As eleições legislativas francesas
Os franceses foram a votos! Não porque a isso estivessem constitucionalmente obrigados, mas porque o Presidente francês, Emmanuel Macron, assim o quis! Após a vitória do partido de extrema-direita, Reagrupamento Nacional (Rassemblement National), nas eleições para o Parlamento Europeu, a 9 de junho, o Presidente Macron dissolveu a Assembleia Nacional e convocou eleições legislativas. Se o seu objetivo era reforçar a votação no seu partido, os resultados – e a vontade popular – traíram-no: na segunda volta das eleições, realizada no passado 7 de julho, a coligação de esquerda Nova Frente Popular (NFP – Nouveau Front Populaire), composta por forças muito diversificadas, como a França Insubmissa, o Partido Socialista, Os Ecologistas ou o Partido Comunista Francês, obteve 182 dos 577 lugares; a coligação centrista-liberal Juntos (Ensemble), da qual faz parte o partido de Macron, ficou em segundo lugar com 168 mandatos; o Reagrupamento Nacional conseguiu 143 deputados; o Partido Republicano (Les Républicains) alcançou 46 lugares e os restantes mandatos foram distribuídos pelos partidos mais pequenos.
Para melhor compreendermos esta fase política em França, convém recuar, pelo menos, a 2012, quando François Hollande, candidato do Partido Socialista, venceu as eleições presidenciais francesas, afastando Nicolas Sarkozy da Presidência. Tal como o seu Primeiro-Ministro, Manuel Valls, por si nomeado após as eleições legislativas que decorreram um mês depois das presidenciais, Hollande concorreu com um programa que prometia medidas como a subida do salário mínimo nacional, o aumento dos impostos sobre as grandes empresas, a redução da idade da reforma dos 62 para os 60 anos ou uma revisão das regras orçamentais da União Europeia contrária à defendida por Sarkozy e pela chanceler alemã, Angela Merkel. Chegados ao poder, a prática foi outra: o convite para que Emmanuel Macron assumisse a pasta da economia no governo evidenciou a atração por um programa neoliberal, em que a liberalização da economia se sobrepôs à resposta aos problemas sociais do povo francês e em que a submissão aos interesses da União Europeia (UE) se priorizou face à soberania nacional.
Em 2017, Emmanuel Macron, que entretanto tinha abandonado o cargo de Ministro da Economia, candidatou-se às eleições presidenciais e, na segunda volta, venceu Marine Le Pen, a candidata da extrema-direita (66,1% vs. 33,9%). A sua força política, Em Marcha!, foi igualmente a mais votada nas eleições legislativas que se seguiram, tendo o Partido Socialista sido penalizado pelo voto popular e sofrido uma derrota inquestionável com a perda de 280 deputados. Nos anos que se seguiram, aprofundou-se o caminho que vinha a ser trilhado com políticas em prol dos interesses dos grandes grupos económicos e financeiros e o ataque a direitos e liberdades democráticas, com grandes mobilizações nas ruas.
Nas eleições seguintes, em 2022, Macron vence as eleições presidenciais mas perde força relativamente à mesma candidata da extrema-direita (58,54% vs. 41,46%). O mesmo acontece nas eleições legislativas que ficam marcadas pela perda da maioria absoluta por parte do partido do Presidente Macron, pela subida das forças coligadas na Nova União Popular Ecológica e Social (NUPES – França Insubmissa, Partido Comunista Francês, Europa Ecologia – Os Verdes, Partido Socialista) e pelo aumento do número de votos e deputados da extrema-direita. Se, em 2022, a vontade de mudança já se fez sentir nas urnas, a promulgação da polémica lei sobre o aumento da idade da reforma dos 62 para os 64 anos, em abril de 2023, trouxe novamente os franceses para a rua em grandes manifestações contra a dita lei mas também pela exigência de aumento dos salários e das pensões, de controlo e redução dos preços dos combustíveis, da energia e de produtos de primeira necessidade, de defesa e melhoria dos serviços públicos, como da saúde e educação, a rejeição da guerra e do militarismo e a defesa da paz.
As eleições de 2024 só confirmaram essa vontade de mudança que vinha sendo expressa. As forças políticas que apoiam o Presidente Macron sofreram um novo recuo (isto é, a confirmação da rejeição das políticas que protagonizam) e a coligação de esquerda NFP foi a que obteve mais mandatos, tendo igualmente a extrema-direita do Reagrupamento Nacional aumentado o número de deputados e de votos.
A atual situação em França evidencia que, ao mesmo tempo que as políticas neoliberais iam avançando, o ataque à democracia, direitos, liberdades e garantias também prosseguia, promovendo a degradação das condições de vida do povo francês. Tudo isto possibilitou o crescimento da extrema-direita que teve todas as condições para concretizar a sua agenda xenófoba e racista, de repressão e anti-imigração, de pôr trabalhadores contra trabalhadores, franceses contra imigrantes, pobres contra pobres, de marginalizar e oprimir “os outros”, sejam de minorias religiosas e étnicas, sejam os que resistem e que lutam por uma vida melhor.
