente.

No caso do Brasil, passou-se de um governo de extrema direita, aquele de Jair Bolsonaro, para um de centro-esquerda, liderado por Luiz Inácio Lula da Silva.

Entre ambos, um golpe de estado, em 2016, e uma eleição fraudada, pois o principal candidato, o próprio Lula, fora preso, para que não vencesse o pleito de 2018.

Para entender o contexto político atual do Brasil, assim como o latino-americano e o europeu, faz-se necessário visualizar a geopolítica mundial.

O Brasil encontra-se na segunda área de maior importância estratégica para a hiperpotência, os Estados Unidos da América (EUA). Na primeira, estão a América Central e o Caribe.

Disso decorre, um enorme controle dos EUA sobre a política de ambas as regiões, cuja face mais visível e derradeira são os golpes de estado (“mudança de regime”, os chamam os promotores deles), todas as vezes que os interesses da potência hegemônica se veem contrariados.

Destarte, a democracia, no continente, não é um bem final, como queria o maior filósofo político do século XX, Antonio Gramsci – vítima a seu tempo da extrema direita, – mas apenas instrumental, valendo na medida em que os interesses do Norte e o das oligarquias locais aliadas não venham a ser contrariados.

Vale notar, porém, que a tentativa de golpe de estado perpetrada pela extrema direita estadunidense, em 6 de janeiro de 2021, redundaria em tomada de consciência daquilo que John Kennedy advertira a seu tempo: “Não se pode esperar sobreviver deixando subsistir um inferno ao redor”.

Com efeito, a conta chegou a Washington, atônita ao ver o Congresso ser invadido por hordas nazifascistas, as mesmas que fomentara na América Latina e no Caribe, por mais de dois séculos, levando o terror e a morte a todos que ousaram se opor a elas.

De fato, o 6 de janeiro marcaria um ponto de mutação no imaginário e na prática do povo, do governo e da diplomacia estadunidense, cuja consistência, porém, ainda está por se ver, haja vista as instrumentalizações da democracia feitas nos conflitos na Ucrânia e em Gaza, entre outros.

No caso do Brasil, entretanto, o efeito de 6 de janeiro foi decisivo para fulminar as tentativas da extrema direita brasileira de um golpe de estado que, após a eleição presidencial em outubro de 2022, impedisse a posse de Lula.

Nesse sentido, tanto o Departamento de Estado, quanto os militares dos EUA e até a CIA foram unânimes em advertir Bolsonaro e os militares golpistas locais de que haveria reação em caso de quebra da institucionalidade e, consequentemente, ocorreria o isolamento do país.

Aparentemente, foi o quanto bastou para dissuadi-los da aventura, em detalhes preparada, como se pode aferir do projeto de golpe descoberto em poder deles.

No entanto, desde a posse e a reação à tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023, em que os fascistas locais invadiram e depredaram as sedes do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, em Brasília, a política de Lula tem sido de apaziguamento com as forças de direita e até de extrema direita, entre as quais se destacam os grandes produtores rurais, financiadores e mentores daquela tentativa de golpe de estado.

Em apoio a eles, estão as bancadas na Câmara e no Senado federais, extremamente conservadoras e prontas a qualquer aventura que lhes possa render ganhos políticos e pecuniários (principalmente).

Ao lado disso, uma burocracia diminuta e desmotivada, com simpatias veladas pelo projeto da direita, hegemonizada por uma cultura pequeno-burguesa, ou acomodada e infensa às mudanças, como no caso das carreiras mais altas dos Três Poderes.

Ainda pior, boa parte das empresas públicas, algumas criadas na década de 50, como a gigante energética ELETROBRAS, controladora da maior parte da energia gerada e distribuída no país, foram privatizadas pelo governo da extrema direita, na bacia das almas, em processos claramente defeituosos, para dizer o mínimo…

No caso da ELETROBRAS, por exemplo, o governo permaneceu com aproximadamente 46% das ações, mas tem direito a apenas 10% dos votos… Ainda mais grave, só poderá recomprar as ações com ágio de 200%…

Igualmente tremendo foi o desmonte da PETROBRAS, que teve boa parte das refinarias vendidas e a empresa de distribuição de petróleo, a BR Distribuidora, igualmente privatizada.

Cabe notar que a BR contava com a melhor rede de postos de distribuição de combustíveis no país.

Ao lado disso, foram privatizados até gasodutos, de tal maneira que, atualmente, a PETROBRAS tem de pagar aluguel por gasodutos que lhe pertenciam.

Desenha-se, portanto, uma conjuntura bastante desafiadora para o governo Lula, em meio a um trabalho exitoso da extrema direita de qualificar como “gastança” os investimentos governamentais.

