Eleições do Reino Unido: dança das cadeiras na continuidade política

As eleições ocorridas a 4 de Julho no Reino Unido não diferem muito da realidade eleitoral que se tem observado, um pouco por todo o ocidente. Com excepção dos EUA.

Devido à uniformidade ideológica resultante de um continuado processo de “purificação”, o centro de poder representado no acordo Democrata/Republicano, pode dar-se ao luxo de se preocupar mais com a política externa, expansionista e hegemónica, do que com os seus dramas internos. Os sucessivos períodos de red scare (terror vermelho), garantiram uma forte blindagem orgânica da política norte-americana.

Ao contrário dos EUA, na Europa, esta dualidade contraditória começa a provocar os seus danos. Mais “vulnerável” ao pluripartidarismo e ao sentir das populações, a continuidade das políticas ao centro, apesar da rotação das figuras, começa a traduzir-se numa procura de outras “soluções” eleitorais.

O que se passou no Reino Unido, desde David Cameron e o Brexit, é exemplificativo de tal contraste. Apesar do Brexit, a realidade continental e britânica permanecem conectadas, pela submissão a uma continuidade política com origem nos estáveis EUA. Funcionando como uma âncora, os EUA impõem aos “aliados” uma continuidade que é caracterizada pela contradição entre a atenção que se dá em relação aos assuntos externos (proteger a segurança nacional dos EUA) e a que é dada em relação aos assuntos internos (aplicar o neoliberalismo do consenso de Washington).

Nas eleições de 4 de Julho de 2024, os dois partidos do centro, conservadores e trabalhistas, tiveram o pior resultado conjunto em muitas dezenas de anos, evidenciando a degradação das instituições. Seis Primeiros-Ministros desde 2015, denotam instabilidade, agravada pelo facto de, ao longo de todo esse tempo, com exceção do recém-eleito Keir Starmer, os restantes 5 serem todos do partido conservador. Seja na política externa – submissa aos interesses hegemónicos dos EUA -, seja na política interna – submissa aos interesses neoliberais -, a continuidade política contrasta com a dança das cadeiras. O que é uma contradição, mas apenas aparente.

O Brexit mostrou a divisão interna existente face ao posicionamento externo do Reino Unido, contudo, sendo transversal a todas as classes, essa divisão nunca foi quanto à política de fundo. Embora David Cameron tenha-se demitido logo após o referendo, por ter saído derrotado na sua pretensão de manutenção na UE, Theresa May e Boris Johnson ganharam as eleições que se seguiram, nomeadamente as de 2017 e 2019.

Esta dança de cadeiras no partido conservador prenunciava um mal-estar que só não trouxe danos maiores porque o partido trabalhista se encontrava em profunda crise. Jeremy Corbyn, acusado de “antisemitismo”, devido às suas críticas face às atitudes do estado de Israel, não sobreviveu aos resultados das eleições de 2019, em cujo pleito conseguiu mais votos do que Keir Starmer, em 2024.

Se o Brexit era sintoma de uma governação mais virada para fora do que para dentro, agravada pelo estado de mimetização, pelo Reino Unido, da política externa dos EUA, em especial a partir de Tony Blair, que foi o “relações públicas” de George W. Bush e da sua Guerra ao Terror, esta situação aprofundou-se em 2014, com o golpe Euromaidan, na Ucrânia.

Austeridade para dentro, expansionismo para fora. Eis o que foi todo o período conservador, desde 2010. Se David Cameron tentou um ressurgimento do Tatcherismo, a chegada ao poder de Theresa May fez coincidir a austeridade com a figura feminina. A continuidade desta dualidade política contraditória não resulta de uma escolha simples. Para gastar mais fora e contribuir para a saúde do complexo militar industrial dos EUA, há que cortar dentro. Esta é a realidade política ocidental do século XXI.

Esta dualidade caracterizou também a governação de todos os que se seguiram a Theresa May. Boris Johnson, qual senhor da guerra, deslocou-se a Kiev para levar Zelensky a renunciar ao acordo de Istambul e continuar a guerra por procuração, em nome da NATO, contra a Federação Russa. Liz Truss, cuja governação durou 46 dias, mesmo assim, teve tempo para dizer que não hesitaria em apertar “o botão” nuclear, contra a Federação Russa e a República Popular da China. Richie Sunak, iniciou o envio de armas de urânio empobrecido e mísseis stormshadow, tornando o Reino Unido o apagador das linhas vermelhas de Biden. Para dentro todos significaram mais neoliberalismo.

Enquanto premiava o povo britânico com austeridade eterna, Sunak não se coibiu de fazer corresponder a eternidade da sua austeridade com as guerras eternas dos EUA. Para dentro, Richie Sunak provava todos os dias que integrar mais diversidade étnica, ou de género, na política de um país, não significa, por si só, melhorá-lo. Tal como Theresa May demonstrou que não basta ser-se mulher, também Sunak demonstrou que não basta descender-se de migrantes, ou de etnias minoritárias, para perceber os males do imperialismo.