As políticas macronistas têm e tiveram impacto em França mas também ao nível da UE, na medida em são os interesses das grandes potências, onde se inclui França e as suas multinacionais, que dominam as decisões e as impõem a quem tem menos poder para decidir.[1] E é neste contexto que a vitória da NFP pode e deve ser encarada como um elemento positivo, pelo que pode trazer de alternativa e esperança ao povo francês, com consequências para a melhoria das suas condições de vida. Mas esta vitória não pode e não deve igualmente ofuscar as contradições existentes, incluindo pela integração e colagem de forças e de personalidades que, como François Hollande, têm grandes responsabilidades na atual situação em França.
O Presidente Macron, dois meses depois das eleições, nomeia para Primeiro-Ministro Michel Barnier, do Partido Republicano, nomeação para a qual conta com o apoio da extrema-direita que não viabilizará a moção de censura apresentada contra o governo. É mais um passo na fuga em frente de quem se recusa a aceitar os resultados das eleições para prosseguir com as políticas que o povo rejeitou nas urnas.
Outro aspeto a ter em conta na análise das eleições em França (mas também em outros países, como o Reino Unido) é o próprio sistema eleitoral, baseado em círculos uninominais, que distorce gravemente a proporcionalidade nos resultados eleitorais, torna a representação política num artificialismo, e impõe uma bipolarização enganadora. Em Portugal, há quem queira adotar este sistema alegando uma maior proximidade entre eleitores e eleitos e uma “reconciliação dos cidadãos com a política”, para combater a abstenção. O que aconteceu em França, mas também no Reino Unido nas eleições gerais ocorridas a 4 de julho passado[2], foi que a força política mais votada não foi a que obteve maior número de mandatos. E é aí precisamente que reside a perversidade deste sistema: favorecer os “grandes partidos” e impedir os mais “pequenos” de se afirmarem e bipolarizar e desvirtuar a proporcionalidade dos resultados.
De certa forma, é o próprio sistema eleitoral que promove a existência de grandes coligações que possam posicionar-se como um dos polos e obter um resultado mais expressivo em termos de eleitos, se for esse o seu objetivo primeiro! Frequentemente, as grandes coligações que se formam não passam por vezes de arranjos de circunstância sem coerência política.
Mas estas especificidades na atual situação em França não encontram comparação noutros países, nomeadamente em Portugal, e, portanto, também estas “convergências” que se apresentam como aparente solução não podem ser transpostas para outras realidades nacionais.
Uma dita convergência à esquerda tem de ter como propósito primordial o combate e a rutura com a política de direita e a construção de uma política alternativa e não a mera soma de votos. Como pode existir uma convergência sem ter em conta os conteúdos e os posicionamentos concretos de cada força política? Como pode existir uma convergência sem ter em conta as responsabilidades de cada força política na atual situação, incluindo no crescimento da extrema-direita, na descredibilização das instituições, no ataque a direitos constitucionais e aos valores de Abril e no agravamento dos problemas? Se este não for o ponto de partida, mas sim a contagem final dos votos, estaremos mesmo a construir o caminho alternativo, que os povos exigem e merecem, que defenda os seus direitos, liberdades e garantias? Não temos a bola de cristal que dê a resposta certa (se é que ela existe) a estas e outras perguntas, mas elas têm de ser colocadas.
Há, contudo, uma lição que a história já nos ensinou e que nunca é demais recordar: é que a luta dos trabalhadores e dos povos, seja em França ou em Portugal, na defesa dos seus direitos, da igualdade e da justiça, da liberdade, da democracia e da paz, que será determinante para a melhoria das suas condições de vida. Os partidos progressistas e consequentes lá estarão ao seu lado e na luta institucional para lhe dar força e expressão!
Notas: [1] Só para citar um exemplo, em 2019, foi publicado um “non paper” franco-alemão com as orientações (e conclusões prévias) daquela que viria a ser a Conferência sobre o Futuro da Europa, que decorreu entre abril de 2022 e maio de 2022 (Cf. https://www.politico.eu/wp-content/uploads/2019/11/Conference-on-the-Future-of-Europe.pdf). Daí sairiam as diretrizes para o aprofundamento do neoliberalismo, federalismo e do militarismo, de que o Presidente Macron é um grande entusiasta, para usar um eufemismo. Afinal de contas, todos nos recordamos das suas declarações irresponsáveis, em fevereiro deste ano, sobre o envio de tropas dos países da NATO para a Ucrânia. [2] Note-se que num sistema eleitoral com diferenças relativamente ao francês, mas tendo em comum a existência de círculos uninominais, o partido vencedor das eleições no Reino Unido, o Partido Trabalhista britânico, elegeu 63% dos deputados com apenas 33% dos votos.
Nº 1768 - Outono 2024
