Amílcar Cabral e a luta contra o colonialismo português

Introdução

Amílcar Cabral foi uma das mais destacadas figuras anticoloniais do século XX. Nascido na então Guiné Portuguesa em 1924 e tendo frequentado o ensino primário e liceal em Cabo Verde (Mindelo – S. Vicente) cedo se notabilizou como um dos protagonistas da contestação do regime colonial português.

Foi assassinado a 20 de Janeiro de 1973, ainda o PAIGC não tinha proclamado unilateralmente a existência do Estado da Guiné-Bissau, facto que teria lugar apenas meses volvidos (a 24 de Setembro de 1973), funcionando como o “calcanhar de Aquiles” da Revolução dos Cravos que derrubaria o Estado Novo, no dia 25 de Abril de 1974.

No mês e ano em que se celebra o centenário do seu nascimento nada melhor do que rememorar alguns aspetos da sua trajetória como homem de pensamento e de ação – assim pelo menos era visto pelo escritor britânico Basil Davidson¹ – influenciando o curso da História e inspirando as sociedades atuais. Basta olharmos atentamente para a profusa produção científica sobre ele que tem vindo a lume com origem dentro e fora das academias, para as conferências, simpósios, congressos, seminários, estudos, cursos, pesquisas que têm sido feitos à escala planetária e que percorrem temas tão ecléticos como por exemplo a análise da sua teoria política, entre outras muitas temáticas que constitui hoje um valioso repositório à disposição de estudiosos e de curiosos.

Mas, se isso não fosse suficiente para justificarmos a relevância histórica e mesmo na atualidade de Amílcar Cabral, várias décadas depois do seu desaparecimento físico, bastaria refletirmos sobre o facto de, em 2020, ele ter sido considerado como o segundo maior líder da História Mundial por um painel de historiadores selecionados pela BBC World Histories Magazine. Cabral figurava na lista, logo atrás de Ranjit Singh, (grande Rei/Imperador) do Império Sikh, no Noroeste da Índia, na primeira metade do século XIX, e à frente de figuras históricas incontornáveis como Winston Churchill, Catarina, a Grande, entre outras figuras marcantes da história da humanidade.

Personalidade moldada pelo contexto

Cabral foi profundamente marcado pelo contexto e pelas circunstâncias em que viveu e se formou. Foram essas circunstâncias e esses contextos, associados à política colonial que excluía as elites nacionais da partilha do poder, a provocarem uma frustração sistémica em Amílcar Cabral. Uma dessas frustrações estava articulada à quase impossível ascensão dos africanos a lugares de chefia em cargos públicos relevantes. De resto, seu meio-irmão, Luís Cabral² (que viria a ser o primeiro presidente da Guiné-Bissau independente) chegou a assegurar que uma das reivindicações era justamente que guineenses e cabo-verdianos pudessem ascender ao cargo de Presidente da República ou de Governadores e às demais funções do Estado e da Administração colonial. Mas, depois da não aprovação do clube desportivo que Cabral tentou criar em meados dos anos 50, em Bissau, deixou de haver espaço e expectativas relativamente à existência de canais legais para se exprimir o inconformismo e o descontentamento. A inexistência desses canais é, de acordo com Kenneth W. Grundy³, uma das pré-condições para a eclosão da violência sistémica. As outras três são o baixo nível de produtividade, a existência de desigualdades entre negros e brancos na distribuição harmónica dos recursos e a inabilidade do governo colonial/doméstico para lidar com as injustiças.

