A Situação Nacional do Emprego Científico

«O mais forte nunca é forte o suficiente para ser sempre o senhor,

se não transformar a sua força em direito e a obediência em dever.»

Jean-Jacques Rousseau

Desde 2018 que o emprego científico não estava tão na ordem do dia. A «contratação a termo resolutivo de doutorados para o exercício de atividades de investigação científica, de desenvolvimento tecnológico, de gestão e de comunicação de ciência e tecnologia em instituições do SCTN [Sistema Científico e Tecnológico Nacional], tendo em vista o desenvolvimento estratégico das mesmas e o reforço do investimento em ciência e tecnologia»[1], normalmente designados sinteticamente por investigadores, mesmo que não estejam, de facto, contratados sob o Estatuto da Carreira de Investigação Cientifica (ECIC), mas sim sob o comumente denominado «diploma de estímulo ao emprego científico», mais conhecido apenas por DL57, por resultar do Decreto-Lei n.º 57/2016, alterado pela Lei n.º 57/2017, que consistiu numa forma paralela de contratar investigadores sem os integrar na carreira.

E é precisamente aqui, no sem os integrar na carreira, que está a continuação do velho problema.

Desde há mais de 25 anos que o trabalho científico em Portugal é essencialmente feito por investigadores com bolsas de investigação, que não são um contrato de trabalho mas sim um subsídio de manutenção mensal. E, como se pode depreender, sem acesso ao regime geral da Segurança Social, nem ao subsídio de férias, nem ao 13º mês, nem ao subsídio de desemprego pois, tecnicamente, o bolseiro nunca foi um trabalhador. E não se pense que é assim em todo o lado, pois «lá fora», aquilo a que chamam bolsas são, quase sempre, reais contratos de trabalho.

Sucessivos governos, mais à direita ou menos à direita, exibem orgulhosamente gráficos com o crescimento do número de «investigadores» no país, a criação de centros de investigação como Instituições Privadas Sem Fins Lucrativos (IPSFL), mesmo que dentro de instituições públicas, fingindo não lhes pertencer, e a transformação de universidades em fundações, numa esquizofrenia de instituições públicas com gestão privada. Somam-se a esses gráficos supostos investimentos privados na investigação que ninguém sabe muito bem nem como são nem onde estão – para ocultar que o investimento público nela já há muito que só decresce. Mas o nosso investimento em ciência continua sem exceder os 1,7% do Produto Interno Bruto (PIB), quando a média europeia é de 2,3% — com a meta de 3% até 2030 —, sendo o real investimento do Estado de apenas 0,3%. O denominado investimento privado é quase 1%, sendo o resto fundos europeus. Note-se que o investimento em defesa já é de 1,6% e a meta para 2030 são 2%.

No ano passado, José Ferreira Gomes, que foi membro dos XIX e XX Governos Constitucionais, publicou o livro «Ensino Superior e Desenvolvimento». Em 187 páginas apenas menciona os investigadores uma vez mas tem um capítulo inteiro dedicado aos professores. Uns meses mais tarde é publicado «O Futuro da Ciência e da Universidade», sob coordenação de Maria de Lurdes Rodrigues, membro do XVII Governo, e Jorge Rodrigues da Costa. Em 1.187 páginas, a gritante e continuada ausência de políticas de emprego científico é arrumada num só parágrafo. Para falar seriamente do assunto, foi preciso, também em 2023, Ana Ferreira, uma investigadora com contrato a prazo que nunca foi membro de governo nenhum, publicar o «Nós Somos os Rankings».

Em 1999, o Decreto-Lei n.º 123/99 criou o Estatuto do Bolseiro de Investigação (EBI), já várias vezes alterado. Como é evidente, não foi criado para conferir o estatuto de trabalhador ao bolseiro, nem para o integrar na carreira, nem para impedir a possibilidade de se ser eternamente bolseiro através de bolsas sucessivas. A figura do bolseiro serviu para tudo. Até para «contratar» jardineiros no Instituto Superior de Agronomia. E, agora que parecia que esse tipo de abuso era para acabar, o governo propõe-se a alterar o EBI para que os bolseiros de investigação possam dar até 6 horas de aulas por semana no ensino básico e secundário.