Vale notar que no Sul global a direita e a extrema direita tendem a ser liberais ou ultraliberais, tolhendo ao estado qualquer capacidade de resposta aos desafios colocados pelo governar.

Ao Norte, a intervenção estatal é mais bem aceite pela extrema direita, como se nota na Itália de Georgia Meloni e na França do Reagrupamento Nacional.

Convém notar, também, que o Partido dos Trabalhadores (PT) passou por processo de envelhecimento, de tal maneira que muitos dos segmentos mais jovens emigraram para o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), à esquerda do PT no espectro político.

A notícia alvissareira é que, após um longo período de distanciamento, ambos os partidos se aproximaram, devendo apresentar candidaturas conjuntas para as prefeituras, em capitais importantes como São Paulo e Porto Alegre.

Em São Paulo, a maior cidade do país, o candidato do PSOL, Guilherme Boulos, lidera as intenções de votos com certa folga, tendo por vice Marta Suplicy, ex-prefeita, eleita pelo PT.

Essa aliança foi forjada por Lula e conta com todo o apoio dele.

Importante notar que o governador do Estado de São Paulo, Tarcísio de Freitas, bolsonarista, deverá ser o candidato do grande capital à presidência da República, em 2026, em aliança com os setores ligados às milícias bolsonaristas.

Portanto, a vitória de Boulos no município de São Paulo contribui para, de alguma forma, conter o avanço da extrema direita no país.

Vale observar que, no Brasil, 8 famílias detêm em torno de 70% dos órgãos de comunicação de massa, estando todos eles alinhados com as ideologias liberais de direita e extrema direita.

Por esse motivo, a população tem muita dificuldade em perceber as melhoras trazidas pelo governo Lula, que vão desde a redução drástica no número de empobrecidos até o crescimento da riqueza, que tornou o país a oitava economia do mundo.

No plano externo, porém, o atual governo, ao contrário dos dois primeiros mandatos de Lula, ainda não conseguiu plasmar uma marca, limitando-se apenas a repetir o passado, o que, em um contexto internacional de grande dinamismo, não pode ser considerado satisfatório, ao contrário.

Nesse sentido, a integração continental, uma disposição da Constituição Federal, parece ter sido abandonada, sendo o colapso do Haiti a marca de maior fracasso da diplomacia, que, como no caso da ação da África do Sul contra Israel pelo crime de genocídio em Gaza, limita-se a apoiar as iniciativas africanas, que, no Haiti, consiste em força policial plurinacional, liderada pelo Quênia.

Com efeito, a cultura hegemônica de grande influência do Norte não deixa imune o próprio Ministério das Relações Exteriores, para isso bastando ver o número de postos com que conta nos países do Norte e do Sul.

A nação continua a dar as costas a seus vizinhos, não conseguindo manter as credenciais para mediar crises como na Venezuela ou na Nicarágua, pela impossibilidade de entender as posições dissonantes e respeitá-las.

Mais grave, o país claramente não possui uma política nem para a América Central, nem para o Caribe, embora seja país caribenho, pois o litoral do estado do Amapá está ao norte da foz do Amazonas, limite sul caribenho.

Em uma nota mais triste, o PT renunciou a qualquer tipo de participação da sociedade civil na política externa, deixando-a somente nas mãos dos diplomatas, que, como em qualquer outra profissão, tendem a passar os interesses próprios, de carreira, pecuniários ou bons postos em países confortáveis, à frente das prioridades do país.

O quadro geral para a diplomacia do governo Lula não é tanto de inovação, quanto de repetição, o que também parece estar refletido em outros campos.

A participação popular é escassa, pois o PT abdicou da formação de quadros, aparentemente acreditando que o consumo irá incluir as grandes massas despossuídas e que elas saberão reconhecer que a bonança se deve às políticas acertadas, o que não se provou verdadeiro no passado, pois praticamente não houve reação popular ao golpe de 2016.

O cenário parece túrbido, mas talvez as eleições municipais em outubro tragam uma renovação dos processos participativos e os dois anos finais do mandato do presidente Lula possam retomar a participação popular que caracterizou as administrações populares do PT em Porto Alegre e São Paulo, no passado.

Os recentes eventos climáticos no Sul mais uma vez demonstraram que só a participação popular é capaz de gerar resiliência e reação adequadas às mudanças climáticas que deverão penalizar ainda mais os empobrecidos, pretos, mulheres, idosos, crianças e LGBTs.

Sem isso, governo e sociedade dificilmente poderão alcançar êxito duradouro em políticas públicas, desde a defesa civil até a política externa.

Milton Rondó Filho

(1959)
Diplomata aposentado

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