O inconformismo e o descontentamento confluiriam, decisivamente, para o anticolonialismo de Cabral. Sobretudo, ao perceber que as suas reivindicações/ambições (legítimas ou não) por reformas no sistema e revindicação de igualdade de tratamento entre negros e brancos jamais seriam preenchidas no quadro de um regime de dominação direta (ou de ocupação). Aliás, em bom rigor, regimes deste género nunca hesitam em defender intransigentemente as suas políticas. É que acreditam que uma eventual brecha, flexibilização, reforma ou o atendimento das revindicações de grupos oposicionistas enfraqueceria a essência e a natureza do colonialismo, bem como o conteúdo reivindicativo da oposição. Desta forma inviabilizam a própria luta armada de libertação nacional como chegou a argumentar Amílcar Cabral⁴. Não foi por acaso que Jeff Goodwin⁵ defendeu que os regimes exclusionários, como era o de dominação direta na Guiné, tendiam a “incubar” ações coletivas radicais.

Na mesma linha, Bajit Singh e Ko-Wang Mei⁶ sugerem que as guerras de guerrilha ocorriam mais em regimes de dominação direta e de ocupação. Na impossibilidade de ver as suas revindicações serem atendidas só restava uma derradeira alternativa a Cabral: preparar-se para enfrentar o colonialismo português, com recurso a todos os meios possíveis, incluindo os violentos.

A passagem à luta armada de libertação nacional

Efetivamente, depois de várias tentativas de luta legal na mira de persuadir o governo colonial português a proceder a reformas, e face a nenhuma abertura por parte deste em avançar para uma descolonização pacífica nos inícios dos anos 60, não restaria a Amílcar Cabral nenhuma alternativa senão convencer-se de que apenas com a opção pela violência revolucionária seria possível materializar os objetivos preconizados. Assim, a guerra de guerrilha passou a ser vista como condição sine qua non. Subsequentemente, o papel de primeiro plano de Amílcar Cabral seria determinante na mobilização e consciencialização dos seus correligionários da Guiné e Cabo Verde, numa dinâmica que culminaria na fundação de um partido binacional – o PAIGC – cujo fundamento ideológico-estratégico se ancorava no contexto africano das unidades interterritoriais. O passo seguinte seria o da organização, estruturação e implantação do movimento de libertação a nível interno (Guiné portuguesa e Cabo Verde) e externo (República da Guiné Conacri e Senegal) e a divulgação do seu programa político e revolucionário a nível interno e transnacional, aliado à procura de ajuda política, moral, financeira e material.

Foi neste contexto que Cabral acabou por ordenar a passagem à ação direta, ainda em abril de 1961, aproveitando, inclusivamente, a periclitante situação interna portuguesa a braços com problemas graves que denotavam alguma fragilidade e vulnerabilidade do regime. Referimo-nos, entre outros, aos seguintes acontecimentos: assalto ao navio transatlântico Santa Maria, a 22 de Janeiro de 1961; os sucessos da Baixa de Cassange, de Janeiro de 1961; às ações de 4 e 5 de fevereiro de 1961 em Luanda; o início de ataques da UPA/FNLA no norte de Angola, a 15 de março de 1961; a tentativa de golpe de Estado de Botelho Moniz (abril de 1961) conhecida como a “abrilada”; a revogação do Estatuto do Indígena (6 de setembro de 1961); a perda de Goa em dezembro de 1961.

Perante as ameaças de uma guerra generalizada na Guiné, o regime tentaria, a todo o custo, reforçar as suas posições, incrementando a violência indiscriminada contra grupos e figuras nacionalistas com o fito de obstruir as suas tentativas de organização de núcleos clandestinos nas principais cidades e vilas do território. Assim, entre Fevereiro de 1961 e Agosto de 1962, vários nacionalistas foram presos, com especial destaque para Rafael Barbosa, Fernando Fortes e Momo Turé, três influentes dirigentes que animavam esses núcleos. Estas perseguições e a subsequente passagem à clandestinidade das células do interior vieram reforçar a ideia no seio dos nacionalistas de que o regime colonial precisava de ser violentamente “esmagado” e radicalmente reorganizado.

A 12 de dezembro de 1962, num discurso perante a IV Comissão da ONU, Amílcar Cabral ainda tenta uma derradeira oportunidade a fim de obrigar Portugal a fazer uma inversão na sua política e a negociar uma saída pacífica. Na ocasião propunha três alternativas para a realização das aspirações dos nacionalistas: 1) uma eventual mudança radical da posição do Governo português que conduzisse à abertura de negociações; 2) uma ação concreta por parte da ONU; 3) lutar pelos próprios meios.