Com enorme luta, na qual muito se destaca a Associação dos Bolseiros de Investigação Científica (ABIC), os bolseiros conseguiram o apoio de fortes federações de sindicatos como a Federação Nacional dos Professores (FENPROF) e a Federação Nacional dos Sindicatos dos Trabalhadores em Funções Públicas e Sociais (FNSTFPS), e graças a uma particular correlação de forças na Assembleia da República durante o XXI Governo, de 2015 a 2019, concebe-se, pela primeira vez, que era justo e necessário dar contratos de trabalho aos investigadores, nascendo o já mencionado DL57. Ainda assim, esse decreto-lei não foi criado para integrar ninguém nas carreiras mas sim para criar «uma verdadeira carreira paralela, [… com] níveis remuneratórios mais flexíveis», leia-se: mais baixos, como plasmado no seu preâmbulo. E, paralelamente, tudo foi feito, quer pelo governo quer pelas instituições, para que no Programa Extraordinário de Regularização de Vínculos Precários na Administração Pública (PREVPAP) houvesse o menor número possível de integrações na carreira de investigação. A entrega de requerimentos terminou a 17/11/2017, e dos mais de 1.700 pedidos considerados válidos para apreciação — mera fração do número de pedido feitos — só 9% conseguiram ser nela integrados. Alguns deles só o conseguiram em 2022!

Mas afinal porque é que ninguém quer contratar os investigadores? Primeiro, argumentava-se que os bolseiros estavam em formação e, por isso, não deveriam ter contratos de trabalho. Incapazes de responderem ao facto de todos os trabalhadores contratados terem direito a 40 horas de formação contínua anuais, de os médicos estarem ainda em formação durante o «ano comum» e os demais anos de especialidade e de variadíssimas profissões terem anos de estágio e tirocínio, apressaram-se a alterar o EBI para que nele ficasse explícito que todo o bolseiro tinha de estar matriculado num grau ou diploma, tendo também alterado a lei dos graus e diplomas para neles incluir o diploma de pós-doutoramento. Resolvido esse assunto, onde caiam todos os investigadores mais jovens, e ainda confrontados com a inevitabilidade de terem de contratar alguns, vêm a seguir dizer que não os poderiam integrar na carreira, pois, nas palavras do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP), a investigação «pressupõe uma rotação elevada dos seus investigadores e bolseiros que não deverá ser confundida com necessidades permanentes.» Aproximando-se o fim do máximo de 6 anos dos contratos a prazo celebrados, vêm dizer que as universidades não precisam de investigadores mas sim de docentes, e que uma entrada maciça de investigadores nas carreiras bloquearia as entradas das próximas gerações.

Vejamos os números. O fresquinho relatório da Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC)[2] contabiliza 31.737 docentes e investigadores nas carreiras das instituições de ensino superior (IES) públicas. O número de investigadores é apenas de 945, ou seja, 3% dos contratados nas carreiras. A idade média dos docentes das IES públicas é de 48 anos. O relatório não tem a análise dos investigadores que não estão nas carreiras. Porém, no já referido trabalho de Ana Ferreira, com os dados de 2019, mostra-se que a pirâmide etária dos investigadores precarizados está bem dispersa entre os 21 e os 68 anos de idade, sendo a idade média de 38 anos. Hoje, passados 5 anos, face aos baixos números de novas contratações, mesmo que a prazo, a idade média estará, certamente, nos 41 ou 42. Tal foi demonstrado pela FENPROF, a 12/07/2023, na Comissão de Educação e Ciência da Assembleia da República, esclarecendo todos os partidos como uma integração nas carreiras apenas rejuvenesceria ligeiramente os quadros sem nunca bloquear coisa alguma. Por exemplo, se entrassem agora 5.000 investigadores precarizados para as carreiras a idade média das IES baixaria apenas dos 48 para os 47. Se entrassem 10.000, baixaria para os 46. Como se pode ver, o argumento do suposto bloqueio não tem sustentação. Perante isto, claro, as instituições mudaram o argumento para a falta de financiamento e a sua inevitável falência.

Sim, há subfinanciamento. Mas num país onde o Estado resgata bancos privados alguém acredita num cenário de falência das IES? Se do céu agora caísse um eurotriliões, outro argumento encontrariam. A verdade resume-se apenas a isto: não querem. Não querem porque o SCTN se desenvolveu durante 25 anos mantendo os investigadores na precariedade, lucrando com isso, inevitavelmente, o reduzidíssimo grupo daqueles que estavam nas carreiras e nelas foram prosperando. E, como bem viu Rousseau há muito, o mais forte tentará sempre manter-se senhor, e tal faz-se muito eficazmente controlando a lei.