Dezenas de anos de privatizações e cortes dos serviços públicos, resultaram numa sociedade britânica mais fraturada que nunca, como muito bem pudemos constatar nos recentes episódios de confrontação entre migrantes e as hordas mobilizadas pela extrema-direita.

Mas, como a farsa não pode ser eterna, o Reino Unido tornou-se no exemplo perfeito do que acontece a um país, com um sistema pluripartidário, com sindicatos ainda dotados de alguma independência e liberdade – se bem que muito atacados –, quando faz da rotação aparente o esconderijo da continuidade política. Na medida em que o parlamento, em maior ou menor extensão, acaba por refletir o que se passa na sociedade, também na Casa dos Comuns começámos a observar a implosão do centro político.

E tal assim é que chegou mesmo a falar-se da “maldição Zelensky”, para designar o efeito governativo, segundo o qual, quanto mais atenção o Primeiro-Ministro dá ao conflito que ocorre na Ucrânia, maior é a probabilidade de não sobreviver politicamente. Os exemplos são diversos: Liz Truss, Richie Sunak, Boris Johnson, Mario Draghi, Sanna Marin, ou os casos de Macron ou Sholz, que governam com bases eleitorais e níveis de aceitação irrisórios.

Esta contradição política também se verifica no continente e obrigou o establishment a utilizar soluções de manutenção do poder do centro político, recorrendo a partidos com bases eleitorais minoritárias (Portugal, França, Inglaterra…), governando e comportando-se, em relação às questões externas, como se beneficiassem do poder consolidado que beneficia os presidentes norte-americanos.

Tal presunção deve fazer-nos questionar sobre quem, ou que poder, realmente sustenta tais governos. O caso Francês é exemplo disso mesmo: atribuir o poder ao presidente da república para designar o Primeiro-Ministro, tornou possível formar-se um governo, mesmo com minoria parlamentar. Em Portugal, o facto de estar, no Presidente da República, o poder de dissolver o parlamento e provocar eleições antecipadas, permitiu a formação de um governo representado por pouco mais do que 28% dos votos. A abstenção suporta estes governos.

Já no Reino Unido, a de sobrevivência à sub-representação social, ganha todo um novo significado e determina o que será a governação de Keir Starmer. Digamos que os resultados eleitorais de 4 de Julho de 2024, demonstram tanto a ansiedade – contida – de mudança, como transparecem as garantias constitucionais que permitem não responder a tal ansiedade.

A forma como funciona o sistema eleitoral britânico, mesmo não conferindo a segurança plenipotenciária a que assistimos nos EUA, permite, ainda assim, uma enorme margem de segurança, conferindo uma enorme margem de manobra para continuar o dualismo governativo contrastante até aqui evidenciado.

Os resultados foram contundentes: os trabalhistas ganharam com 33,7% dos votos, garantindo 411 deputados (63,2% dos assentos), apesar de terem tido menos votos do que com Jeremy Corbyn (que só tinha conseguido 202, mas com mais 400.000 votos); os conservadores, com 23,7% dos votos, apenas conseguem 18,6% dos representantes (121 assentos).

Se, com esta introdução já se tem uma ideia de como funciona o sistema eleitoral em círculos uninominais, favorecendo os vencedores, negando qualquer representatividade democrática – como sucede, por exemplo, em Portugal -, quando analisamos os resultados dos partidos mais pequenos, percebemos tudo: com 14,3% dos votos, o Reform UK, de Nigel Farage, consegue apenas 5 assentos (0,8% do total); os mesmos que consegue o Partido Democrático Unionista, com 0,6% dos votos; os verdes têm 4 assentos com 6,7% dos votos, tantos como o Partido de Gales com 0,7% dos votos. Os Independentes, como Jeremy Corbyn, conseguem 6 lugares apenas com 2% dos votos.

Assim, Keir Starmer tem em mãos a grande questão que se colocou aos anteriores premiados: É desta que um Primeiro-Ministro trabalhista diz adeus ao Tatcherismo, não se refugiando em “terceiras vias”, para justificar a continuidade neoliberal?

É interessante verificar que a realidade encontrada por Starmer é cópia da que se verifica na mesma UE, da qual o Reino Unido quis sair: crise do centro, crescimento da reação; wokismo; degradação da base social dos maiores partidos; a mesma contradição entre a austeridade para dentro e o expansionismo para fora.

Não admira a insatisfação. A ansiedade de soberania presente no Brexit, bateu na trave mestra da confusão: o povo falhou em distinguir em qual dos lados do atlântico se encontrava o bloqueio.

No desvendar, ou não, desta confusão, estará a resposta para a pergunta sobre o que será a governação de Starmer. Algures entre a viagem a Washington e a exigência do fim da proibição do uso de armas de longo alcance para atingir a Rússia, está a resposta. Da Ucrânia à Palestina, acabando em Londres, uma vez mais a cadeira dançou, a política parece ter ficado no mesmo lugar.

Keir Starmer saiu de Washington com a procuração de que necessitava para continuar!

Chamam-lhe “democracia”!

Hugo Dionísio

(1974)
Advogado, membro do gabinete de estudos da CGTP-IN e co-fundador do canal online sobre Geopolítica @multipolarTv

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