Como era de esperar não houve nenhuma alteração na posição portuguesa e, muito menos, por parte das Nações Unidas. Portanto, a única opção que restava a Amílcar Cabral e aos seus correligionários era o início das hostilidades.

O amparo na legalidade internacional. Epílogo

Em Janeiro de 1963 Amílcar Cabral ordenaria o início de ações de guerrilha na Guiné. Mas a sua estratégia para a liquidação do colonialismo amparava-se na ideia do restabelecimento da legalidade internacional, do direito dos povos à autodeterminação e independência consagrados no artigo 73º da Carta das Nações Unidas e nas inúmeras resoluções da Assembleia Geral e do Conselho de Segurança.

Depois da resolução 1514 (XV), de 14 de dezembro de 1960, a anexação das colónias por via da força passou a ser vista pelo líder guineense e cabo-verdiano como uma violação flagrante e ilegal do direito internacional. Os princípios e todo o argumento invocado para essa anexação ilícita, que se fundamentava no direito histórico, na ocupação efetiva e na política assimilacionista também passaram a ser considerados falsos argumentos.

A resolução 1514 (XV), de 1960, converter-se-ia, assim, na primeira vitória política e moral dos movimentos de libertação nacional, embora Amílcar Cabral permanecesse cético em relação aos resultados práticos que uma simples resolução poderia produzir, mormente no que concerne à alteração da natureza do colonialismo português ou relativamente às possibilidades de uma mudança de atitude do Governo colonial de Salazar. Ao tempo, Amílcar Cabral ainda defendia a resolução pacífica do problema colonial e a utilização por parte das Nações Unidas de uma base legal (a resolução 1514) para fazer acatar as leis internacionais. Chegou mesmo a assumir que a luta dos povos da Guiné e Cabo Verde também era em defesa da legalidade internacional e dos princípios morais e de justiça que regiam a própria ONU.

Assim, em jeito de considerações finais, ao chegar à triste conclusão de que a “hipótese de modificação da situação” ou da “deterioração do colonialismo” era “apenas um sonho oportunista” ou o resultado de “uma análise errada da natureza e da história da colonização portuguesa em África”, Cabral passou a defender a passagem à luta armada e à utilização de meios violentos como um direito legítimo. Aliás, em 1961, não surpreenderam as suas palavras na sessão extraordinária do Conselho de Solidariedade dos Povos Afro-asiáticos realizada no Cairo, ao afirmar, na linha do que defendia o nacionalista angolano, Viriato da Cruz, que o colonialismo português nunca cederia “sem luta” devido ao seu carácter violento.

Notas:
¹Basil Davidson, The Importance of Cabral, African Affairs, Volume 83, Issue 330, January 1984, p. 117–119.
²Luís Cabral, Crónica de Libertação, Lisboa, Edições O Jornal, 1984, p. 21.
³Kenneth W. Grundy, Guerrilla Struggle in Africa. Some thoughts on violence and warless future, New York, World Order Book, Gross Max Publisher, 1971, p. 8.
⁴Amílcar Cabral, Guiné-Bissau. Nação forjada na luta, Lisboa, Publicações Nova Aurora, 1974, p. 117.
⁵Jeff Goodwin, “State-Centered Approaches to social revolutions. Strenghts and limitations of a theoretical tradition”, in Theorizing revolutions, Edited byJohn Foran, London and New York, 1997, Part I, p. 18.
⁶Baljit Singh e Ko-Wang Mei, Theory and Practice of Modern Guerrilla Warfare, New York, Asian Publishing House, 1971, p. 14.

Julião Soares Sousa

(1966)
Investigador do Centro de Estudos Interdisciplinares da Universidade de Coimbra (CEIS20)

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