Problemática atual da educação
A luta de conceções
Aquilo que, na atualidade, configura a enorme crise da educação, resulta do confronto entre a conceção humanista da formação da juventude, e a conceção neoliberal que procura utilizá-la em seu favor, formando a mão-de-obra barata de que as empresas necessitam, ao mesmo tempo que reserva para si própria as vantagens de uma formação superior. Desenham-se assim, duas primeiras constatações que é preciso tomar na devida conta quando se procura entender a confusão que se vive atualmente em relação à questão educativa. Desta forma exprime-se neste sector social, um dos principais aspetos da crise global vivida na sociedade atual.
A primeira refere-se à tremenda luta que se estabeleceu entre aquelas duas conceções e que explica, simultaneamente, o ataque ao serviço público de educação e a grave perda de prestígio dos professores, ao mesmo tempo que os governos prestam um apoio ao extraordinário negócio do ensino privado, reservado exclusivamente aos filhos das camadas sociais mais enriquecidas.
A segunda constatação coloca-nos frente a um processo de luta sem tréguas, que se está a travar em todo o mundo desenvolvido, entre aqueles que procuram por todos os meios manter os seus privilégios, e aqueles que lutam por uma sociedade mais justa na qual a liberdade é assumida de forma conscientemente crítica e responsável, e a democracia assenta num processo progressivamente mais justo e igualitário, e se promove a libertação da exploração dos trabalhadores relativamente aos interesses exclusivamente mercantilistas da classe dominante.
Não se compreenderá a situação atual da educação em Portugal se não se conhecer com suficiente clareza as características desta luta que assume diferentes aspetos e cambiantes. Por exemplo a importantíssima questão da definição das finalidades da educação. De um lado e do outro, ambos dizem que se pretende preparar os jovens para a vida real. Mas o que é que isto quer dizer para uns e para outros? Para os neoliberais isto significa, para o ensino público, que os jovens que saem das suas escolas, devem estar preparados para desempenhar um conjunto de competências que respondem às necessidades das empresas em termos competitivos e lucrativos. De outra forma não conseguirão obter emprego como “colaboradores” (a nova designação dos trabalhadores, que manipula hipocritamente a chamada sociedade civil). Evidentemente que nos colégios privados não é isto que se passa. O que constitui o objetivo fulcral diz respeito a uma formação tecnológica de grande nível capaz de os preparar para o desempenho futuro das chefias nas multinacionais.
Para aqueles que se posicionam em termos contrários, as finalidades da educação assumem um caráter bem diferente: o que está em causa é a aquisição de uma cultura que visa a emancipação do ser humano, a resposta às necessidades do desenvolvimento máximo de todas as capacidades através de uma educação integral capaz de promover a estruturação da cidadania plena, e dotar todos os alunos de uma capacidade crítica que lhes permita compreender com lucidez o que se passa à sua volta. Ao mesmo tempo que os deve dotar de uma capacidade de adaptação permanente à extraordinária dinâmica do processo de evolução tecnológica que se vive no presente, e que tem tendência a acelerar-se no futuro.
A crise atual da educação não é uma causa, mas sim uma consequência política
É à luz deste processo, complexo e agressivo, que se podem compreender os fenómenos mais marcantes da situação atual, tomando em consideração que se está a viver um momento crucial de definição de políticas: para que lado vai pender a política que está a ser definida? O anterior governo continuou o processo de desclassificação do ensino público iniciado há muito tempo por vários ministros que consideravam os professores como inimigos figadais acusando-os de constituírem forças de bloqueio à mudança. Com este argumento que choca pela sua hipocrisia, perpetraram, ministro atrás de ministro, a lenta, mas inexorável, degradação do estatuto dos professores, e utilizaram a tradicional querela entre pais e professores a favor da degradação da escola pública.