Caindo quase toda a investigação científica sob o domínio direto ou indireto das universidades, universidades essas onde não só existem conselhos de catedráticos como nenhum membro eleito nos órgão de decisão se pode pronunciar sobre atos relacionados com a carreira de docentes com categoria superior à sua, na ciência e na academia, quem mais manda é a hierarquia. A ciência do país encontra-se, assim, refém de uma autêntica «ditadura dos coronéis» para quem o investigador é precioso, e muito, mas só enquanto subordinado. O trabalho do investigador é, automaticamente, também trabalho do seu senhor a quem, a bem da ilustração, vou chamar coronel.

O coronel foi, supostamente, um investigador que em tempos dominou o estado da arte de uma área de investigação, na altura frutuosa, e lá entrou para a carreia — por milagre ou porque nasceu no ano certo —, fazendo-se capitão. Forçado a lecionar bastante e a acumular outras tarefas, invariavelmente a contragosto, o capitão em ascensão tende a não conseguir acompanhar a evolução da sua área científica. Felizmente para si, à boleia do calendário, não tendo falecido, nem se conflituado em demasia com os oficiais superiores, chegou a coronel. Agora chefia, controla, e não vai querer perder o poder. Tendo perdido o domínio da sua arte, se os investigadores que na sua equipa trabalham como subordinados se independentizam, depressa deixam de lhe bater a pala. E é por isso que não querem. O problema do emprego científico não se resolve porque não há vontade para o resolver. E não é porque todos os corpos docentes das universidades e dos politécnicos não queiram, é porque aqueles que detêm o poder nessas instituições não querem. Esses são uma fração dos que lá estão, mas são a fração que manda. O resto, são alienados sobreviventes hipnotizados por sofismas.

O Ministro da Educação, Ciência e Inovação deste XXIV Governo, Fernando Alexandre, faz crer que uma revisão do Estatuto da Carreira de Investigação Científica (ECIC) resolverá de imediato o problema, quando na prática pretende concretizar o princípio do fim da carreira de investigação, substituindo-a toda pela carreira docente. O verdadeiro problema não é uma ou outra falha no estatuto mas sim o facto de não se contratar para a carreira de investigação. O muito pouco que se contratou nestes 25 anos foi quase sempre direitinho para a carreira docente.

O programa «FCT-Tenure», lançado ainda pelo anterior governo, um programa da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) de cofinanciamento de contratações para as carreiras, cofinanciando dois terços dos salários nos três primeiros anos de contrato e ainda durante mais três anos, mas apenas a um terço, caso a contratação seja para a carreira de investigação em vez da carreira docente, divulgou os resultados das 1.100 contratações a apoiar neste mês de agosto. Um terço delas são para as carreiras docentes, destacando-se Lisboa e Coimbra, pela negativa, por terem mais de metade delas atribuídas para as carreiras docentes.

Quem lutou por esses lugares foram os investigadores. Os reitores, esses, apenas protestaram e procuraram obter do FCT-Tenure o maior número de docentes possível, às custas de financiamento que deveria ser exclusivamente atribuído para financiar investigação e não para financiar docência. A ideia original era atribuir apenas 400 apoios e foi pela pressão dos investigadores que se conseguiram os 1.100. E será só pela pressão dos investigadores que se conseguirão muitos mais ou que se conseguirá um outro programa de integração na carreira dos milhares e milhares de investigadores precarizados que sustentam há décadas todo o SCTN. Jamais se assistirá a um coronel a dar o corpo às balas num plenário, numa comissão ou numa manifestação. Nas guerras, os coronéis, podem render-se honrosamente assinando armistícios e cessar-fogos, mas os soldados, esses, vão morrendo, sem escolhas, sempre ao mando dos seus senhores.

Notas:
[1] https://diariodarepublica.pt/dr/legislacao-consolidada/decreto-lei/2016-107707370
[2] https://www.dgeec.medu.pt/api/ficheiros/66ed8861081cd43c247ab712

Nuno Peixinho

(1971)
Dirigente do SPRC/FENPROF, Investigador do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço e da Universidade de Coimbra

Mais do autor