O processo não se iniciou somente com as políticas impostas pela Troika. Vem de longe a defesa da transformação da gestão em termos de serviço público em gestão empresarial das escolas. O 25 de Abril de 1974 proporcionou a instituição do processo democrático dentro das escolas, mas começou a ser posto em causa na década de noventa do século passado.
A degradação do estatuto remuneratório dos professores também começou muito antes de a crise rebentar em 2009. O ataque à imagem social dos professores tem sido uma constante desde há 30 anos para cá. Na realidade, o grande choque que se deu na educação entre um processo elitista e segregativo, que se limitava a garantir a aquisição do LEC (ler, escrever e contar) na escola pública, e a vaga da massificação escolar, projetou-se em agravamento constante de forma aguda para este novo século (ver, por exemplo a política seguida por Maria de Lurdes Rodrigues, seguida pela de Nuno Crato e seus antecessores, mais ou menos neoliberais) assumindo diferentes formas.
Habitualmente o grande problema da educação nas escolas portuguesas não é apresentado desta forma. Em geral, os professores são acusados de serem os responsáveis pela situação, ou porque não sabem ensinar, ou porque não trabalham com a necessária dedicação e, ainda por cima, trabalham em condições de “grande privilégio” (altos ordenados(!), segurança social garantida, promoções de nível de caráter automático sem atender ao mérito, etc.). Numa outra perspetiva, o Estado é acusado de não ser capaz de estruturar um processo educativo correspondendo às necessidades de formação da juventude preparando-a devidamente para a “vida ativa”, desleixando as condições de trabalho dentro das escolas e permitindo o abuso do professorado. Na realidade estes são os argumentos fundamentais apresentados pelo neoliberalismo no seu ataque para impor a “guerra da cultura” e a formatação das mentes.
A manipulação reina
Estas acusações têm sido habilmente exploradas, assim como os problemas criados pelo comportamento dos alunos e a desorganização dos currículos, pelas forças que põem em causa o serviço público de ensino, para manipularem a opinião das populações contra a escola pública e os seus professores. Esta situação cria uma enorme confusão, assente na constante tomada de medidas políticas inconsequentes, não devidamente avaliadas, de caráter eminentemente burocrático, originando uma enorme insegurança, precariedade, dificuldades crescentes na ação pedagógica dos professores, tudo isto com graves consequências para a sua vida pessoal e profissional, e inclusive para a sua saúde.
É importante compreender que todas estas acusações se caraterizam pela sua falsidade e caráter estruturalmente demagógico e manipulatório. A compreensão plena do seu significado, só se pode alcançar através da análise do processo de luta política global.
Sem a perceção daquilo que está, verdadeiramente em jogo, e que, no fundo, representa a presença da luta de classes dentro da instituição escolar, não se conseguirá entender devidamente a atual “crise da escola” que, afinal, não é mais do que um dos aspetos da crise social global.
A gravidade da situação impõe uma luta de defesa da democracia na educação
De tudo isto resulta um conjunto complexo de situações negativas que se foram acumulando ao longo do tempo sem solução. Por um lado, porque eram intencionalmente desejadas, como por exemplo, a sistemática desvalorização do professorado com o objetivo de se conseguir a transformação das suas funções (substituindo a sua ação educativa/instrutiva utilizando os processos pedagógicos do ensino/aprendizagem, pelo de exclusivo animadores na sala de aula dos alunos utilizadores da Internet), ou tinham origem na falta de vontade política resultante de graves cedências às perspetivas ideológicas da direita, como é o caso da gestão empresarial das escolas. Em termos sintéticos é possível explicitar esse conjunto de situações da seguinte forma:
- Em relação ao Sistema de Ensino: alterações súbitas, não devidamente experimentadas e avaliadas, provocadas pelas alternâncias dos governos do “arco da governação” sem que as condições concretas do ensino tenham sido alteradas, mas apontando sempre na mesma direção: subordinação progressiva do seu funcionamento a preocupações predominantemente economicistas; submissão dos currículos aos interesses do patronato, justificando-o com o falso argumento do aumento da capacidade competitiva económica do País à escala internacional chamando-lhe “educação de qualidade”; predominância de uma visão segmentar (não holística) do aluno, liquidando o processo de educação integral, aumentando a carga horária diária e o número irrazoável de disciplinas sem atender às necessidades do desenvolvimento das crianças e dos adolescentes; imposição sub-reptícia de processos de segregação social dos alunos através da reposição precoce dos exames, valorizando essencialmente os processos de classificação e certificação (avaliação sumativa) em detrimento da avaliação continua e global (avaliação formativa); consideração do professor como o fator essencial de resistência à mudança, etc.
- Em relação às escolas: a gestão escolar perdeu progressivamente o seu caráter democrático, desvalorizando a importância do Conselho Pedagógico e garantindo a escolha do gestor por um grupo reduzido de professores e finalmente escolhido pelas “autoridades”; a preocupação dominante com o processo de gestão marcadamente empresarial em detrimento das funções educativas e pedagógicas; a criação de mega agrupamentos escolares, juntando várias escolas dos diferentes graus de ensino sob uma mesma autoridade gestora, promovendo a perda de identidade de cada uma delas e a despersonalização da função educativa; a desregulação administrativa do funcionamento escolar provocada pela excessiva centralização e burocratização; além disso, devido aos sucessivos cortes orçamentais e à falta de preocupações com o processo pedagógico, em que avulta pela sua importância a luta contra o insucesso escolar, a obesidade e a integração social dos alunos em dificuldade, promoveu-se o aumento do nº de alunos por turma, o excesso da carga horária e a eliminação de inúmeras escolas do 1º CEB no interior do País, agravando o processo de desertificação do interior; a crónica falta de recursos didáticos e ausência de estruturas e espaços em relação a certas disciplinas escolares, continua a manter-se dificultando enormemente o processo de ensino/aprendizagem; a ausência de participação das escolas na definição da política educativa, assim como no planeamento institucional, quer na definição da rede escolar, quer na estruturação dos currículos, aliena a responsabilidade dos professores, sendo certo que, sem a sua participação na definição de medidas de correção da situação, estas pouco êxito alcançarão.
- Em relação aos professores: a desvalorização do seu estatuto é acompanhada e agravada pelo congelamento das carreiras e pela tendência marcada para a acentuação da geronticidade do corpo do professorado, situação a que se junta a incrível situação de precariedade; deficiências da formação inicial e contínua; daqui resulta uma diminuição qualitativa da vida dentro da instituição provocada pela indisciplina e pelo mau relacionamento com as famílias devido à perda de prestígio; não admira, por isso, que este conjunto de obstáculos, dificuldades e incompreensões, façam com que a atividade do professor apresente um dos mais altos índices de “burnout” (esgotamento total) entre o conjunto das profissões, tanto mais que os ordenados absolutamente deficientes e as incríveis medidas de gestão (especialmente nas colocações e nas deslocações) agravam significativamente a vida de um grande número de professores.
Esta situação aqui referida sinteticamente nos seus traços essenciais, traduz uma enorme crise em agravamento constante do sistema de ensino português, de que é vítima direta a juventude do País e, indiretamente, o desenvolvimento deste. Na realidade trata-se de uma situação que exige, para ser progressivamente corrigida, um processo de luta longo e difícil. Por outro lado, as recentes medidas tomadas pelo atual governo, sendo consideradas como grandes vitórias da luta empreendida, não deixam de causar sérias apreensões quanto à forma concreta como tudo se irá passar (o perfil do aluno e o processo de descentralização configurado pela municipalização).
O neoliberalismo estruturante da extrema-direita, é enganador por natureza. Nunca desvenda a sua verdadeira intenção nem os seus objetivos. Muitos são aqueles que se deixam envolver pelas suas promessas. O futuro da educação depende da compreensão do seu verdadeiro significado.
Nº 1767 - Verão 2024
